Atentado a Porta dos Fundos é ato de "lobo solitário" ou ação integralista?
O ataque à produtora do grupo de humor Porta dos Fundos ganha contornos cada vez mais pitorescos à medida que a polícia avança com as investigações. Além do vídeo que circulou dois dias após o atentado, em que homens do autodenominado "Comando de Insurgência Popular Nacionalista da Família Integralista Brasileira", encapuzados, assumem a autoria do atentado, houve a fuga de Eduardo Fauzi Richard Cerquise para a Rússia, um dia antes do mandado de prisão ser expedido.
Até o momento, Fauzi está foragido na Rússia e os outros quatro participantes do atentado seguem desconhecidos. Mesmo assim, ele concedeu duas entrevistas para jornalistas brasileiros, explicando o ataque. Até agora, Eduardo foi o único dos cinco envolvidos no atentado a ser identificado.
Para Odilon Caldeira Neto, professor de História Contemporânea na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), o foco em Fauzi e sua caracterização como um homem solitário e perturbado que agiu movido pelas próprias convicções pode trazer problemas para se entender melhor o caso.
"Enxergar o atentado exclusivamente por meio de um personagem faz a gente se esquecer tanto do processo de socialização desse personagem, assim como ele também está envolvido de maneira mais ampla a um processo de radicalização em geral no país", ressalta.
A Polícia Civil do Rio de Janeiro já pediu à Interpol que Fauzi conste na lista de procurados, e o governo brasileiro anunciou que irá pedir sua extradição — o Brasil mantém acordo com a Rússia para a extradição de criminosos. A investigação prossegue para se descobrir a identidade dos outros quatro mascarados que organizaram o atentado. Em nota enviada ao TAB, a Polícia Civil disse que "os agentes analisam informações, provas obtidas e documentos".
Por ser o único sem capuz e por sua disposição em conceder entrevistas, Fauzi tem sido visto como um homem descompensado, agindo de forma individual ao atacar a produtora. Ele tomou para si a autoria do ataque e diz que o ato foi uma "prova de amor", pois o especial de Natal da produtora teria "ferido a crença". No entanto, Fauzi não agiu sozinho, como mostram os vídeos do ataque, e o histórico do carioca de 41 anos revela um processo de radicalização em direção a organizações de extrema-direita.
Militância neointegralista
Formado em Economia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Eduardo era filiado desde 2001 ao Partido Social Liberal (PSL) e possuía uma ficha policial extensa. Ao menos nos últimos anos, seu ativismo político se concentrou em grupos integralistas como a Frente Integralista Brasileira (FIB), a qual era associado, e a Associação Cívico Cultural Arcy Lopes Estrella (Accale).
Após a divulgação do envolvimento de Fauzi com agrupamentos integralistas, todas as organizações citadas afirmaram não terem qualquer envolvimento com o atentado. Em nota, a FIB anunciou a expulsão de Fauzi como integrante do grupo e a Accale afirmou que "cada um dos seus participantes tem livre arbítrio e deve responder por seus atos individuais". Já o PSL divulgou ontem (6) a expulsão do economista do partido.
Em 2018, Fauzi apareceu em fotos ao lado de membros da Accale em um evento para prestar homenagem Plínio Salgado e Arcy Lopes Estrella, militante integralista homenageado pelo grupo. A associação disse ao TAB que Fauzi era "membro ativo da organização" e já foi "mestre de cerimônias" em alguns eventos, "face à sua boa oratória e voluntariedade para esta função". Em outra publicação, o grupo disse que "não será surpresa o ocorrido, pois o Porta dos Fundos atacou deliberadamente e de forma calculista os maiores e mais cultuados símbolos sagrados nacionais, entre eles a figura de Jesus Cristo. Ao fazer isso, o Porta dos Fundos se indispôs com milhões de brasileiros".
Não há indícios de que a Accale e a FIB tenham qualquer envolvimento com o crime, mas a participação de Fauzi nas atividades dos grupos revela sua radicalização no seio do integralismo.
Ação em conjunto ou lobo solitário?
Nos últimos anos, diversos atentados e atos de terrorismo doméstico foram cometidos pelos chamados lobos solitários. Casos como o massacre de Isla Vista (na Califórnia, nos EUA), em 2014, e o ataque contra duas mesquitas na Nova Zelândia em março de 2019, são marcas de um tipo de crime cada vez mais comum, que reflete o uso da internet na radicalização de pessoas em ideologias de extrema-direita. No caso do atentado contra a produtora carioca, entretanto, a ação foi de um grupo organizado. "Chamá-lo de louco nos faz esquecer de analisar como a realidade está impactando esse indivíduo e como ele age em conjunto. São grupos pequenos, mas são grupos pequenos que agem em conjunto."
