Maus hábitos x grupo de risco: por que sentimos culpa durante a pandemia
Nos últimos dois meses, Rafaelle Viana, 33, começou a praticar atividade física. Escolheu o pole dance. Nas últimas semanas, por causa da pandemia do novo coronavírus, as aulas cessaram. O novo regime de trabalho, com carga horária reduzida e dias alternados no escritório, fez com que ela criasse tempo para praticar atividade física em casa, na companhia dos dois filhos, de 9 e 12 anos, e voltar a cozinhar diariamente.
"Tenho aproveitado para cuidar de mim, da minha saúde física e mental, dos meus filhos, e deixar a ansiedade um pouco de lado", conta a funcionária pública de Cuiabá (MT). Desde que a quarentena começou, ela diz que já sentiu diferença no corpo e na mente. Em meio às notícias sobre jovens em estado grave com a Covid-19, Viana decidiu não parar de se exercitar. Problemas de sobrepeso também fizeram com que ela decidisse manter a rotina de exercícios e desse uma guinada na alimentação. Como ela, pessoas do grupo de risco da Covid-19 têm enfrentado grande medo e ansiedade a cada notícia ou pronunciamento sobre a doença. Além disso, Viana tem se confrontado com a mais cristã das sensações: a culpa.
Mesmo com estatísticas apontando que cerca de 80% das mortes por Covid-19 estão relacionadas a outros fatores, há uma parcela de jovens com "histórico de atleta" em estado grave ou até vitimados pela doença. E são esses os números que mais assustam. O que explica esses casos? Há hipóteses, mas ainda poucas certezas. "Ainda não sabemos suficiente sobre os mecanismos de infecção da doença do novo coronavírus, mas é provável que esses eventos inesperados em pessoas saudáveis possam estar ligados a três fatores principais: elevada carga viral, comorbidades não diagnosticadas ou fatores genéticos", explica Rômulo Neris, virologista da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e pesquisador visitante da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos.
Desde que a pandemia começou, foram traçados os grupos de risco: idosos (pessoas com mais de 60 anos), pessoas com comprometimento imunológico, cardíaco ou pulmonar. "Mas estamos falando de grupos de risco para desenvolver a forma severa da doença", frisa Karina Bortoluci, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunologia e professora da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo). "Esses grupos precisam redobrar os cuidados, mas na verdade todos nós deveríamos redobrar os cuidados: manter o distanciamento social, hábitos de higiene, lavar as mãos, sair de máscara quando necessário", alerta.
Sendo do grupo de risco ou não, a indicação é clara: ficar em casa é o único remédio que conhecemos contra a Covid-19. "O que é paradoxal, porque ficar em casa agora é o melhor para a saúde, mas dentro de casa não conseguimos manter outros hábitos saudáveis como antes, como caminhar, malhar, ter acesso a alimentos mais saudáveis", afirma Paulo Sérgio Boggio, neurocientista e coordenador do laboratório de neurociência da Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo. "Não é o cenário mais propício, o que mostra a necessidade da gente falar para as pessoas tentarem, mas sem a pressão e a crítica excessiva, porque isso leva à sensação de culpa. Você fica o tempo inteiro se vendo numa situação negativa e tentando fazer diferente, não conseguindo, ficando mais culpado", opina.
Além dos fantasmas interiores, acompanhar notícias e pronunciamentos oficiais com afinco pode ser um gerador de sensações ruins. Humanizar as vítimas é importante, mas se ver nelas pode ser um gatilho. "Como a informação vai chegar para as pessoas é outro elemento que interfere na percepção da culpa e nas reações emocionais que as pessoas vão ter", diz Boggio. "Reportar o cenário é importante, mas é importante reportar de uma forma bem ampla: quantos casos já têm, o que isso significa, quantas mortes já tem, quantos já se recuperaram. A informação apresentada de uma forma estruturada, clara e objetiva pode ajudar."
Valor da informação
Nesse aspecto, o jornalismo tem muito a contribuir, opina o especialista. A interpretação da informação varia de pessoa para pessoa, depende do fato dela estar em algum grupo de risco ou não, por exemplo, mas é importante que ela seja precisa.
"A imprensa tem tido um papel fundamental nessa pandemia, buscando fontes e estudos confiáveis e conseguindo contrapor muito das fake news espalhadas por aí", afirma Claudia Collucci, jornalista especializada na cobertura de ciência e saúde na Folha de S.Paulo. "A pandemia é dinâmica, os dados podem mudar amanhã e o jornalismo acaba seguindo isso. Acompanhei pelas redes sociais o relato de idosos, obesos, doentes crônicos, que se sentiram incomodados com essa suposta culpabilização. Acho que sim, é uma discussão que merece ser feita e analisado se houve excessos ou injustiças. Mas estamos no meio de uma guerra, e a gente precisa se ancorar em alguma coisa. Na cobertura de saúde, a gente procura se basear em estudos publicados em revistas", diz.
Com a subnotificação de casos e muitas dúvidas em aberto pela ciência, pode haver a sensação de que há motivo para perder as estribeiras. Mas não há, ressalta Neris: "Apesar de mortes estarem acontecendo em todas as faixas etárias, os indivíduos não representam um padrão claro de grupo acometido na população. A frequência de óbitos entre indivíduos de 0-60 anos é consideravelmente baixa. São eventos pontuais, que requerem cuidado na discussão e investigação e, portanto, não representam motivo para pânico."
Buscar notícias positivas sobre a pandemia e de fato tentar mudar os hábitos de saúde podem gerar uma sensação positiva e diminuir a culpa e o medo. "Acho ótimo que as pessoas estejam mais preocupadas com seus hábitos e com sua saúde", diz Bortoluci. "O fato de elas estarem mais preocupadas é um ganho incrível, é maravilhoso."
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