Topo

Covid-19 pode trazer algo de bom? Entenda como epidemias mudaram o mundo

O quadro "Triunfo da Morte" (1563), do holandês Pieter Brueger The Elder é apenas um dos legados de grandes epidemias para a humanidade - Reprodução/ Museu do Prado (Madri)
O quadro "Triunfo da Morte" (1563), do holandês Pieter Brueger The Elder é apenas um dos legados de grandes epidemias para a humanidade Imagem: Reprodução/ Museu do Prado (Madri)

Marília Marasciulo

Da agência Eder Content, colaboração para o TAB

08/04/2020 04h00

Autor de um dos maiores best-sellers dos últimos anos, o historiador israelense Yuval Noah Harari soa como um bálsamo em meio ao cenário distópico da pandemia de covid-19. Em artigo publicado no Financial Times, Harari disse que essa tempestade vai passar. "Mas decisões que as pessoas e governos tomarem nas próximas semanas vão provavelmente moldar o mundo pelos próximos anos, vão definir não só nossos sistemas de saúde, mas também nossa economia, política e cultura", escreveu o autor de "Sapiens - Uma Breve História da Humanidade", livro que está há 72 semanas na lista dos mais vendidos do jornal The New York Times.

Harari não é o primeiro — nem o único — a levantar essa bola. Especialistas já avisaram que a pandemia vai provocar uma recessão econômica tão forte quanto a de 2008. Mas o historiador israelense toca em um ponto que vai além da questão econômica: a maneira como epidemias ou pandemias são capazes de mudar o curso da história. "Muitas medidas de emergência de curto prazo vão se tornar permanentes, essa é a natureza das emergências, elas aceleram processos históricos. Decisões que em tempos normais poderiam exigir anos de deliberação são aprovadas em questão de horas."

O coro é engrossado por especialistas como David P. Clark, professor de microbiologia na Universidade do Sul de Illinois e autor de "Germs, Genes, & Civilization: How Epidemics Shaped Who We Are Today" (Germes, Genes & Civilização: Como as Epidemias Mudaram Quem Somos Hoje, em tradução livre, publicado em 2009 e sem edição no Brasil). No livro, Clark argumenta que, apesar de nós humanos acreditarmos que controlamos nossos próprios destinos, na verdade são micróbios invisíveis que controlam nossas atividades e, por maiores que sejam os avanços para mitigar os efeitos negativos das doenças, elas vão continuar acontecendo.

"Nós não vamos controlar nunca [as epidemias], porque a vida é incontrolável. Ela está sempre em mudança", explica a médica epidemiologista Marilia Sá Carvalho, pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz. Nem sempre, porém, essas mudanças são para o pior — por mais estranho que pareça pensar nisso no auge de uma pandemia.

Dos horrores da peste, grandes descobertas

Os maiores exemplos vêm da peste bubônica, que assolou o mundo entre os séculos 14 e 19. Estima-se que pelo menos um terço da população europeia tenha morrido em decorrência da doença, que causava febre alta, dores intensas, falta de apetite, náusea e vômitos e era transmitida pela pulga de ratos. Não à toa, ficou conhecida como Peste Negra.

A epidemia contribuiu para o desenvolvimento mundial a partir da Europa. A escassez de mão-de-obra devido à alta mortalidade levou o sistema feudal, no qual pessoas eram forçadas a trabalhar para um senhor, a entrar em colapso. Também foi por causa dela que a saúde pública se desenvolveu. Uma das medidas adotadas, o isolamento social, continua sendo copiada em outros surtos — inclusive o do novo coronavírus. Vem daí, aliás, o termo "quarentena", usado pelas cidades italianas para descrever a estratégia.

Houve avanços culturais também: pela primeira vez, as sociedades começaram a questionar a religião e o papel de Deus, como conta o professor emérito de História da Medicina da Universidade Yale, Frank Snowden, no livro "Epidemics and Society: From the Black Death to the Present" (Epidemias e Sociedade: Da Peste Negra ao Presente, publicado em 2019 e ainda sem edição no Brasil).

Algumas pessoas concluíram que talvez não existisse um deus, e outras ergueram palácios, fizeram pinturas e esculturas para tentar se redimir do que acreditavam ser um castigo divino. Tais ícones perduram em grandes cidades europeias: numa das ruas mais famosas de Viena, por exemplo, uma escultura barroca relembra os milhares de mortos deixados pela peste na Áustria.

