Por que alguns gregos voltaram a cultuar os deuses da mitologia?
Há três anos e meio, entre idas e vindas, me estabeleci em Atenas, o berço da democracia, a capital de um país mergulhado numa crise sem fim, das mais sofridas e duradouras: a Grécia. Você é capaz de passear pelo elitista e turístico bairro de Plaka e, pouco depois, diante de uma área já decadente e suja como Omonia e Metaxourgio, facilmente encontrar alguém injetando heroína em plena rua. Um contraste social gritante que conhecemos, ou fingimos não conhecer, muito bem no Brasil.
O que eu não imaginava é que em plena Atenas do século 21, há gente ainda rezando pelos 12 deuses do Olimpo. Segundo um amigo, o jornalista Spiros Kollias, é gente que tem "parafuso a menos na cabeça".
Entre fervorosos, praticantes e aqueles que não pisam numa igreja há anos na Grécia, 98% da população se considera cristã ortodoxa de acordo com o Departamento das Ciências e Religiões, ligado ao ministério da Educação. É um país que tem o seu lado contestador e também um forte sentimento conservador. Apenas o judaísmo e o islamismo são as outras religiões reconhecidas dentro do território grego.
O Helenismo, como é chamada a prática politeísta com origem na Antiguidade, não tem qualquer tipo de reconhecimento religioso atual. Apenas em 2017, vinte anos depois do surgimento dos primeiros grupos que, aos poucos, voltavam às origens dos ancestrais gregos, é que o governo os reconheceu, mas como grupo étnico. Ou seja, um grupo de pessoas que se identifica com uma pátria, origem, tendência, crença, religião etc, mas não como religião oficial.
No limite da marginalidade
Quem pratica o politeísmo na Grécia ainda sofre com o preconceito. O festival Prometheia, uma ode ao titã Prometeu da mitologia grega, acontece a cada solstício de verão (por volta de 21 de junho) aos pés do Monte Olimpo, tido como "a casa dos deuses", mais ao norte do país. Prometeu é o deus que foi punido por Zeus por dar aos humanos o poder do fogo e, com isso, a fabricação de instrumentos de metal.
Como o verão europeu já havia passado, foi preciso buscar alguma outra "missa". O Supremo Grupo dos Helênicos Étnicos, conhecidos pela sigla YSEE, é uma página que contabiliza mais de 10 mil curtidas no Facebook e estava com um evento confirmado em outubro de 2019: "venha participar da nossa celebração a Héracles (que representa os atletas, o poder físico), neste sábado, às 20h30". Mandei mensagem. Minutos depois, alguém respondeu: "Vocês são bem-vindos."
Coincidências existem? A sede da YSEE é simplesmente atrás do prédio onde moro, no centro de Atenas, coisa de três minutos andando. Outra vez não pude deixar de pensar: como eu nunca escutei nada, como eu nunca soube de nada? Era tudo, definitivamente, surreal.
Sábado religioso
Nada de gótico, barroco ou modernista. Aquele era um prédio comum, residencial, com uma pequena e escura galeria de entrada que automaticamente faz você pensar: "estou no lugar certo?". Eu e Domenica Konstantinidi, uma amiga local, fomos levados ao terceiro andar por um senhor simpático que veio abrir o portão. Ao fundo e à esquerda havia um templo adornado por estátuas. Um quadro com um comunicado que mais parecia uma tábua de mandamentos dizia, entre outras coisas: "Seja bem-vindo ao primeiro lugar reconhecido da religião étnica grega. Não se esqueça que você está num lugar sagrado, portanto, tenha respeito à cerimônia. Seguimos a tradição filosófica de nossos ancestrais. Purifique-se".
Uma pia ao melhor estilo grego clássico, com uma coluna branca pequena e detalhes em metal banhado a ouro, era o lugar de parada de todos que chegavam ao culto. Não pensamos duas vezes e lavamos as mãos. O local, não fosse pelo altar e dezenas de estátuas dos deuses, poderia ser perfeitamente uma sala comercial.
"Sejam bem-vindos", pronunciou uma mulher de meia-idade e cabelos loiros, maquiagem acentuada pelo batom vermelho, e já com a indumentária característica da antiguidade clássica. "Você é o Andreas", perguntou, no que eu acenei positivamente — na Grécia e na Itália tive que me acostumar com o fato de ter meu nome chamado no que é uma designação feminina do português. "Sou Helena. Era eu quem estava respondendo suas mensagens", afirmou, ajeitando a auréola com ramos de flores de diversas cores na cabeça. "Tenho que terminar de organizar a cerimônia, mas você pode ir conversando com o Kostas, tá bem?"
