Topo

Trecos, troços e coisas: como os objetos materiais definem nossa identidade

Donata Meirelles posa com modelos vestidas de mucamas em sua festa de aniversário - Reprodução/Instagram
Donata Meirelles posa com modelos vestidas de mucamas em sua festa de aniversário Imagem: Reprodução/Instagram

Ítalo Rômany

Da agência Eder Content, colaboração para o TAB

10/06/2020 04h00

Observe os objetos, trecos e coisas à sua volta. Perceba como eles têm o poder de nos distinguir e de nos afetar — seja oprimindo ou evidenciando quem somos: a catraca do ônibus que limita a passagem de pessoas obesas; a tornozeleira eletrônica que "denuncia" o status do detento, dificultando a ressocialização; a roupa que você usa e que reflete sua identidade.

Quantas sandálias você já evitou usar por causa da cor da sua pele? "Muitas vezes", respondeu o professor de língua portuguesa Fabrício Gama, de Belém (PA). Negro, ele não costuma usar determinadas vestimentas em espaços públicos para não ser discriminado — como percebeu na fila do banco, quando duas pessoas esconderam o celular na bolsa quando o avistaram. "Baixei a cabeça e sorri para mim mesmo. Fiquei na fila, saquei meu dinheiro e fui para a academia. Daí você pergunta, 'você sorri por quê?' Porque comecei a me acostumar a viver em um país preconceituoso, não seria a primeira vez que eu sofria isso", lamenta.

No livro "Trecos, Troços e Coisas", o antropólogo britânico Daniel Miller aborda a cultura material dos objetos — não só como extensões do próprio ser humano, a exemplo dos óculos, que corrigem a visão, mas também como registros da complexidade social. "Um 'treco' é a materialização das relações que produzimos, e muitas vezes pode se virar contra nós mesmos e tornar-se opressivo", explica o pesquisador, em entrevista ao TAB.

"Objetos não gritam para você como os professores, nem jogam um pedaço de giz em você, como o meu jogou, mas eles lhe ajudam docilmente a aprender como agir da forma apropriada. Essa teoria também dá contorno e forma à ideia de que os objetos 'fazem' as pessoas. Porém, a lição da cultura material é que, quanto mais deixamos de notá-la, mais poderosa e determinante ela se mostra", afirma Miller, que dedica-se ao estudo das relações humanas com as coisas e as consequências de seu consumo.

Professor associado da Escola de Belas Artes da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), o pesquisador Marcus Dohmann afirma ao TAB que não há como dissociar os objetos das representações e dos pensamentos religiosos, políticos e sociais. "Os objetos são uma linguagem que abre diversas leituras no campo social. Você pode utilizar essas leituras para o bem ou para o mal — e acaba imputando a certas pessoas um determinado ônus, usando esses objetos como chacota, sacramentando problemas sociais como o próprio bullying", ressalta o especialista, pós-doutor em Estudos Culturais.

Objetos como marcadores de gênero

Nas eleições presidenciais de 2018, os objetos estiveram no centro do debate e foram usados com a finalidade de impactar o resultado eleitoral, a exemplo da "mamadeira de piroca" e do "kit gay". As notícias, inverídicas, espalhadas nas redes sociais, afirmavam que o Ministério da Educação teria distribuído cartilhas de cunho sexual para crianças da rede pública nas gestões Lula e Dilma, para fins de doutrinação de gênero no ensino.

Realizada dias antes do segundo turno das eleições presidenciais de 2018, a pesquisa IDEIA Big Data/Avaaz revelou que 56% dos eleitores entrevistados acreditavam que a notícia de que o candidato Fernando Haddad (PT) iria distribuir o chamado "kit gay" para crianças, caso eleito, era baseada em fatos reais.

Discussões ideológicas de gênero, incluindo debates acerca da Escola Sem Partido, revelam o caráter patriarcal e sexista que persiste na sociedade contemporânea. Os objetos são a parte "sensível e tangível" dessa relação, diz o professor Marcus Dohmann.

