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Drake e Kendrick mostram que hip hop é garoto-problema em festivais no país

Drake, em apresentação no Rock in Rio 2019 - Theo Skudra/Reprodução Instagram @champagnepapi
Drake, em apresentação no Rock in Rio 2019 Imagem: Theo Skudra/Reprodução Instagram @champagnepapi

Amanda Cavalcanti

Colaboração para o TAB, em São Paulo

08/10/2019 04h00

Na primeira sexta-feira do Rock in Rio 2019, em 27 de setembro, subiu ao palco o único headliner desta edição do festival no auge da popularidade. Minutos depois de cancelar a transmissão ao vivo de sua apresentação pelo Multishow, o canadense Drake abriu seu show com uma versão de "Aquarela do Brasil", rimando os primeiros versos de "Started From the Bottom", uma das 35 (!) músicas do rapper a entrar no top 10 das paradas da Billboard em dez anos de carreira.

O show foi impecável: em cerca de duas horas, Drake embalou a plateia do Rock in Rio com alguns de seus maiores hits - "Know Yourself", "Energy", "God's Plan", "Hold On We're Going Home" -, faixas antigas e uma presença de palco carismática. Teve até um tempinho pra uma demonstração de virtuosismo vocal a la "The Voice" na romântica "Passionfruit".

Mas o público daquela sexta-feira de festival, que teve seus ingressos esgotados pouco mais de uma semana antes, não pareceu tão convencido. No dia seguinte, nas redes sociais, havia reclamações por conta do cancelamento da transmissão televisiva, e a própria apresentação do rapper foi criticada. Um tuíte muito repercutido falava da falta de iluminação no palco, o suposto playback do rapper e o fato de que grande parte das músicas eram cortadas após o primeiro refrão. A funkeira e influencer Dani Russo também deu sua opinião sobre o show, destacando que os brasileiros precisavam parar de "pagar pau para gringos" - para ela, Drake podia ir embora do Brasil, pois aqui "temos o Matuê".

Fama de mau

Esse tipo de repercussão não é incomum para shows de rappers gringos em festivais no Brasil. O show do Kendrick Lamar no Lollapalooza 2019, apesar de ter sido aclamado por críticos e elogiado nas redes sociais, foi assistido pelo menor público que compareceu àquela edição do festival - ele também vetou a transmissão pela TV. A apresentação de Kanye West na SWU 2011 foi classificada de "cansativa" e "cafona" por veículos de imprensa, e aparentemente também não conquistou o público do festival. Neste mesmo ano, o agora finado Odd Future de Tyler, the Creator "deixou a desejar" e foi mais destacado por suas peripécias no palco do que pela qualidade musical do show. Nem Eminem escapou das duras críticas com seu show no Lollapalooza em 2016, marcante por ter "afugentado o público" do festival.

Kendrick Lamar se apresenta no Lollapalooza Brasil 2019, em São Paulo - Manuela Scarpa/Brazil News - Manuela Scarpa/Brazil News
Kendrick Lamar se apresenta no Lollapalooza Brasil 2019, em São Paulo
Imagem: Manuela Scarpa/Brazil News

Isso quando os shows chegam a acontecer. O histórico de cancelamento de shows de rappers em festivais por aqui também é espantoso: o show de Drake, antecipado pela morna apresentação da inglesa Ellie Goulding, originalmente teria como abertura a rapper nova-iorquina Cardi B, que cancelou sua participação no Rock In Rio dois meses antes do festival. O canadense também teria sido o segundo rapper headliner no festival, não fosse o cancelamento do veterano Jay-Z na edição de 2011 do Rock In Rio. Tyler, the Creator e Snoop Dogg também cancelaram shows no Lollapalooza Brasil nos últimos anos.

Segundo o jornalista e produtor Lucio Ribeiro, responsável pelo festival indie Popload, o interesse em trazer o hip hop para os festivais aumentou nos últimos anos - não à toa, em 2015 o Emicida se apresentou antes do Iggy Pop no primeiro dia de festival e, na edição de 2019, a rapper britânica Little Simz faz parte do line-up. Ele reconhece, no entanto, que o risco envolvido é grande, especialmente para artistas maiores.