Caldeira também aponta para o espaço que Fauzi recebeu para expor seus motivos para o ataque, e que isso poderá abrir precedentes para outras figuras do neofascismo disputarem o campo político. "Não podemos esquecer que o começo da trajetória política do atual presidente Jair Bolsonaro teve uma suposta relação de Bolsonaro com os planos de bombas nos quartéis, um estopim para a trajetória política dele. Dar um espaço para que ele tenha uma análise, é um processo de alavancar a dimensão política, a capitalização política para esse tipo de indivíduo", diz.
A fragmentação do integralismo
Apesar de os mais importantes líderes integralistas terem morrido há décadas, o movimento segue ativo no país graças a pequenos grupos, que agem de forma fragmentada. Criado em 1932 por Plínio Salgado por meio da Ação Integralista Brasileira, a ideologia integralista se inspirou no fascismo internacional que estava tomando a Europa na época. Desde sua morte, organizações pulverizadas seguiram com suas atividades, inclusive tentando se aproximar de partidos políticos a partir da redemocratização (pós-1985).
Integralistas, ou melhor, o neointegralistas, têm aparecido cada vez mais, organizando eventos e demonstrações públicas em que exibem camisas verdes com o símbolo do Sigma e braços em riste fazendo a saudação do movimento.
Segundo o historiador, organizações como a Accale não só se aproximam de figuras caras ao integralismo e ao nacionalismo brasileiros mas também se inspiram em grupos neofascistas internacionais, como o italiano CasaPound, criado no começo dos anos 2000. Isso demonstra que o integralismo faz parte de um campo bastante plural de agrupamentos da extrema-direita, e tenta uma aproximação com diversos grupos que compartilham os mesmos inimigos e as mesmas pautas identitárias.
Uma das camisetas da Accale traz a frase "Revolta contra o mundo moderno", título do livro homônimo do filósofo italiano Julius Evola, um dos principais nomes do neofascismo europeu. Além de Evola, há também publicações exaltando Gustavo Barroso, um dos líderes integralistas mais próximos do conspiracionismo e do antissemitismo, e Enéas Carneiro, finado fundador do Partido de Reedificação da Ordem Nacional (PRONA). "O PRONA foi um partido de muita importância para a organização da extrema-direita brasileira, após o processo democrático", explica o historiador.
A fragmentação integralista em pequenos grupos não significa que não há intercâmbio com outras organizações da extrema-direita. Em um dos eventos organizados pela Accale, que contou com a presença de Fauzi, um representante da FIB-RJ aparece como palestrante.
Para Caldeira, a atuação crescente de grupos como a Accale nas ruas também incentiva outros agrupamentos a intensificarem suas atividades para ocupar espaços políticos. "Existe um processo de disputa", conta. "Com o crescimento na Accale, as outras organizações como a FIB passam a ver uma necessidade de intensificar suas atividades. Inclusive, ela voltou semanas atrás às ruas, usando uniformes verdes. Nós temos que olhar não só como um reflexo da radicalização da política majoritária brasileiro, mas também como uma disputa de espaço político no campo do neofascismo."
Extremos e diversos
Cabe dizer que também há diferenças entre o integralismo e o neonazismo. Como ressalta o historiador, o integralismo é uma ideologia criada na década de 1930 nos moldes da situação sociocultural do Brasil. "O integralismo brasileiro buscou pensar a realidade nacional para a criação de um movimento fascista. Isso significa que, para o movimento, o mito da democracia racial era fundamental, porque não seria viável criar um discurso contra etnias para uma nação completamente diversa em comparação com a alemã", diz.
Simpatizantes e membros de células neonazistas, como explica Caldeira, dificilmente pregam a ideologia em público. "Os neonazistas agem à sombra, não apenas porque suas atividades são consideradas crimes, mas também porque negam a diversidade étnica da sociedade brasileira. O neonazismo, não apenas no Brasil, está mais afeito a questões do terrorismo."
O atentado é uma novidade na atuação do neointegralismo, de acordo com a avaliação de Caldeira, mas não a radicalização envolvendo grupos extremistas. "O movimento tem aceitado a forma de se fazer política de uma perspectiva mais formal, se aproximando até de partidos. No entanto, é preciso levar em consideração que o neointegralismo teve suas tendências, como entre a década de 1980 e 1990, quando algumas organizações integralistas se aproximaram de agrupamentos de skinheads neonazistas", relembra.
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