Valor de face

Tatuagem no rosto vira tática de choque na nova cena musical

REPORTER

O cantor norte-americano Post Malone tatuou na testa "Stay Away" (Fique Longe) e conseguiu mais seguidores em suas redes sociais. Parece paradoxal. Mas é a lógica dentro de uma cena musical cada vez mais dependente das plataformas digitais. A transgressão das letras que sobem para a nuvem do Soundcloud ou do Youtube deve ser compatível com um rosto do Instagram rapidamente reconhecível por suas inscrições.

A estratégia de chamar a atenção pelo choque acontece nos EUA e se replica no Brasil, tanto entre novatos do rap quanto no funk. A gravação no rosto parece ser parte de um ritual de passagem (sem volta) para a carreira artística (por vezes os riscos são arriscadamente feitos antes da fama), renunciando a boa parte dos empregos que pedem um padrão de aparência - quem sabe daqui a 10 ou 15 anos uma tatuagem facial seja tão convencional como desenho de coração no ombro é atualmente.

O rosto tatuado é tradição em povos como os maoris da Nova Zelândia e foi adotado por presidiários e gangues no século 20. Agora a decoração tem lágrimas, cruzes, espadas, arames farpados, corações quebrados e até logos de empresas. Ficam na cara os sinais de vidas, valores e provocações.

MARCAS DA VIDA

As cicatrizes da alma também podem ser desenhadas na carne. MC Igu, do grupo de trap Recayd, tatuou o nome das duas filhas no rosto. Kaore, em preto. Stella, em vermelho e de ponta cabeça, embaixo do olho esquerdo. Kaore, infelizmente, morreu.

Igu, que é descendente de japoneses, sabia que tatuando o rosto não iria conseguir trabalho tão fácil caso a música não virasse. "Eu fiquei meio inseguro e pá. Eu tava começando a ganhar dinheiro com a música. E eu ainda moro em Itapetininga, no interior de São Paulo. Lá, muita gente não entende. Me questionaram bastante. Falaram que nunca mais iria arrumar emprego na minha vida", conta.

O QUE MAMÃE VAI FALAR?

Companheiros de MC Igu no fenômeno Recayd Mob, Dfideliz e Derek passaram pelos mesmos dilemas. "Quando eu fui fazer a primeira vez pensei: `É agora ou nunca´. Era 2017, e o trap não estava tão em alta. Sabia que se tatuasse o rosto não arrumava mais nenhum trampo", conta Derek.

Já Dfideliz, que marcou uma cruz, mãos rezando e palavra "faith" (fé), pensou primeiro na reação de uma pessoa. "Na primeira foi uma decisão difícil. Pensei que minha mãe ia me matar. Eu tinha 17 anos na época. Depois de finalizada, eu olhei no espelho e amei", relata.

CORTANDO A PRÓPRIA CARNE

A rapper e ativista trans Jup do Bairro desenha desde criança e rabiscou todas as tatuagens que depois ela fez sobre a pele. Escrever "vaso ruim" na testa foi um drama pra ela. "Fiquei quase 12 horas eu mesma fazendo na frente do espelho com uma agulha", conta Jup do Bairro. "Cheguei a pensar em desistir quando terminei a palavra vaso, mas ficar com vaso na testa não ia rolar. Aí continuei e terminei". Moradora do Capão Redondo, periferia de São Paulo, a multiartista acompanha a estrela Linn da Quebrada em shows e programas de TV.

SUA PELE, SUA LUTA

Jupi77er é MC do grupo Rap Plus Size. Tanto na música quanto na pele, as questões de gênero e a gordofobia dominam sua luta. Atualmente, Jupi77er se define como trans não binário, com RG retificado e tudo. Fez uma tatuagem de rinoceronte no pescoço para sua coleção de animais de grande porte na epiderme - tem uma baleia e um hipopótamo também.

Perdeu a conta de tatuagens que tem no corpo e faz uma nova a cada viagem de seu grupo. Fez o "77" de seu nome artístico na bochecha. E desenhou um portão celestial sobre a garganta após um sonho que teve. Seu canto e suas palavras podem significar sua glória na Terra.