"Há um certo problema mesmo em trazer certas atrações de hip hop, porque essas atrações, quanto mais bombadas, mais instáveis de fechar um contrato", conta Ribeiro, que diz já ter tido um show agendado e posteriormente cancelado pelo rapper A$AP Rocky. "Já tentamos trazer outras atrações do mesmo gênero musical, que não andaram favoravelmente para a realização da vinda. É delicado para um produtor brasileiro arriscar seu pescoço e dinheiro para fazer um show de hip hop acontecer, pela característica do gênero, das pessoas do gênero."

Há também um desequilíbrio entre a popularidade desses artistas nos Estados Unidos e Europa e seu público no Brasil. Se atrações como Childish Gambino, Migos e Travis Scott são sucesso na Billboard e capazes de se apresentar para públicos enormes em festivais como os gigantes Coachella e a versão original do Lollapalooza, no Brasil eles dificilmente são tocados nas rádios ou entram nas listas dos mais ouvidos em plataformas de streaming. O cachê cobrado por esses artistas para shows fora, então, pode se tornar inalcançável pelo público que eles teriam por aqui.

O autor e especialista em cultura negra Ale Santos, no entanto, acha que o buraco da falta de sucesso das atrações de hip hop em grandes festivais é um pouco mais embaixo e está ligado ao racismo estrutural e baixo poder aquisitivo da população negra no Brasil. "O rap ainda está conectado a uma periferia, à galera que não tem grana para pagar R$ 400, R$ 600, R$ 800 num ingresso de festival", fala.

"Os fãs, a galera que está ouvindo no streaming, que está fazendo o Djonga ganhar prêmios, que está fazendo o Baco Exu do Blues ter um hype muito grande sobre ele, não consegue pagar muito caro." O ponto de Ale é reforçado pelo sucesso de festivais pequenos ligados à música negra, como o Batuque, realizado anualmente no Sesc Santo André desde 2009 e que já contou com atrações como Joey Bada$$, Digable Planets e Erykah Badu. Os ingressos são vendidos a no máximo R$ 30.

O grosso dos frequentadores desses grandes festivais, para Santos, é formado por uma classe média mais alta (um dia no RiR custou R$ 525; no Lollapalooza 2019, custava R$ 800), com poder aquisitivo maior, mais conservadora e menos aberta a novas atrações. Não à toa, no Rock in Rio 2019, bandas como Foo Fighters, Tenacious D e Panic! At The Disco contaram não apenas com seus próprios hits antigos, mas também com covers de bandas como Queen e Nirvana para conquistar o público do festival. Para quem está acostumado a dez minutos de solo de guitarra, baixo e bateria vindo de Dave Grohl e sua trupe, ouvir Drake cortando as músicas pela metade parece, de fato, esquisito.

A atenção aos rappers, porém, apesar da dificuldade, parece cada vez maior. Ao longo dos últimos anos, rappers brasileiros também conquistaram mais espaço entre as atrações nacionais dos festivais: BK', Rincon Sapiência, Baco Exu do Blues, Rael, Rashid, entre outros, pisaram nos palcos do Rock in Rio ou Lollapalooza. Em entrevista, BK' afirma que a indústria da música está vendo que o rap movimenta muita gente. independentemente de gravadora.

Os rappers têm incentivado até mesmo o surgimento de novos festivais: em novembro de 2019, o festival Cena acontece pela primeira vez com o trapper Young Thug como sua atração principal.

Para Santos, esse é o caminho óbvio dado o destaque da arte negra em todas as formas de entretenimento. "Filmes como 'Pantera Negra' têm atingido sucesso, séries negras da Netflix têm tido notoriedade, e esses festivais vêem isso", fala. "É um conflito, uma ironia: eles querem abraçar a cultura negra, mas os preços não permitem que esse público frequente os eventos."