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'Black is King': intelectuais negros falam sobre texto de Lilia Schwarcz

Beyoncé durante cena de seu novo trabalho, Black is King (Twitter/Reprodução) - Reprodução/Twitter
Beyoncé durante cena de seu novo trabalho, Black is King (Twitter/Reprodução) Imagem: Reprodução/Twitter

João Vieira

Colaboração para o TAB

05/08/2020 12h00

As incessantes tragédias têm tornado difícil para a comunidade preta a missão de reverenciar sua ancestralidade e imaginar um futuro próspero e afrocentrado, ou seja, onde África e a diáspora (imigração forçada) sejam a bússola de um novo projeto de vida.

Esta é uma entre tantas propostas de Beyoncé no filme "Black is King", lançado pela Disney como conteúdo exclusivo do seu serviço de streaming, o Disney Plus. A peça ilustra a narrativa do álbum "The Gift", feito em cima do remake de "O Rei Leão", onde a cantora dubla a personagem Nala.

"Black is King", inclusive, é uma releitura do clássico Disney protagonizado por Simba. Só que aqui, o filho de Mufasa se transforma em um garoto negro que enxerga em seus ancestrais e sua cultura de origem a força para encarar os tempos atuais e mudar o futuro. Diferentemente do desenho animado, o lançamento da artista inverte a lógica da tragédia shakespeariana de Hamlet, príncipe da Dinamarca, que busca vingar a morte do pai, o rei, cometida por seu irmão, Cláudio, como aponta a antropóloga Lilia Moritz Schwarcz em seu artigo publicado na Folha de S.Paulo no último domingo (2), sobre o filme de Beyoncé.

Em seu texto, Lilia, professora da USP (Universidade de São Paulo) e da Universidade de Princeton (EUA), autora, entre outros, do "Dicionário da Escravidão e Liberdade", teoriza que, apesar de chegar em boa hora, fortalecendo o pulso das manifestações mundo afora contra o genocídio da população negra, o filme destoa dos anseios atuais da comunidade por recorrer a "imagens tão estereotipadas" que criam "uma África caricata e perdida nos tempos das savanas isoladas".

"Neste contexto politizado e racializado do Black Lives Matter, e de movimentos como Decolonize This Place, que não aceitam mais o sentido único e Ocidental da história, duvido que jovens se reconheçam no lado didático dessa história de retorno a um mundo encantado e glamourizado, com muito figurino de oncinha e leopardo, brilho e cristal", ela diz.

Brancos podem dar pitaco?

O texto de Schwarcz rendeu críticas entre intelectuais e influenciadores negros nos últimos dias. Diversos recorreram às redes sociais para manifestar repúdio ao fato de, na visão deles, a historiadora, uma mulher branca, estar dizendo a Beyoncé como ela deve retratar sua própria história enquanto mulher negra. A jornalista Aline Ramos afirma, em texto publicado na sua coluna no UOL, que a opinião de Schwarcz não causou indignação por apresentar uma visão negativa do filme, mas sim por "desdenhar do trabalho e da importância de Beyoncé dentro da indústria cultural".

Antropóloga social, Izabel Accioly também conversou com o TAB sobre o tema. Na visão dela, carece em análises de pessoas brancas colocar como referência o olhar da negritude e sua relação com determinados temas. "A branquitude acha que é universal, está sempre pensando a partir de suas próprias narrativas e faz, a todo custo, movimentos de apagamento de outras narrativas. É incapaz de compreender outras referências e analisar a partir de um referencial negro", diz ela. "Por isso, parte de um olhar enviesado sobre o que produzimos, o que falamos e o que somos."

Brancos podem, então, dar pitaco sobre vivências negras? "Mais do que tentar analisar algo que não conhecem, brancos deveriam analisar e repensar seu pertencimento étnico-racial, a branquitude. Em vez de adotar um ar soberbo, deveriam ouvir quando não têm nada de edificante a falar", diz Accioly.

Para Monique Evelle, empreendedora e comandante do podcast "Fora da Curva", do TAB, lugar de fala também tem a ver com o contexto social onde se está inserido. "A diferença é como a gente usa. Não é sobre poder ou não falar. É sobre entender que, a partir do lugar e do contexto em que você está inserido, você acha realmente que deveria opinar sobre relações raciais de outros grupos étnicos?".

