O que a Sars ensina sobre o impacto psicológico de um vírus mortal
Atualmente, um terço da população mundial vive sob medidas de isolamento, em um esforço para evitar a rápida propagação do novo coronavírus. No Brasil, estados brasileiros como São Paulo, Rio de Janeiro e Santa Catarina vêm adotando políticas como fechamento do comércio e limitação do transporte. O intuito é evitar que muitas pessoas adoeçam ao mesmo tempo e lotem os hospitais e a mortes desnecessárias.
A ruptura com a normalidade e as notícias alarmantes de países como Itália e Espanha, onde a contagem de mortos chega próxima a mil, dia a dia, têm feito com que muitos se sintam desorientados e ansiosos.
"O que desestabiliza o ser humano é tudo aquilo que evidencia sua falta de controle. A ausência do toque, a falta da proximidade dos corpos trazem uma sensação de isolamento, de falta de suporte", afirma em entrevista ao TAB a psicóloga Debora Noal, ligada ao Instituto Oswaldo Cruz, especializada em atenção psicossocial em desastres.
Noal integra um grupo de cientistas que vem estudando o impacto psicológico do novo coronavírus. Ela se baseia em pesquisas sobre o impacto de outros surtos virais que tiveram alcance menor, que trazem um olhar distanciado sobre o impacto psicológico sobre as populações afetadas, e ajudam a refletir sobre a pandemia atual.
Entre os surtos estudados por Noal está o da Sars. Entre novembro de 2002 e agosto de 2003, 8.422 pessoas de 32 países foram infectadas com o vírus da doença, das quais 916 morreram, principalmente em China, Hong Kong Vietnã, Canadá, Taiwan, Singapura e Tailândia.
A Sars é causada por uma cepa de coronavírus que guarda semelhanças com o que vem causando a pandemia. A Sars também causa problemas respiratórios graves — daí a sigla, que em inglês quer dizer "síndrome respiratória aguda grave".
A proximidade entre os dois vírus fica explícita em seus nomes científicos. SARS-CoV-1 é o nome usado para falar do vírus que gerou a Sars no início do século 21. O vírus da pandemia atual é chamado de SARS-CoV-2.
A Sars de 2003 não chegou tão longe, mas fez muitas vítimas e gerou enorme ansiedade devido a sua alta taxa de letalidade. Ela é letal para cerca de 10% dos infectados, enquanto o taxa de mortalidade do novo coronavírus fica entre 1,6% e 4,1% — como as estatísticas estão sendo coletadas sob condições diferentes de país para país, não há uma taxa consolidada.
A propagação da Sars em 2003 vem sendo apontada como um dos motivos pelos quais diversos países asiáticos parecem ter se preparado melhor para a epidemia atual.
O impacto psicológico da Sars
Se, atualmente, a China é apontada como exemplo de gestão para a crise, um estudo publicado em 2011 por pesquisadores do departamento de Psicologia da Universidade de Pequim relata que, em 2003, os cidadãos se viram surpreendidos e atordoados.
"A Sars trouxe pânico psicológico entre o público, que se espalhou pela China com a mesma velocidade que o vírus. Em Pequim, a maior parte dos locais de trabalho paralisaram, as escolas pararam suas aulas, o público se precipitou em uma onda de compras por medo, estudantes universitários voltaram de seus campi, e muitas pessoas atrasaram o tratamento de outras doenças porque não ousavam ir aos hospitais", escrevem os pesquisadores. Assim como ocorre hoje, uma parte das áreas atingidas foi colocada sob quarentena.
Para entender o impacto psicológico da doença na China, os cientistas aplicaram questionários a 647 pessoas que viviam em áreas infectadas, ou próximas a essas áreas. Eles perguntaram sobre seu comportamento — se sua capacidade de concentração havia sido afetada, por exemplo —, e buscaram medir também seu grau de ansiedade.
