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'Telefone sem fio': como estudos sérios acabam virando boatos de WhatsApp

Experimento Anita, na Antártida, que gerou especulações nas redes sobre a existência de uma dimensão paralela  - Nasa
Experimento Anita, na Antártida, que gerou especulações nas redes sobre a existência de uma dimensão paralela Imagem: Nasa

Edison Veiga

Colaboração para o TAB, de Bled (Eslovênia)

03/06/2020 04h00

Pesquisa científica não acontece de uma hora para outra -- e nem é rápida como as fábricas de memes exigem. Algumas podem ter resultados bastante entediantes para o público geral, e elas quase nunca trazem conclusões definitivas. O conhecimento, afinal, não tem vergonha de admitir que uma evidência nova pode exigir a revisão do que se sabia anteriormente. Se não fosse assim, ainda estaríamos acreditando em átomo indivisível, geocentrismo, criacionismo e terraplanismo.

Do lado de cá das bancadas científicas está a sociedade e a rapidez com que informações complexas chegam, de modo caótico, a nossos computadores e smarphones -- algo que pode ser traduzido como infodemia: uma epidemia de informação causada pelo excesso de notícias sobre determinados temas. Muitas vezes, as informações que consumimos estão incorretas, incompletas ou são produzidas por fontes pouco confiáveis. Ainda assim, esses dados duvidosos seguem se propagando velozmente.

Temos aí o cenário perfeito para a ocorrência de um fenômeno que tem se tornado cada vez mais comum: notícias falsas ganham popularidade a partir de interpretações equivocadas da realidade ou de pesquisas científicas — produzidas por cientistas verdadeiros, de universidades verdadeiras e publicadas verdadeiramente em forma de artigo em periódicos científicos legítimos.

O caso de Adão de Eva

Um caso muito emblemático foi explicado aqui mesmo, no UOL: segundo a interpretação que se espalhou pelo mundo afora, cientistas haviam encontrado a prova genética de que todos descendemos de um único casal. Seria tudo o que muita gente queria ouvir, ou seja: a crença em Adão e Eva contaria com o aval da ciência.

Na ocasião, o cientista Mark Young Stoeckle, pesquisador na Universidade Rockefeller, nos Estados Unidos, e um dos autores do artigo científico, disse à reportagem que a interpretação que caiu nas redes estava "totalmente errada".

Trata-se de um episódio que ilustra bem o fenômeno das notícias falsas que viralizam no WhatsApp. O estudo analisava estruturas mitocondriais dentro do espectro da biologia evolutiva — e era bem complexo para o público leigo. Além disso, conforme avaliaram alguns especialistas ouvidos pelo TAB, a redação do artigo foi feita de forma confusa. Por fim, o tema mexeu com o imaginário comum, uma vez que a lenda de um homem e uma mulher primordiais povoa mentes humanas desde que religião e cultura existem.

Especialista em genética humana, a bióloga Maria Cátira Bortolini, professora na UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), conta ao TAB que é recorrente que trabalhos seus sejam incorporados por aqueles que procuram evidências criacionistas.

"Temos publicado estudos sobre o genoma neandertal comparado com o dos Homo sapiens, encontrando diversas similaridades em termos de genes do comportamento e cognição. A mim, faz pensar que, se os neandertais não tivessem sido extintos e tivessem passado por revoluções neolíticas — domesticação de plantas e animais, sedentarização e suas consequências, o que ocorrem concomitantemente em várias partes do mundo há cerca de 10 mil a 15 mil anos — teriam chegado [até agora] em iguais condições aos sapiens", contextualiza ela, para concluir que o repertório genético que possibilitou esse processo de cultura cumulativa também estava presente nos parentes que ficaram para trás.

No entanto, para surpresa da pesquisadora, o dado foi usado pelos criacionistas para confirmar sua fé na explicação bíblica sobre o surgimento da vida na Terra: que todos os animais surgiram juntos, e todos os humanos de uma vez só.

Reprodução do quadro Adão e Eva (Julius Paulsen, 1893) - Domínio público - Domínio público
Reprodução do quadro Adão e Eva (Julius Paulsen, 1893)
Imagem: Domínio público

É fácil, é gostosinho, é pop

Inverdades com verniz científico acabam sendo recebidas de modo mais palatável por nós, sobretudo quando confirmam crenças. Isso sempre aconteceu. Só que, em tempos de correntes de WhatsApp e grupos de Facebook, a coisa ganha uma velocidade avassaladora. "O pessoal que mantém o pensamento mágico na idade adulta jamais se cansará de buscar na ciência elementos para justificar suas teorias", afirma Bortolini. "Não vejo neles qualquer freio quanto a isso, independentemente do que possamos dizer e da interpretação correta dos achados de um artigo científico."

Bom exemplo disso é a popularidade da cloroquina durante a pandemia do novo coronavírus. Em 20 de março, um grupo de pesquisadores franceses publicou um estudo relatando que a cloroquina tinha sido empregada com eficiência em alguns tratamentos contra a Covid-19. Cientistas e médicos mais atentos sabiam que os resultados não eram definitivos — mereciam reservas metodológicas e cuidado técnico, até que o composto pudesse ser sacramentado o tratamento como ideal contra a doença. Tarde demais: a guerra entre cloroquinistas e quarentenistas acabou eclodindo, turbinada por boatos em redes sociais.