Professora do Museu Paulista da USP (Universidade de São Paulo), Vânia Carneiro estuda como os objetos constituem as diferenças sociais e de gênero dentro do espaço doméstico. No século 19, artefatos masculinos remetiam ao universo do trabalho intelectual, como livros, jornais, cigarros, poltronas de couro, mesas de madeira etc. Já os objetos relacionados às mulheres eram as de atividades do lar — toalhas, capas, bolsos, cestos, sacolas, caixas, máquina de costura.

"Com isso, os suportes materiais puderam atingir estratos sociais menos abastados, e creio que isso acontece porque, ainda hoje, esses marcadores são relevantes para muitas famílias", afirma a especialista ao TAB. Outra marca do feminino na casa é a associação do corpo da mulher com os objetos do lar. Por exemplo, flores presentes na estampa da roupa da dona de casa estão presentes em almofadas. "No seriado 'A Grande Família', da TV Globo, a protagonista Nenê se apresentava, por vezes, com um vestido de estampa igual à cortina", lembra a pesquisadora.

Dona Nenê, personagem do seriado "A Grande Família", interpretada pela atriz Marieta Severo.  - Fabrício Mota/Divulgação/TV Globo  - Fabrício Mota/Divulgação/TV Globo
Dona Nenê, personagem do seriado "A Grande Família", interpretada pela atriz Marieta Severo.
Imagem: Fabrício Mota/Divulgação/TV Globo

Preste atenção nas propagandas do Dia das Mães, ou do Dia dos Pais. Em geral, mostram imagens de filhos comprando eletrodomésticos e utensílios do lar para mães. Para eles, os pais, dispositivos tecnológicos, livros. "É preciso que tomemos consciência dos objetos e de sua importância para o que fazemos de nós mesmos. É preciso uma tomada de consciência — não para amarmos ou odiarmos incondicionalmente os artefatos que nos rondam e nos constituem, mas para entendermos sua relevância, sua não neutralidade e o que eles ajudam a ocultar ou revelar", ressalta ao TAB o professor de antropologia Marcos Carvalho, da UFPB (Universidade Federal da Paraíba).

Metáforas da sociedade

Existem cadeiras para todos os tipos e gostos — exceto para pessoas gordas. Seja em restaurantes ou aviões, o simples ato de sentar pode ser constrangedor. Idealizadas com referência num padrão corporal hegemônico, tomado erroneamente como a suposta média de tamanho dos corpos reais, as poltronas nas quais nos sentamos também são metáforas da sociedade em que vivemos.

Com um milhão de seguidores no Instagram e mais de 700 mil inscritos no Youtube, a influencer digital Thaís Carla milita contra a gordofobia expondo nas redes sociais as dificuldades que enfrenta no dia a dia. Em 2019, ela publicou um vídeo em seu canal relatando a falta de acessibilidade dentro de um avião. "[Os assentos] me machucam. Não dá pra sentar. [?] Estou rindo de nervoso. É triste essa situação. O cinto acaba no meio da minha barriga."

A lei federal 10.048, de 8 de novembro de 2000, assegura a pessoas obesas assentos preferenciais em transportes públicos, mas não especifica a quantidade — e tampouco veda a diferenciação de tais assentos por cor. Há também leis municipais e estaduais que regulam as poltronas em espaços públicos, como nos cinemas e escolas. No Rio de Janeiro, por exemplo, os estabelecimentos voltados ao entretenimento são obrigados a destinar, no mínimo, duas poltronas para obesos.

À reportagem do TAB, Thaís Carla reclamou de empresas que padronizam os assentos, esquecendo muitas vezes que as pessoas gordas também são consumidoras. "No cinema, vejo que já há lugares maiores, mas só para duas pessoas. Se forem mais, você não vai assistir. No ônibus, tem a poltrona amarela, mas só dá para uma pessoa sentar. Essa inclusão é muito louca, ainda não enxergaram a dimensão do problema."