O designer gráfico Konstatinos Keghagias, de 49, é seu marido e o homem que nos abriu a porta. Juntos, hoje eles são os responsáveis pela coordenação do Supremo Grupo dos Helênicos Étnicos, após a morte do escritor e ativista grego Vlassias Rassias, em julho de 2019, o fundador do grupo e maior difusor dos ideais politeístas na Grécia moderna.
"Tudo começou no início dos anos 1980, quando Rassias criou o jornal independente 'Open City' (Cidade Aberta), que já trazia alguns artigos sobre o tema. Nos anos 1990, ele também criou a revista Diipetes (Enviado por Zeus), em que defendia mais fortemente os desejos e ideais dos nossos ancestrais", explicou Kostas, sentado numa mesa repleta, claro, de pequenas estátuas e odes aos deuses gregos.
"Me identifiquei com o tema", disse ainda, acrescentando que "em 1997, com a criação oficial do nosso grupo, vi que era a forma perfeita, utilizando a lógica, para falar com os deuses". "Não somos como os cristãos", acrescentou ele. "Essa é a nossa diferença, nós não pedimos milagres. É uma representação de nossos valores, que ficaram escondidos depois do estabelecimento, há séculos, do cristianismo."
Uma breve explicação: Roma ocupou a Grécia no ano 146 a.C,, e o cristianismo virou religião oficial do Império Romano após a conversão do imperador Constantino, em 313 d.C. Nasce nesse momento a igreja Cristã, e o seu estabelecimento como instituição poderosa, enquanto Zeus e companhia caiam em descrédito.
"[O helenismo étnico] É o produto cultural de uma civilização muito mais desenvolvida - em todos os níveis - do que a que criou e espalhou a adoração de um 'Deus' do deserto em todo o mundo"
Vlassias Rassias, em "Helenismo, o que acreditamos e o que defendemos (em inglês)"
Cerimônia e "bota pra gravar"
Percebo que a sede começa a receber mais gente. Calculo umas 35 cabeças, de idades entre os 30 aos 60 anos — sem crianças, adolescentes ou jovens.
Helena era a "highest priest" (sacerdote suprema) do grupo, uma grande diferença em relação ao cristianismo, judaísmo ou islamismo, onde se estabelece unicamente ao homem o papel de líder religioso. Segundo ela, na Grécia Antiga era muito natural que as mulheres fossem as comandantes, as líderes espirituais das cerimônias de louvor aos deuses.
Uma dúzia de pessoas se vestia como na Antiguidade, com longas batas brancas e uma faixa cor de vinho com a sigla do grupo étnico. Em fila, lavam as mãos outra vez e se dirigem ao altar, onde Helena os espera com uma pequena espada — segundo ela, "para designar um território sagrado, para proteger o altar". Ela leva as mãos ao alto, com todos já devidamente perfilados sobre as imagens, e saca a espada da bainha, delimitando espaços.
No altar estão cinco imagens, todas assistidas ao fundo por Zeus. Ao centro está Heracles (o homenageado da noite); à esquerda dele, Apolo e Afrodite, e à direita, na sequência, Ares e Atena. "Nosso altar é um lugar sagrado. Os ancestrais diziam que os deuses estão no altar. É nosso ponto de comunicação", explicou.
Helena começa a proferir o que eu entendo como um pequeno sermão, quando Domenica me cutuca:
- Bota pra gravar.
- Acho que basta tomar nota das coisas. Você acha necessário?, pergunto.
- Não estou entendendo nada.
- Como?
- Eles estão falando em grego antigo. Eu não falo grego antigo.
Nem sabia que se falava grego antigo, mas depois entendi que seria como um português de Camões, um pouco mais complicado e com pronúncia diferente.
"Genito!", saúda Helena. "Genito", todos respondem. E assim seria sempre que alguém proferisse algumas palavras. Quer dizer: "faça acontecer". E tem muito a ver com a essência do que eu estava entendendo de toda essa experiência: os valores pregados. O comportamento e o senso de comunidade que você tem de ter diante da sociedade.
"Sempre se disse que a Grécia é para os gregos cristãos. Mas eu não cresci em uma família religiosa. Quando me levaram para a igreja aos 5 anos, entrei e saí correndo. Sempre me interessei por arqueologia e mitologia. E encontrei no Helenismo a forma de seguir a espiritualidade que eu de verdade acredito"
Yannis Bantekas, geólogo
Oferenda helênica
Na Grécia, animais eram oferecidos como oferenda de sacrifício aos deuses do Olimpo. "Não era para os deuses, e sim para os próprios participantes se alimentarem. Os animais têm alma, são sagrados", explicou Panagiotis Kakkovas, funcionário público, um dos que pareciam mais devotos. "Quem está no altar foi escolhido de acordo com seu modo de enxergar a vida, o nosso cotidiano, nossas necessidades. Somos amigos e todos representantes de nossos ideais", também explicou. Os fiéis sempre levam a mão direita ao coração e, em muitos momentos, fecham os olhos.
