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Na hipervigilância, filmar 'carteirada' ajuda a coibir o abuso de poder?

Desembargador rasgou multa que recebeu por não estar utilizando máscara em local público                              -                                 Reprodução
Desembargador rasgou multa que recebeu por não estar utilizando máscara em local público Imagem: Reprodução

Tiago Dias

Do TAB

24/07/2020 12h01

Durante a pandemia, vídeos amadores feitos pelo celular têm mostrado um lado nada cordial do Brasil — conhecido à boca miúda, revelado em muitas investigações, mas poucas vezes exposto de forma tão clara, em sequência, à população.

O vídeo da vez nos explica o que é abuso de autoridade, ao mostrar o desembargador do TJ-SP Eduardo Almeida Prado Rocha de Siqueira intimidando guardas civis municipais que o abordaram por estar sem máscara, na orla de Santos, litoral sul de São Paulo. O caso aconteceu no sábado (18).

O registro não foi feito às escondidas, e naquele momento Siqueira não exercia sua função de desembargador, mas nada disso o impediu de chamar o agente de "analfabeto", rasgar a multa e dar a famosa "carteirada", ao afirmar que conhecia o Secretário de Segurança Pública do município e de telefonar para ele, pedindo que o mesmo "intimidasse" o guarda municipal.

Apesar da indignação, esse é apenas um entre tantos registros explícitos das contradições e desigualdades brasileiras. A diferença é que, agora, os episódios são testemunhados por um olho onipresente — e que está no bolso de qualquer cidadão: um smartphone com câmera.

Numa era em que o monitoramento de espaços públicos e privados ganha protagonismo no debate sobre vigilância em todo o mundo, essa ferramenta disseminada entre tantos brasileiros ganha uma função vigilante, mirando fatos e casos que os avançados circuitos de câmeras não conseguem revelar.

Esses registros, feitos por cidadãos ou, no caso do desembargador, por um agente público, revelam uma espécie de patologia da autoridade no Brasil.

"Parece ser uma necessidade de autorreconhecimento, de potência e de domínio, muito exacerbada", observa o sociólogo Henrique Garbellini. "[No caso do desembargador] É um tipo de lógica narcísica, em que a autoridade da toga se estende a todos os âmbitos da vida privada e pessoal."

Para ele, a vigilância coletiva, feita por qualquer pessoa, em qualquer situação, consegue abalar essa noção — como no episódio do casal do Rio de Janeiro que intimidou um agente de vigilância sanitária durante inspeção em bares por causa do novo coronavírus. Munida de um celular, a mulher registrou orgulhosa o embate, mas a sociedade viu a cena com outra lente quando ela defende o companheiro: "Cidadão não, engenheiro civil, formado, melhor do que você". A tentativa de intimidar os servidores públicos segundo um argumento de autoridade deu errado. A cena virou meme.

"Esta é uma vigilância que pode desnudar as questões de autoritarismo que a gente vivencia, de pequenos poderes e, às vezes, de grandes poderes", diz Garbelli. "O conceito de autoridade hoje em dia é o conceito daquele que, de algum modo, consegue exercer certa vigilância, e os papéis começam a ser trocados. Nas pequenas experiências cotidianas, essas noções aparecem."

Celular é antídoto?

O Código Penal já prevê punições ao crime de concussão (artigo 316), que ocorre quando um funcionário público exige "para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida". Além disso, a lei 13.869, sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro em setembro de 2019, também define situações que configuram abuso de autoridade. No entanto, há uma discussão de que a "carteirada" precisaria de uma lei específica para ser coibida.

Existe um projeto de lei do senador Romário (Podemos-RJ), conhecido como "lei da carteirada", que determina suspensão do cargo ou função pública de 30 a 180 dias até detenção de três meses a um ano. A pena é aumentada em um terço se o abuso for cometido por autoridades como membros do Judiciário, do Ministério Público e do Legislativo. No entanto, o PL está parado no congresso desde 2015.

Para Nathalie Fragoso, coordenadora da área de Privacidade e Vigilância da InternetLab, um centro de pesquisa independente de direito e tecnologia, o celular é uma arma fundamental para fortalecer essa perspectiva diante da sociedade, mas não consegue ser agente de transformação. "Daí a supor que essa demonstração da desigualdade do abuso é suficiente para alterar essas estruturas, eu acho que é um salto grande."

