Sobra tempo, falta concentração: por que é tão difícil ler na pandemia
A pandemia de Covid-19 privou pessoas em todo o mundo de uma série de atividades culturais como passeios em shopping centers, cinemas, teatros, restaurantes, parques e praias. Em tese, sobraria mais tempo para a leitura, um lazer que pode ser feito dentro de casa. Mas, ainda que tenham mais tempo livre, muitas pessoas até se afastaram dos livros.
Isso acontece porque ler não é apenas uma questão de tempo, mas envolve acesso aos livros e capacidade mental de manter a concentração, dois fatores fortemente perturbados pela pandemia.
A professora de história Jéssica Carvalho, de 29 anos, diz que a estante está cheia. A criadora do grupo de leitura Extra Literário, entretanto, conta que eles permanecem lá, quase intocáveis. O problema foi a falta de foco. Sua média de um livro por semana foi drasticamente derrubada no início do período de isolamento.
"As férias da escola foram antecipadas e eu tinha muito tempo livre, mas passei semanas sem sair do mesmo livro. Fiz pão, aulas de ioga, tentei fazer bordado, assisti a muitas séries na TV", enumera ela, sobre como preencheu o tempo. "Quando ia ler, tinha dificuldade de prestar atenção. Chegava no final da página e tinha que reler tudo, pois não sabia do que se tratava. A ansiedade tomava conta do meu espaço mental." Carvalho garante que está conseguindo reorganizar a rotina e já está mais próxima do seu hábito de leitura anterior.
A ansiedade relatada por ela compromete a capacidade de mantermos o foco — e não apenas na leitura, mas também em outras atividades que exijam concentração, segundo explica Raymond A. Mar, professor de psicologia da York University, no Canadá, que estuda leitura e compreensão de texto.
"O fato de que estamos todos em uma situação estressante, com muitas coisas passando pela nossa cabeça, pode fazer com que os leitores tenham dificuldade em focar a atenção e mergulhar em um bom livro. A leitura é uma síntese complexa de vários processos cognitivos. A atenção é um dos fatores-chave", afirma. A atividade envolve várias funções cerebrais, incluindo processos visuais e auditivos, consciência fonêmica, fluência e compreensão.
Pessoas mais afetadas emocionalmente pela pandemia relatam a falta de capacidade momentânea de ler. Aos 74 anos, Zélia de Oliveira Barros, assistente social aposentada, faz parte do grupo de risco e sofreu a perda de um amigo para a Covid-19. Está há mais de 60 dias sem sair de casa — um parente faz as compras para ela — e, mesmo sendo um leitora voraz desde a infância, ficou mais de um mês sem ler. "O estresse aumentou muito. O que conseguia fazer era arrumar a casa, assistir a filmes."
Assim como Jéssica Carvalho, ela garante que nas últimas duas semanas tem voltado a seus antigos hábitos e passou a reler alguns de seus livros preferidos. "Tenho conseguido de novo mergulhar nas histórias, esquecer do tempo. Mas sem os livros, fico o tempo todo pensando em ligar a TV. E tudo no Brasil parece uma novela: o ministro cai ou não cai? O presidente mostra ou não o exame? A gravação da reunião ministerial vai ou não ser revelada? A cabeça fica ocupada com a realidade", afirma.
Roberta Bento, especialista em funcionamento do cérebro pela Universidade da Califórnia e sócia na consultoria educacional SOS Educação, lembra que mesmo antes da pandemia, o tempo que as pessoas têm passado em frente a telas, com a atenção quase sempre fragmentada, está tirando delas a capacidade de concentração. A pandemia agravou o problema. "Existe algo que chamamos de FOMO, o 'Fear of Missing Out': a pessoa fica com sensação de que está perdendo alguma coisa importante se não estiver atualizado naquele momento. Hoje sentimos necessidade de estar atualizados com os dados de Covid-19", ela diz.