Surpreendentemente, aqueles que viviam em áreas no centro da epidemia tendiam a sofrer com menos ansiedade do que aqueles que viviam em áreas no entorno. Os pesquisadores chamaram isso de "efeito do olho do tufão", em alusão ao fato de que quando os ventos de um tufão são fortes o suficiente, seu centro permanece relativamente calmo.
Segundo a pesquisa, pode ser que isso aconteça porque aqueles que viveram a crise de perto conseguiam ter uma avaliação mais objetiva dos riscos práticos do que aqueles que tinham informação apenas por meio da mídia ou de parentes e amigos.
Noal, do Instituto Oswaldo Cruz, afirma que outra explicação possível é o fato de que projeções distantes aumentam a ansiedade. "Quando vejo cenas afastadas, de pessoas na UTI na Itália, fico só imaginando o que seria, tenho muito mais tempo para projetar, e isso me traz ansiedade", diz.
Por outro lado, as pessoas já atingidas pela crise passam a vivenciá-la de maneira mais próxima, tomando ações em relação a ela, para se proteger e aos outros. "Quanto mais vivemos o presente, menor a ansiedade", diz.
No caso da pandemia em curso, Noal afirma que uma boa forma de limitar a ansiedade é buscar viver o presente, adotando medidas que deem a sensação de estar ajudando. Se possível, ela recomenda exercer as mesmas atividades de antes, mas agora direcioná-las para a crise. Ou então, realizar algum tipo de cuidado voltado ao próximo, dispondo-se a fazer as compras de um vizinho idoso, por exemplo.
Uma outra pesquisa, publicada em 2010 e realizada com 1.278 participantes com 18 anos ou mais, analisou o impacto psicológico da Sars em Taiwan, quatro meses após o fim da epidemia no local. Dos participantes, 9,2% afirmaram que se tornaram mais pessimistas após a crise. A pesquisa também identificou que 11,2% deles sofriam de ansiedade, depressão, insônia e sentimento de inferioridade, um índice que baixou para perto de 8% em uma pesquisa nacional no ano seguinte à epidemia.
Noal afirma que é necessário agir sobre os próprios sentimentos durante a crise para evitar que ela tenha efeitos psicológicos mais duradouros.
"O momento de agora [durante a pandemia] é o momento de normalização de sentimentos. Algumas pessoas podem sentir necessidade de limpar tudo o tempo todo para sentir que têm controle; outras podem sentir cansaço permanente, letargia. Ou então, uma agitação coordenada, de querer fazer tudo, falar com a filha, preparar comida, limpar a casa? É uma estratégia que adotamos para não se conectar com os sentimentos", diz.
Noal recomenda manter uma rotina, realizar algum "exercício voltado ao intelecto", como produzir algum tipo de arte, e tomar tempo para manter as redes de afeto, por meio de ligações, por exemplo.
Para Márcio Gagliatto, membro da Rede Internacional de Saúde Mental e Apoio Psicossocial em Emergências Humanitárias, ligada à ONU, é importante fomentar o engajamento da comunidade durante situações como a da covid-19.
"Precisamos desconstruir a ideia que cuidar da saúde mental é um serviço de especialistas. Todos somos promotores do bem-estar uns dos outros", disse ao TAB. Para o especialista, falar em "distanciamento social" pode gerar equívocos.
"Uma lição que aprendemos em outras crises é que a saúde mental e psicossocial tem que ser um pilar fundamental da resposta, desde o começo. Precisamos ter distanciamento físico, mas não do afeto, devemos estarmos próximos socialmente com as ferramentas disponíveis: redes sociais, videoconferências, WhatsApp. Com experiências anteriores, aprendemos que é importante reforçar os vínculos, criar uma rede dos mais sozinhos", diz.
O impacto sobre profissionais de saúde
Uma parte dos trabalhos aborda especificamente os impactos psicológicos sobre profissionais da área de saúde que atuaram na linha de frente do surto de Sars de 2003.
Uma pesquisa intitulada "Morrendo e cuidando no limite", publicada em 2005 na revista acadêmica Applied Nursing Research, entrevistou 200 enfermeiras de Taiwan que atuaram contra a Sars. No país, quatro enfermeiras morreram em decorrência da doença.