CORPO GRAFITADO

Ele tem 10 tatuagens no rosto, e 54 é o total no corpo. A primeira foi aos 15 anos e não parou até agora, aos 29. "Quero tatuar cada canto da minha pele, principalmente onde falta no rosto", diz Rafael da Cunha, conhecido como Dubeat de tanto fazer beat box nas batalhas de MCs de São Paulo. Seu corpo parece as paredes da cidade, coberta de grafites, pixações e tantas referências que é impossível decifrar. Ver fotos ou clipes desses artistas dois ou três anos atrás é como olhar o histórico do Goggle Street View e reparar nas mudanças na cidade. As camadas de signos se acumulam, se apertam, se encobrem, mudam de significado.

FUNK NA CARA

Um "H" de um lado, uma clave de sol do outro. Iago Sasso, o MC Hollywood, resume no rosto sua escolha pessoal pela música e pelo nome artístico. A tatuagem facial no funk não é tão comum quanto no trap, apesar do primeiro nome da cena paulistana a ganhar projeção nacional, MC Guimê, ser adepto delas (incluindo a expressão "good vibes" nas pálpebras).

DECISÃO ETERNA

Companheiro de MC Hollywood no escritório Kondzilla, o maior selo do funk nacional, o DJ Bueno também tatuou sua sigla e um símbolo musical na cara. "Fiz há bastante tempo para eternizar minha correria e meu trabalho", explica. O rosto, maior expressão da individualidade, vira um outdoor para novos dados pessoais. As tatuagens na cara são como aqueles posts que você não pode apagar e te definem. As escolhas e os caminhos percorridos marcam com tinta o rosto, como só as rugas e as cicatrizes faziam antes ao longo de uma vida.

PINTAS E DISCOS

Estilistas e DJs, Tasha e Tracie são referências quando o assunto é tatuagem bacana (ou "chave", como se fala na quebrada). Uma com 16 tatuagens e outra com 14, as gêmeas, crias da Zona Norte de São Paulo, amam se tatuar. "A primeira fizemos juntas e até hoje é a que mais eu odeio. É uma estrela de Davi. Foi na época da igreja. Lembro que na época as duas custaram de R$ 60."

Depois elas passaram a tatuar tudo o que remete a suas vivências, desde capa de disco do rapper Snoop Dogg até objetos egípcios. As gêmeas sempre fizeram uma pinta no rosto com maquiagem. Um certo dia decidiram tatuá-la. "A gente queria ter a pinta todo dia, mesmo sem maquiagem, então fazer a tatuagem foi a melhor solução."

ARTE CORPORAL

A DJ e tatuadora Priscila Fernandes, 28, teve sua primeira tatuagem logo cedo, "A primeira que eu fiz foi a nuvem no peito. Tinha apenas 16 anos e pedi autorização para a minha mãe, e ela deixou." A partir daí não parou mais: hoje tem mais de 50 tatuagens. Hoje, ela também é conhecida nas redes como Apropri4damente, com cerca de 80 mil seguidores. No país vice-campeão de cirurgias plásticas no mundo (só perde para os EUA), Priscila foi contra a maré e optou por outra forma de modificar o corpo e chamar a atenção. Se a tatuagem virou uma mercadoria, como muitos acadêmicos apontam, Priscila é o showroom e a artista ao mesmo tempo.

O TATUADOR DO FUNK E RAP

Thiago Lima é um dos grandes tatuadores da cena atual quando o assunto é realismo em preto e branco. O jovem começou a tatuar em sua casa e hoje tem seu próprio estúdio em Taboão da Serra "Comprei meu primeiro kit e comecei a tatuar amigos e pessoas próximas, em seguida comecei a divulgar no Facebook."

O tatuador já riscou diversas celebridades do rap e do funk, donos de empresas famosas e até jogadores. Com seus oito anos de carreira, seu principal desafio é a valorização do trabalho "Achar o cliente perfeito é difícil. Eu gosto de trabalhar com quem valorize a arte e não o valor que está pagando". Hoje, Thiago valoriza seu próprio trabalho, o que resultou em perder amizades e clientes, "Eu quero mostrar que meu trabalho tem valor. Hoje quem é meu cliente, são pessoas que entendem meu trabalho."

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