Flagrados e julgados

Em quase todos os casos de abuso de autoridade e poder, os personagens em questão parecem não ligar para o fato de estarem sendo filmados. A ficha cai quando as mesmas imagens ganham as redes sociais. Uma vez exposto no tribunal público, o histórico dos personagens envolvidos começa a vir à tona. Dias depois de um novo vídeo revelar outra intimidação sua, o desembargador publicou uma nota se desculpando pelo gesto.

À imprensa, o casal do Rio de Janeiro afirmou não se arrepender da "carteirada", mas reclamou do "linchamento nas redes sociais". "Socialmente não existimos mais, estamos com muito medo."

Para o sociólogo Henrique Garbellini, essa reação raivosa é efeito da vida digital, mas reflete também uma espécie de domínio do poder. "Antes havia vigilância de governabilidade, mas agora a vigilância é de nós mesmos. Querer vigiar muito o outro é querer uma experiência de domínio sobre o outro. Onde está o poder agora? Dependendo da filmagem que eu fizer, eu tenho o poder", observa.

Mas há algo de perverso ao poder flagrar o outro — quem quer que seja. "A gente vive uma espécie de espetacularização da vida. Os elementos que compõem essa lógica narcisista, essa lógica individualista, são capitalizados por meio desses dispositivos tecnológicos que permitem essa vigilância total."

Para ele, esse comportamento cria uma dinâmica que atualiza o conceito do panóptico (termo utilizado para designar uma penitenciária ideal, concebida pelo filósofo utilitarista e jurista inglês Jeremy Bentham) no século 21: aqui, estamos todos na prisão, sendo guardas e detentos ao mesmo tempo.

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Imagem: Pixabay

Violência monitorada

Um vídeo de celular foi capaz de levar milhares de pessoas às ruas, no meio de uma pandemia. O mundo paralisou, ao ver o norte-americano George Floyd ser morto sufocado pelo pé de um policial. Semanas depois, em São Paulo, dois episódios chocaram pela coincidência dos gestos. Um policial militar foi flagrado pisoteando o pescoço de uma mulher negra e, na mesma cidade, a mesma PM foi filmada sufocando um motoboy, que repetiu as mesmas palavras de Floyd: "Não consigo respirar".

Em comum, imagens feitas por celulares e alvos já conhecidos, mas pouco ouvidos.

"Algumas vozes são menos consideradas, e essas imagens vêm como a demonstração cabal de que existe violência policial, existe abuso de poder, e que, embora possa ser parecer algo pontual, não é", observa Fragoso. "Essas imagens cumprem um papel de demonstração de violações de direitos que precisam ser endereçados para a sociedade."

A vigilância pode servir a muitos interesses. A partir de um celular, dá tanto para registrar um abuso, um crime ou invadir a privacidade de mulheres em ambientes públicos. E um circuito complexo de câmeras estatais pode ajudar a dar força a um regime totalitário, mas também auxiliar no controle da pandemia.

"Não adianta a gente querer usar um discurso de que 'tem que acabar com isso'. Na verdade, a gente tem que aprender a lidar com isso. O registro da morte de George Floyd fez o movimento antirracismo sair às ruas", diz Garbellini.

Com todos vulneráveis ao olhar alheio, Nathalie Fragoso, da InternetLab, alerta que é preciso sempre entender o impacto e a origem das imagens. "É preciso verificar de quem são esses olhares, de quem são esses dispositivos e para que eles estão operando."

Especialista em Direitos Digitais e pesquisadora do IDEC - Insituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, Bárbara Simão alerta que, apesar da força simbólica dessas filmagens, o benefício real ainda é relativo quando o foco são as câmeras de circuito fechado espalhadas pelas grandes cidades.

"A tecnologia de vigilância, quando utilizada de maneira estruturada, como em câmeras CFTV ou de reconhecimento facial, dificilmente vai mirar esses abusos, porque elas também estão orientadas por uma lógica que reproduz racismo e machismo. Essas tecnologias têm uma taxa de erro bastante elevada quando aplicadas a pessoas negras e mulheres."