Sócia e filha de Roberta, Taís Bento acredita que quem desejar retomar o hábito de leitura deve colocar pequenas metas, como ler dez minutos por dia e se "isolar" digitalmente por esse período. "Eu mesma não estava mais conseguindo ler à noite. Agora deixo o celular longe, para não ficar na tentação de rolar as redes sociais", conta.
Apesar dos relatos, não há como assegurar que a leitura está de fato em queda, porque não existem pesquisas que comprovem se as pessoas estão lendo dentro de suas casas, lembra Ângelo Xavier, presidente da Associação Brasileira de Editores de Livros (Abrelivros). O que se sabe é que a venda do objeto livro está em queda. "Embora as vendas sigam pelos canais digitais, com o fechamento das livrarias o negócio do livro foi bastante prejudicado", diz.
Em abril, as vendas de exemplares tiveram uma queda de 47% em comparação a abril de 2019, segundo levantamento da Nielsen Bookscan. O registro de novos ISBNs —número de identificação que todo livro recebe antes de ser lançado — caiu 22% no período. Desde o fechamento do varejo, diversas editoras cancelaram ou adiaram lançamentos por tempo indeterminado.
Segundo Xavier, eventos como as Bienais, lançamentos e festivais literários são essenciais para o mercado brasileiro, ao levar o público a ter contato com autores e livros. "As livrarias também são espaços importantes, não resta dúvida. Elas despertam a vontade pela leitura, apresenta novas opções", explica.
Menos livros vendidos no mundo
O fenômeno de queda na venda de livros físicos foi registrado em vários outros países do mundo. Em Portugal, a Apel (Associação Portuguesa de Editores e Livreiros) estima que durante o estado de emergência, que vigorou de 18 de março a 2 de maio, a queda na venda de livros tenha sido da ordem de 80% em comparação ao mesmo período do ano anterior.
Até mesmo na França, país em que as pessoas leem em média 21 livros por ano, um levantamento do Instituto GFK mostra que o mercado livreiro registrou uma queda histórica de 58% no número de exemplares vendidos no período de 16 de março a 12 de abril de 2020, em comparação ao mesmo período de 2019.
Nos Estados Unidos tem acontecido o mesmo, mas em outro ritmo. Entre 18 e 25 de abril, o total de vendas de impressos foi apenas 3,2% menor em relação ao mesmo período em 2019, segundo relatório do NPD BookScan. O forte crescimento da categoria não-ficção para jovens (mais de 43%) ajudou a segurar os números gerais. Segundo pesquisadores, a procura deve-se ao fato de os pais estarem em busca de materiais para ajudar no estudo dos filhos em casa.
No Reino Unido, na semana anterior ao lockdown (decretado a partir de 23 de março), houve um crescimento de 6% na vendas de livros em relação a 2019, segundo a consultoria Nielsen. O aumento indica que os britânicos fizeram um pequeno estoque também de livros em preparação para o período de confinamento. Os números totais de abril, contudo, devem ser negativos. A WHSmith, considerada a primeira rede de livrarias do mundo, anunciou uma queda 85% no faturamento do mês, apesar de ter aumentado a venda online em 400%.
Livro digital
Os números de leitura tanto no Brasil quanto no mundo são incompletos porque não incluem as versões digitais. A Amazon, dona da principal plataforma de venda de ebooks, não divulga suas vendas. A reportagem de TAB entrou em contato com a Amazon, mas não obteve resposta. O que se sabe é que, em março, o Kindle fez o maior pagamento de royalties para autores pelo fundo chamado KDP da história, um total de US$ 30,3 milhões, o que representa 20% a mais do que no ano anterior.
Apesar de o mercado editorial e livreiro mundial expressar preocupação e tentar incentivar a leitura durante o período de pandemia, individualmente, as pessoas não deveriam se sentir culpadas por se distanciar dos livros neste momento de exceção, defende o escritor português e professor universitário Gonçalo Tavares. "Este é um momento de suspensão. Se calhar, no Brasil está ainda mais difícil alguém alhear-se da realidade e ler. Que ninguém se force a fazer nada que não tem vontade. Não faz sentido criar mais uma obrigação numa situação tão tensa", afirma.
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