Flores estão espalhadas pelo altar devidamente arrumadas em bandejas de prata ovais e buquês. Frutas, especialmente romãs, também estão organizadas. O velho e bom incenso também está presente. Vinho, mel, leite e trigo seriam os outros elementos oferecidos. Os três primeiros itens misturados em uma cumbuca escura para depois serem despejados, uma, duas, três vezes no recipiente religioso redondo ao centro.
Com uns vinte minutos de cerimônia, uma das guias deixou seu posto e, delicadamente com uma esponja, limpou a estátua de Apolo. E logo as demais. A cada sermão de um novo guia, se despejavam grãos de trigo sobre a cabeça de cada uma das estátuas que compunham a mesa — cada cerimônia é dedicada a um dos deuses e, portanto, a imagens distintas.
Domenica me explicou depois que, em geral, os louvores eram palavras de reflexão, de comunidade e compreensão entre os povos. A devoção se expressava no gesto: sempre o faziam com os braços abertos, clamorosos, com muitas expressões faciais, como se falassem verdadeiramente com os deuses.
"Não queremos que as pessoas troquem Jesus por Atena. Queremos que as pessoas saibam nossa história, nossa escola filosófica, para ter mais respostas em conceitos existenciais que qualquer pessoa possa ter"
Helena Petri, líder espiritual YSEE
Surgem alguns tambores e começa uma movimentação entre o grupo que assiste ao altar. Aliás, todos sempre ficam de pé. Não vi ninguém sentado. "Quem quiser, está convidado a fazer a sua oferenda", convida Petri, e a fila começa. Cada fiel oferece a mistura de vinho, mel e leite, e ganha um ramo de flores. Kostas tira fotos e nos sorri, como se mandasse a mensagem: "vocês não gostariam?".
Domenica me olhou, olhei para a Domenica. Ela não me contou o que pediu para os deuses, mas não pensei em outra coisa que não seja paz e amor para o Brasil.
"Chrónia pollá" (na tradução, "muitos anos", de vida, no caso) era o cumprimento geral entre todos após o final da cerimônia de oferendas e de todo o louvor em si, que durou algo em torno de uma hora. No melhor estilo "a paz de Cristo" das missas, todos me desejaram, e se desejaram, "muitos anos de vida". Esta é uma saudação grega tradicional, especialmente quando é o seu aniversário.
O risco de xenofobia
"Vejo este grupo como um chamado para um novo conceito de espiritualidade, que oferece um modo diferente de ser. Vejo isso com bons olhos. O cristianismo suprimiu muito o pensar das pessoas ao longo dos séculos. A minha dúvida e receio é se poderia existir qualquer tipo de conexão com movimentos de extrema-direita, ou segregação por motivos raciais ou sexuais, por exemplo", afirma Eleni Dimou, doutora em criminologia na Open University do Reino Unido e especialista em cultura grega.
"Já nos chamaram de espiões judeus, de Golden Dawn [partido neonazi grego], não tem nada disso", garante Yannis Bantekas. "Quem quiser acreditar no mesmo que a gente sempre será bem-vindo, sem distinção", diz Kostas.
Por duas vezes, o YSEE teve o pedido de conversão de grupo étnico em religião negado pelo Departamento das Ciências e Religiões, órgão do ministério da Educação, da Grécia. O sonho por ali não é ter a oportunidade de celebrar um culto em pleno Parthenon, como li em algumas reportagens. É apenas ter reconhecidas suas crenças após séculos de abandono.
"Apesar disso, vamos continuar lutando para que possamos ser capazes de ter um espaço religioso legal. Vamos tentar todo o possível, mesmo se precisarmos ir a algum tribunal em um contexto internacional", garantiu Petri. "Agora desculpem, necessitamos fechar tudo. São quase 23h, e temos que ir para a casa, nossos filhos estão nos esperando", despediu-se.
Em nota, a Igreja Ortodoxa da Grécia afirma que "garantir licenças e reconhecimento de templos de pregação é um direito constitucional. No entanto, é de inteira responsabilidade do Ministério da Educação e Religião. Não temos qualquer tipo de envolvimento em decisões do tipo".
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