Elas relataram que a ansiedade inicial em torno da Sars era impulsionada pelo fato de que o conhecimento sobre a doença ainda não estava sedimentado. "Tanto a infecção quanto as políticas de controle sobre os sintomas dos pacientes mudavam diariamente", afirmou uma das enfermeiras entrevistadas.
Uma outra disse: "Nós tínhamos muita preocupação sobre se o governo tinha sido capaz de construir uma imagem clara das formas de transmissão da Sars, ou protocolos confiáveis para os profissionais de saúde". Algumas das profissionais pensaram em mudar de carreira.
Havia falta de equipamentos, e incerteza sobre a eficácia daquilo que estava disponível. Uma enfermeira relatou como sua equipe improvisou com o que tinha. "Nós não tínhamos uma peça única de roupa que cobrisse todo o corpo, da cabeça aos pés, como recomendado pela Organização Mundial de Saúde. Então usamos uma combinação de máscaras para o rosto, touca cirúrgica e capas de chuva descartáveis para cobrir todo o corpo. Tivemos sorte que ninguém foi infectado."
Cerca de 70% das enfermeiras reportaram sentir dúvida sobre suas próprias capacidades, e pressão para que sacrificassem a si mesmas pelo seu trabalho.
"Costumo dizer que em um centro de emergência, normalmente o risco é do outro. Mas em uma pandemia, o risco é para o outro e para si. O outro quase vira um peso, o que acaba fazendo com que o número de conflitos aumente muito", diz Noal.
A pesquisadora avalia que um outro ponto de fragilidade de profissionais de saúde é o fato de que passam a ser vistos como possíveis transmissores de doenças. "Imaginamos que nas próximas semanas haverá aumento de violência, na rua, contra o profissional de saúde, estigmatizando-o, o que os deixa mais instáveis e fragilizados. As relações se tensionam muito mais nesse tipo de evento."
A pesquisa com as enfermeiras de Taiwan indicou que o pavor que sentiam se estendia para suas próprias casas: 80% relataram que o medo de infectar suas famílias era uma grande fonte de ansiedade.
Uma delas afirmou: "Eu não me importava comigo mesma; na verdade, me preocupava com meus dois filhos e meus pais idosos, que poderiam se infectar através de mim, por causa do meu trabalho no hospital".
Além disso, 80% das enfermeiras afirmaram que tinham dificuldade em convencer médicos a irem pessoalmente até os pacientes infectados. Também afirmaram que, com receio da doença, parte das equipes de limpeza evitava ir até os quartos, onde lixo e roupas sujas se acumulavam mais do que o ideal. Uma enfermeira relatou como sua equipe teve que assumir a tarefa de limpar um dos quartos.
"Um paciente de Sars que sofria com problemas mentais urinou e defecou em pontos diferentes de seu quarto. Como nenhum profissional de limpeza ousava limpar seu quarto, nós o limpamos, aos pares, para evitar sermos atacadas por ele", disse.
Quando a condição dos pacientes infectados começava a se deteriorar por consequência da doença respiratória, a sensação era de impotência, para 90% das enfermeiras.
Mas nem todo saldo da crise foi negativo. Das enfermeiras entrevistadas na pesquisa de Taiwan, 65% afirmaram que a experiência com a Sars foi enriquecedora. Depois de uma fase inicial de medo e autoquestionamento, a confiança delas cresceu. O feedback positivo de pacientes e colegas foi essencial nesse processo.
Uma enfermeira afirmou que "a parte mais valiosa foi conduzir os pacientes durante seu processo de recuperação. Suas famílias escreviam cartas de agradecimento para nós. Nós nos sentíamos muito recompensadas".
Gagliatto afirma que, para quem trabalha na área de saúde, esse é um momento de se reconectar com seus valores profissionais. "Durante a história da humanidade diante de guerras, as pessoas encontraram em seus valores uma fonte de força e humanidade. Um pouco do caminho é esse: saber por que está nesse lugar, no exercício dessa profissão", afirma.