Beyoncé e a representatividade preta

A carreira de Beyoncé se transformou na década de 2010. Se, até então, a cantora colocava sua negritude de forma menos incisiva, abusando de elementos da música negra do século passado, valorizando a cultura hip-hop e dando espaço para releituras de clássicos de antigas divas da black music, de 2010 para cá a artista passou a colocar o dedo na ferida e falar diretamente sobre a população negra.

Em "Lemonade" (2016), Beyoncé faz críticas diretas contra violência policial que assombra negros (não só) nos Estados Unidos. E agora, com "The Gift" e "Black is King", ela se aproveita da janela conquistada ao dublar Nala no remake de "O Rei Leão" para desenvolver uma narrativa de realeza negra.

Beyoncé no clipe de Formation, single de Lemonade - YouTube - YouTube
Beyoncé no clipe de Formation, single de Lemonade
Imagem: YouTube

"O conceito que Beyoncé nos apresenta é de criação de um lugar bom próspero e seguro para o povo negro. Ela pensa esse lugar sem esquecer nossas origens e nossas referências. Faz como o Sankofa, o adinkra, que significa 'retornar ao passado para ressignificar o presente e construir o futuro'", diz Izabel Accioly. "Acho que a gente está tão acostumado a viver essa vida em que estamos separados, e também a ver nossos irmãos pretos em lugares subalternos, que quando chegamos a esse ponto de ver uma produção como a que Beyoncé apresenta, que nos mostra outras possibilidades em um local possível, em que a família negra está unida, em que o povo negro está unido, isso é muito representativo. É uma reconexão consigo mesmo."

A autoridade da mulher negra como dona de sua jornada também é vista como importante dentro da narrativa proposta por "Black is King" e por trabalhos recentes de Beyoncé.

Para Evelle, essa autoridade sempre existiu, com a diferença de que agora ela tem o "aval" da sociedade. "Com toda a repercussão pós-George Floyd nos Estados Unidos, as pessoas acenderam o sinal de alerta relacionado a raça, sobretudo a branquitude, que agora está se movimentando um pouco mais para entender essa luta antirracista e como ser antirracista, mas não significa que, antes, as mulheres negras não tivessem importância para movimentar as estruturas da sociedade."

Monique Evelle - Divulgação  - Divulgação
Monique Evelle
Imagem: Divulgação

Romantização da monarquia?

Parte da comunidade criticou "Black is King" por relacionar o afrofuturismo a uma suposta romantização da monarquia, regime geracional que já promoveu desigualdades e escravidão.

Professor e pesquisador da história da cultura negra, com ênfase no Ceará, Hilário Ferreira julga a crítica como procedente, mas afirma que o conceito de realeza é utilizado por Beyoncé como forma de desconstruir uma visão histórica de inferioridade do negro, visto sempre como escravizado, e de desvalorização do continente africano. "Quando se trata dessa questão dos reinados, você também traz embutida aí a ruptura com aquela visão, também dentro de uma perspectiva 'epistemicida', de matar o conhecimento — que o europeu sempre fez sobre África — e dele escrever uma visão equivocada desse continente, do qual ele é um reflexo do filme Tarzan, em que a África é vista a partir dessa perspectiva construída pelo europeu, como um continente atrasado, de tribos", diz ao TAB.

O professor também faz questão de valorizar o afrocentrismo e a organização da comunidade. "Creio que dentro dessa realidade de genocídio em qual vivemos, o pensamento afrocentrado e as produções afrofuturistas têm um papel fundamental no próprio empoderamento de uma identidade sólida, de um referencial de valorização de autoestima, que irá contrapor todo esse processo de invenção do negro, onde este negro é criado e identificado com o objetivo de inferiorizá-lo", aponta.

Lilia admite soberba

Em publicação no seu Instagram nesta terça-feira (4), Lilia se desculpou pelo artigo publicado. "Não deveria ter aceito o convite da Folha, a despeito de apreciar muito o trabalho de Beyoncé; seria melhor uma analista ou um analista negro estudiosos dos temas e questões que a cantora e o filme abordam. Ao aceitar, não deveria ter concordado com o prazo curto que atropela a reflexão mais sedimentada. Deveria também ter passado o artigo para colegas opinarem. Não ter dúvidas é ato de soberba. Também não deveria ter escrito aquele final; era irônico e aprendi que é melhor dizer, com respeito, do que insinuar", disse ela.