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Pagode 90 humanizou o homem negro, mas deixou a negra fora da festa

Belo e os integrantes do Soweto, grupo que foi um dos símbolos do pagode dos anos 1990 - Joel Silva/Folha Imagem
Belo e os integrantes do Soweto, grupo que foi um dos símbolos do pagode dos anos 1990 Imagem: Joel Silva/Folha Imagem

Pedro Borges

Da agência Alma Preta, colaboração para o TAB, em São Paulo

05/04/2019 04h02

Resgatado em blocos e festas nos últimos tempos, com direito ao status de cult, o pagode dos anos 1990 ressurge agora como uma fundação sentimental do brasileiro. O movimento musical de três décadas atrás, quando era impossível não esbarrar em seus sucessos, deu visibilidade de uma forma apaixonada ao homem negro. Já as letras e escolhas afetivas dos cantores reforçaram o lugar secundário da mulher negra, descrita como "morena" nas canções e preterida em relação à branca.

O homem negro, por muitos associado a estereótipos de agressividade e criminalidade, apareceu como príncipe encantado, carinhoso e cuidadoso, que só quer sua amada de volta e "enfrentar essa dor que se chama amor".

Grupos como Katinguelê, Soweto e Negritude Jr. trouxeram logo no nome o marcador racial e apresentaram um negro inesperado para a sociedade: um sujeito que chora, morre de amor, manda um telegrama, uma carta de amor.

Os homens também choram

"No Brasil se tem essa ilusão de que homem não chora, sendo negro ou branco. São, digamos, devaneios machistas. Chora sim, e muito. Escondidinho, mas chora", conta Claudinho de Oliveira, ex-integrante do grupo Soweto.

Para ele, esse processo é mais delicado para o negro devido ao passado escravista e à presença do racismo estrutural na sociedade brasileira. "Desde a colonização da África, o negro é visto como um subumano. É um ser embrutecido, sem sentimento, que se restringe ao trabalho bruto e manual. Eis aí a justificativa para escravizá-lo, negando a sua humanidade", afirma.

Oliveira destaca o "Pagode 90" como um elemento importante para a reconstrução da humanidade do negro. "Uma das maiores virtudes é a difusão de ideias que reconhecem a humanidade do negro, porque nesse espaço o negro ama, chora, sente", afirma.

Na maior parte das letras de sucesso, o homem vive uma desilusão amorosa e está com o coração partido, sem chão ou referência depois do adeus da grande paixão. No gênero, o amor é sempre o caminho para a felicidade. Na música "Farol das Estrelas", do Soweto, Belo e todo o grupo cantam que "Se o brilho da nossa verdade; durar para a eternidade; a estrela da felicidade encontrei". Pegue um lenço, prepare o coração, porque é hora de refletir sobre o pagodão como você nunca havia feito.

Uma das organizadoras da coleção de livros "Sambas Escritos", Maitê Freitas acredita que esse gênero musicial em si é uma forma de crônica literária, que aborda vários temas, entre eles o amor. Para ela, músicos como Nelson Cavaquinho e Cartola cantaram sobre a paixão para um público diferente daquele que os pagodeiros dos anos 90 conquistaram e mantêm cativos.

O movimento cultural do Pagode 90 não à toa também ficou conhecido como "pagode romântico". Protagonizado por jovens que nasceram nas décadas de 1960 e 1970, que tinham como referência sambistas como Beth Carvalho, Fundo de Quintal e Arlindo Cruz, entre outros, o gênero também ficou guardado no imaginário popular como "pagode comercial", "pagode das gravadoras" ou "pagode pop".

Outras referências, que vão do norte-americano de Marvin Gaye a artistas nacionais como como Djavan, Tim Maia e Jorge Ben, colaboraram para a construção de um ambiente amoroso dentro da comunidade negra, o que também influenciou os pagodeiros. "Tudo isso vai fixando um elemento lírico na cultura popular negra, e o pagode dos anos 90 é mais um dos seus desdobramentos", conta Oliveira.

As inovações pagodeiras

As músicas, antes feitas em rodas de samba, passaram a ser produzidas em (por) gravadoras e sob demanda, inclusive com a regravação de sucessos nacionais e internacionais de outros gêneros - é o caso de "Do fundo do meu coração", de Roberto Carlos, que ganhou uma versão do Raça Negra.

Os artistas da época foram responsáveis por introduzir no samba uma série de novos elementos musicais para esse universo, como saxofone e teclado. Mas esse movimento foi também influenciado por nomes da música pop norte-americana, como Michael Jackson. Os pagodeiros tinham que apresentar coreografias, figurinos combinados e efeitos especiais nos shows.

Netinho e os integrantes do Negritude Júnior, grupo que usou música dos Jacksons 5 na música "Cohab City" - Divulgação - Divulgação
Netinho e os integrantes do Negritude Júnior, grupo que usou música dos Jacksons 5 na música "Cohab City"
Imagem: Divulgação

Essas mudanças, porém, não foram bem avaliadas por parte dos sambistas tradicionais. O movimento Pagode 90 foi reprovado por figuras importantes da música como Nei Lopes, que criticou o estilo iminentemente paulistano e comercial derivado das festas (pagodes) dos anos 1980 em Ramos, subúrbio carioca, berço do Fundo de Quintal.