"Foi um estudo inicial, com apenas 36 pacientes e amostragem não-aleatória. Ou seja: o resultado encontrado foi um acaso. No meio médico, todo mundo sabe que qualquer ensaio clínico com menos de 500 ou 1.000 pessoas não pode ser levado adiante", explica ao TAB a médica intensivista Giovanna Zanatta de Carvalho, que tem trabalhado exclusivamente com casos de Covid-19 em um hospital paulistano.

A cloroquina foi divulgada no meio leigo e todo mundo achou que estávamos diante da cura
Giovanna Zanatta de Carvalho, médica intensivista

Dois dias depois de a médica conversar com TAB — e dois meses depois da divulgação desse primeiro estudo — um trabalho muito mais abrangente concluiu que a cloroquina não só é ineficiente contra a Covid-19 como pode trazer riscos sérios aos pacientes. Na segunda-feira (25), a Organização Mundial de Saúde decidiu, por segurança, suspender os testes com o medicamento.

Aparência da Sars-CoV-2 - CERN/ Sophia Elizabeth Bennett - CERN/ Sophia Elizabeth Bennett
Aparência da Sars-CoV-2
Imagem: CERN/ Sophia Elizabeth Bennett

Eram os deuses astronautas?

Outro assunto que funciona como combustível para virais de internet são as pesquisas que, de alguma maneira, dão brechas para comprovar teorias de ficção científica. Foi o caso da notícia que abalou a internet de que a Nasa — agência espacial norte-americana — teria descoberto um universo paralelo onde o tempo corre para trás.

O boato cresceu a partir de uma interpretação errônea de dados reais: na verdade, um experimento da Nasa na Antártida detectou neutrinos que se comportam de maneira anômala, mas ainda não há nenhuma conclusão sobre isso ter a ver com universo paralelo.

"Existem dados mostrando algo inesperado, mas, sobre essa interpretação, com certeza é possível achar algum modelo matemático-teórico mais ousado que inclua mais dimensões ou universos paralelos", afirma ao TAB o físico Rodrigo Panosso Macedo, pesquisador na Universidade Queen Mary, na Inglaterra. "Para mim, parece um pouco 'wishful thinking': uma ideia tentadora, ousada, algo que a gente deseja ser verdade. O problema é que uma possível explicação para o fenômeno já sai como 'a Nasa tem evidências'."

Professora no Departamento de Antropologia e Arqueologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Mariana Petry Cabral sabe bem o que é ter de lidar com interpretações equivocadas de pesquisas. Em 2005, ela integrou o grupo que pesquisou um sítio arqueológico no Amapá, conhecido pelos megálitos — monumentos baseados em blocos de pedras erguidos por indígenas há cerca de mil anos (antes, portanto, da chegada dos europeus às Américas). No ano seguinte, quando chegou a hora de apresentar os dados para a imprensa, ela se surpreendeu com a informação que constava no material entregue pelo governo do estado, financiador do projeto, aos jornalistas: ali, havia a hipótese de que as construções teriam sido obra de extraterrestres.

"Fiquei doida e pedi para recolherem o material. Não fazia sentido algum, não expressava o que a equipe de pesquisa tinha concluído", recorda Cabral, em entrevista ao TAB. "Sempre entendemos que era algo relacionado a populações indígenas amazônicas". Mesmo com o esforço de correção, alguns veículos de mídia divulgaram a ideia alienígena.

Sítio megalítico em Calçoene, AP - Arquivo pessoal/ Mariana Petry Cabral - Arquivo pessoal/ Mariana Petry Cabral
Sítio megalítico em Calçoene, AP
Imagem: Arquivo pessoal/ Mariana Petry Cabral

Infodemia tem cura

Pesquisador de meio ambiente na Universidade Católica de Louvain, na Bélgica, Tiago Reis acredita que os cientistas deveriam assumir uma parcela de culpa pelo "telefone sem fio" que muitas vezes acontece na triangulação entre a comunidade científica, a imprensa e a sociedade. "Alguns pesquisadores são bem puristas na forma de apresentar resultados. Querem reportar exatamente o que encontraram, deixando a cargo de cada um interpretar como quiser", avalia. "Como pesquisador, não gosto disso: acredito que nós devemos oferecer algo além do que os resultados puros."

Graduado tanto em jornalismo quanto em história -- área a partir da qual seguiria sua trajetória acadêmica, da antropologia à arqueologia --, a professora Mariana Cabral diz que, na hora de divulgar suas pesquisas, faz um esforço de "fazer a pessoa refletir junto".

No fundo, essas deformidades científicas nascem da dificuldade de comunicação. "Muitas vezes, nós, cientistas, falamos com termos muito técnicos, que podem gerar entendimentos errados", opina. "Jornalistas podem também não se dedicar a pensar mais cuidadosamente sobre as questões que estão sendo levantadas. Há falhas de comunicação dos dois lados. Nossa [meio científico] e de vocês [jornalistas]. Por isso, tantos mal-entendidos."