Uma pesquisa publicada em 2006 no Journal of Emerging Infectious Diseases enviou, entre 13 e 26 meses após o fim da pandemia, questionários a 769 trabalhadores da área de saúde que haviam lidado com a crise da Sars em hospitais do Canadá.
Eles atuavam, majoritariamente, em três funções: 73,5% eram enfermeiras, 8,3% eram do setor administrativo e 2,9% eram médicos.
Em Toronto, 44,9% dos profissionais passaram a sofrer de distúrbios psicológicos, como estresse e ansiedade depois da Sars. Do total, 30,4% tiveram burnout, uma síndrome marcada por esgotamento físico e mental, normalmente ligada ao trabalho e associada à depressão. E 13,8% passaram a sofrer de transtorno do estresse pós-traumático associado à crise da Sars.
Isso significa que, quando se lembram do evento, sofrem de ansiedade, e sentem sintomas físicos e mentais, como suor em excesso, taquicardia, dificuldade de concentração ou tonturas. É comum que pessoas que sofrem com estresse pós-traumático tenham pensamentos intrusivos relacionados ao que lhes causou sofrimento, e evitem situações que reavivam a memória do que passaram.
Aqueles que tinham a percepção de que o treinamento para eventos como os que viveram era insuficiente, ou que sentiam falta de proteção, como equipamentos adequados, por exemplo, tendiam a sofrer mais de burnout e estresse pós-traumático.
Aqueles que sentiam que tinham apoio, como aconselhamento psicológico e a percepção de que o hospital tomava decisões levando seu bem estar em consideração, tendiam a sofrer menos desses problemas.
"Quando falamos de trabalhadores, uma das formas de estabilizar alguém que vai trabalhar em uma pandemia é dar segurança. Tem que garantir que o profissional vai ter o que comer, vai ter equipamentos de proteção que ele saiba utilizar", diz Noal.
Um outro fator importante foram as estratégias adotadas pelos próprios profissionais para lidar com a crise. Aqueles que lidaram de forma adaptativa, ou seja, com medidas como buscar apoio e soluções, no geral sofreram menos do que aqueles que adotaram estratégias não adaptativas, como culpar a si mesmos, entrar em confronto de forma hostil ou agir de forma evasiva.
O impacto da crise foi duradouro. Segundo a pesquisa, depois de atuarem na linha de frente contra a Sars, 8,6% dos profissionais de saúde pesquisados em Toronto reduziram suas horas de trabalho, e 16,5% deles reduziram o contato face a face com seus pacientes. Além disso, 21% deles passaram a fumar mais, ou a beber mais álcool.
O artigo cita um outro trabalho de 2005, que analisou o caso de um hospital de Taiwan cuja resposta à Sars dois anos antes foi considerada exemplar. Ele conclui que boa comunicação e um clima de confiança entre administradores e funcionários foram fatores determinantes para a gestão bem-sucedida da crise. O trabalho focado no Canadá ressalta que o ideal é criar esse clima de confiança institucional antes da eclosão de uma crise.
Por exemplo: criar um ambiente de planejamento colaborativo para lidar com o surto da doença pode reduzir a tendência entre alguns profissionais de lidar com o problema de forma evasiva, e aumentar sua disposição a buscar o apoio de colegas. Uma liderança efetiva pode fomentar um ambiente em que os profissionais busquem menos o confronto.
Segundo Gagliatto, para profissionais na linha de frente, "criar um ambiente de suporte mútuo é muito importante. Trabalhei em contexto de guerra, e os profissionais diziam que não tinham condições de chegar em casa e conversar com filhos e parceiros, porque estavam em realidades muito distantes. Um ambiente de troca com os pares ajudava muito".
A pesquisa também ressalta que, como o impacto psicológico de um surto pode ser duradouro, é importante identificar aqueles profissionais que mais sofrem com ele, e garantir apoio após a crise passar.
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