"O que era uma revolucionária forma de compor e interpretar o samba, fruto de um movimento estrutural, passou a ser apenas uma diluição, expressa em um produto sem a malícia das síncopes, sem as divisões rítmicas surpreendentes de melodias e harmonias intencionalmente primárias, letras infantilmente erotizadas, com arranjos sempre previsíveis e cada vez mais próximo da massificação do pop", escreveu Lopes em seu livro "Sambeabá".

Independentemente das críticas, o público adorou a proposta, e as músicas foram um sucesso. Uma das referências desse momento é o Raça Negra. Lançado em 1983 com o objetivo de animar churrascos ao fim de partidas de futebol de várzea, o grupo explodiu na década seguinte. A música "É Tarde Demais", por exemplo, entrou para o Guinness Book na época como a música mais tocada em um único dia no mundo.

O sucesso se refletiu na mídia. Havia os programas "Ligação", na TV Gazeta, e o "Samba, Pagode e Cia.", na TV Globo. No rádio, ao menos em sete emissoras - Gazeta FM, Cidade FM, FM, 105, Bandeirantes, Tropical, Tupi e Transcontinental - cerca de 80% da programação musical era feita de pagode. Revistas especializadas, como "Cavaco", "Pagodenopé", "Revista do Samba" e "Ginga Brasil" estavam nas bancas. O gênero, porém, não escapou da lógica de mercado e saturou o público. Já no início dos anos 2000, outros formatos de música ganharam a audiência.

"Loirinha, cafungada do negão é um problema"?

Se o samba é uma tecnologia social que critica e subverte a lógica dominante, como no caso de humanizar o homem negro, o gênero também é capaz de reforçar lugares sociais, afirma Maitê Freitas: "As relações dentro do samba acabam sendo contaminadas e reproduzem essas estruturas machistas, racistas, ali nas relações interpessoais."

Um dos exemplos dessa reprodução é a escolha afetiva dos artistas e cantores. Descrito nas letras como apaixonado pela sua comunidade, o pagodeiro dessa geração dava a entender que não tinha como foco a conquista da mulher negra. Hit do grupo "Cravo e Canella", a música "Lá Vem o Negão" serve de exemplo para esse pensamento.

A letra descreve um "negão cheio de paixão", que tem o interesse em dar uma "cafungada" na "loirinha" e se relacionar com ela. Essa escolha emocional se transpõe para a vida desses cantores, que em muitos casos também optaram por se relacionar com mulheres brancas e famosas, conta Ícaro Rodrigues, arte-educador e autor do artigo "Pagode 90: A Construção da Afetividade do Homem Negro Periférico", publicado na série "Sambas Escritos".

"Assunto comum na nossa história de afetos e debatido há tempos pelo movimento negro, o relacionamento interracial pode ser lido como uma estratégia, consciente ou não, de inserção social e embranquecimento", explica.

Alexandre Pires, na época vocalista do grupo Só Pra Contrariar, posa com a então namorada Carla Perez, do É o Tchan - Rogério Soares/Folhapress - Rogério Soares/Folhapress
Alexandre Pires, na época vocalista do grupo Só Pra Contrariar, posa com a então namorada Carla Perez, do É o Tchan
Imagem: Rogério Soares/Folhapress

Tadeu Kçula, sambista, sociólogo e pesquisador de cultura e territórios negros, viveu de perto o momento e acha que essa foi uma questão "grave" no gênero, na medida em que os homens negros viam e vêem a possibilidade de se relacionar com uma mulher branca como a consolidação de uma ascensão social.

"Muitos homens desses grupos de pagode abdicaram de ter uma vida estável com as suas companheiras negras e acabaram se deixando levar por uma questão midiática. Isso, de uma certa forma, para algumas das pessoas desse universo, é sinônimo de ascensão social, o que é um grande erro. Ascensão social não está no fato de você se relacionar com uma mulher branca ou negra", critica.

Claudinho de Oliveira concorda que muitos desses artistas preferiram se relacionar com mulheres brancas, mas afirma que esse não é um problema exclusivo da música.

"O que é preciso pontuar aqui é que a questão de fundo é institucional, para o bem e para o mal. Afeta a família, a igreja, a escola, a mídia e outras mais instituições poderosíssimas, mais poderosas a perder de vista do que pagode anos 90. Aquele jargão "é preciso clarear a família" é algo muito presente", afirma.

Ele recorda, porém, que parte significativa desses artistas também se relacionou com mulheres negras, o que não era noticiado pela grande imprensa. "Haveria de investigar a vida pessoal de cada pagodeiro para desvelar aquilo que talvez as mídias não tiveram o interesse em mostrar ao público: os famosos com negras. Eu vi um monte de pretinho com pretinha nos aeroportos, indo em show de graça, colando nos bastidores, em programa de TV, nos pagodes nas periferias. Talvez fosse até o caso de nos perguntarmos: qual o lugar de visibilidade que a mídia destina à mulher negra?", diz.

Ícaro, porém, recorda que hoje a realidade é bem diferente da vivida naquela época. A televisão reforçava, mais do que faz hoje, o padrão de beleza branco, e não havia um espaço midiático para mulheres negras.

"A gente foi ter recentemente uma novela em que o Lázaro Ramos e a Camila Pitanga fizeram um par romântico ('Lado a Lado', de 2012), o que é muito raro. Mas hoje a gente consegue ver alguns personagens negros ocupando outros espaços que não a cozinha. Era inviável para esse cara, na década de 1990, que a ascensão social não tivesse a ver com o encontro com uma mulher que representasse esse imaginário", afirma.