"Tem que falar, tem que mostrar que está errado, nós somos consumidores e temos o direito de reclamar. Não adianta só uma gorda fazer uma coisa diferente se as outras ainda estão com medo", diz a influencer.

A Anac (Agência Nacional de Aviação Civil) informou, em nota, que não há regulamentação específica para o atendimento de passageiros obesos no transporte aéreo. A Resolução ANAC nº 280, de 2013, diz que a companhia aérea está obrigada a questionar o passageiro, no momento da comercialização da passagem, sobre quais assistências ele solicitará durante a sua viagem. "Caso o obeso precise de um segundo assento para ser transportado, deverá informar tal necessidade de forma prévia à empresa, devendo esta aplicar o desconto previsto na aquisição", diz a agência.

Ressignificação dos objetos

As coisas ao nosso redor falam muito sobre quem somos. A todo instante, damos novo sentido a artefatos que, no passado, foram motivos de opressão — como faz a professora e ativista do feminismo negro Patrícia dos Reis, de Jaboatão dos Guararapes (PE): ao colocar seu turbante na cabeça, ela veste também uma cultura e a tradição de um povo. Mais do que uma questão estética, é um utensílio que a identifica como negra e como afro-candomblecista.

"Ministro minhas aulas com meus turbantes, como legitimidade de um caminho que eu tracei. O turbante tem uma ressignificação, turbante é um recado de que as mulheres negras precisam ter seus lugares reconhecidos para além da cozinha", afirma. Representação de sua força como mulher negra, o turbante também atrai olhares preconceituosos em determinados espaços que ocupa, conta a ativista ao TAB.

Se parássemos para observar a densidade de significados que cada um dos artefatos com os quais nos relacionamos diariamente carrega, nossa vida paralisaria, acredita o antropólogo Marcos Carvalho. "Mas também acredito que exista um jogo complexo entre regimes de visibilidade e invisibilidade. O que é visível para alguns não é para outros. E, às vezes, muito esforço é empreendido para produzir processos de visibilização — ou invisibilização — por grupos e contextos particulares."

A máscara de Flandres, objeto opressor usado na escravidão para evitar que escravos ingerissem alimentos, é um exemplo de como a ressignificação é uma importante premissa política, diz Carvalho. Ele recorda uma situação ocorrida anos atrás em São Paulo, em que ativistas ligados ao movimento negro realizaram um protesto em um restaurante que leva o nome Senzala, na zona oeste. "Os manifestantes entraram no recinto portando as pavorosas máscaras, trazendo compulsoriamente a lembrança corporificada das dores da escravidão e o racismo naturalizado e perpetuado pelo estabelecimento e seus frequentadores", conta o pesquisador.

Beyoncé em sua turnê "Formation" - Divulgação - Divulgação
Beyoncé em sua turnê "Formation"
Imagem: Divulgação

Mais recentemente, em 2019, foi a imagem de uma cadeira de vime com encosto circular alto na foto de uma festa de aniversário badalada em Salvador (BA) que expôs o racismo naturalizado no Brasil. A aniversariante, a socialite e ex-editora da revista Vogue Brasil, Donata Meirelles, postou numa rede social uma foto em que aparecia sentada na tal cadeira, ladeada por duas mulheres negras em trajes típicos usados pelas baianas em festas de candomblé. A cadeira, do modelo conhecido como emanuelle ou cadeira-pavão, repercutiu como representação racista de uma sinhá rodeada por suas mucamas escravas, típica cena do Brasil colonial.

Outra fotografia, captada em 1968, a cadeira-pavão tem representação exatamente oposta. Numa imagem icônica, o fundador do partido Black Panthers e líder do movimento negro nos Estados Unidos, Huey Newton, posa sentado numa cadeira-pavão segurando um rifle em uma das mãos e uma lança na outra, retratando o poder e a realeza negra. Em 2018, a cantora Beyoncé resgatou essa simbologia ao incluir uma cadeira-pavão no show da turnê "Formation", replicando a imagem de Newton no palco.

Não, uma cadeira não é só uma cadeira.