 Situada no meio de uma das ruas mais famosas de Viena, a enorme escultura é um memorial da pior praga da história vienense - Wikimedia Commons - Wikimedia Commons
Situada no meio de uma das ruas mais famosas de Viena, a enorme escultura é um memorial da pior praga da história vienense
Imagem: Wikimedia Commons

O holandês Pieter Brueger (The Elder) traduziu o avanço devastador da peste sobre as instituições sociais e as coisas mundanas ao pintar "O Triunfo da Morte", um quadro a óleo de 1563 que está exposto no Museu do Prado, em Madri. Outro exemplo é a gravura "Doctor Schnabel von Rom", obra do alemão Paulus Furst, que retrata a vestimenta usada pelos médicos em Roma durante a epidemia de peste e integra o acervo do Museu Britânico.

Na literatura, por sua vez, um gênero inteiro foi criado. Autores que viveram a peste e muitos anos depois dela escreveram obras sobre os horrores da época. Entre as mais conhecidas está a "A Peste", de Albert Camus. O romance destaca a mudança na vida da cidade de Orã depois que ela é atingida por uma terrível peste, transmitida por ratos, que dizima sua população. Narrado do ponto de vista de um médico envolvido nos esforços para conter a doença, o texto de Camus ressalta a solidariedade, a solidão, a morte e outros temas fundamentais para a compreensão dos dilemas do homem moderno. Não à toa, a obra — publicada em 1947 — voltou recentemente às listas de mais vendidos em vários países, como França e Itália.

Os horrores da peste foram traduzidos em diversas obras de arte dispostas em museus e prédios históricos mundo afora. Em Veneza, o edifício da Scuola Grande di San Rocco foi construído em homenagem a São Roque, o santo que protegia da doença, e abriga várias pinturas de Tintoretto com a temática da peste.

Em 1667, durante a quarentena por um novo surto da doença, o físico Isaac Newton desenvolveu a Teoria da Gravidade que o consagrou. Longe da Universidade de Cambridge, o cientista teve tempo de sobra para fazer seus experimentos que levariam às descobertas.

Saneamento para o combate das epidemias

No Brasil, a peste deu um empurrão na modernização do Rio de Janeiro. Em sua terceira fase, a doença chegou ao então novo continente já no fim do século 19 pelo porto de Santos, em um navio vindo de Portugal. "Havia um discurso de que não era bem 'a' peste, que não havia necessidade de medidas draconianas, pois se tratava de outra doença qualquer", explica a pesquisadora de história das doenças Dilene Raimundo do Nascimento, professora na Casa Oswaldo Cruz.

O sanitarista Oswaldo Cruz, que na época trabalhava na produção de um soro contra a doença, foi chamado para firmar um diagnóstico, e determinou a adoção de medidas duras de higienização dos portos e captura dos vetores. "Como estímulo, ele criou um sistema de compra dos ratos, as pessoas caçavam os ratos e vendiam para o fiscal sanitário", diz Dilene.

O surto de peste bubônica não foi a única na cruzada de Oswaldo Cruz contra as doenças infecciosas: com uma população que vivia em cortiços, em uma cidade com esgoto a céu aberto, o Rio de Janeiro lidava também com epidemias de varíola e febre amarela. Além da captura dos vetores, o sanitarista isolou doentes, determinou a notificação compulsória dos casos e desinfectou casas nas áreas do surto. "Ele conseguiu controlar as doenças, e as medidas foram adotadas em outras ocasiões, em outros estados", diz Dilene.

Do outro lado do Atlântico, a epidemia do cólera contribuiu para a reorganização o sistema de abastecimento de água na Inglaterra. Em 1854, um surto da doença em Londres matou cerca de 600 pessoas. Na época, não se sabia ainda o que causava a doença e a crença geral era de que a moléstia era transmitida por odores venenosos e cheiros fétidos. Até que John Snow, um anestesista local, levantou a radical hipótese de que a transmissão se dava por algum organismo microscópico. Snow mapeou as fontes de água do bairro mais afetado e a localização das principais vítimas, identificando uma concentração no entorno de uma fonte específica.

O médico convenceu a prefeitura a bloquear a fonte e o número de mortes caiu consideravelmente. A investigação de Snow se tornou um marco da epidemiologia, visualização de dados e planejamento urbano — ainda que ele jamais tenha identificado o tal microorganismo. Isso só ocorreu décadas depois, em 1880, pelo alemão Robert Koch.

Vacinação para prevenir sequelas

No começo do século 20, foi a poliomielite que desafiou as autoridades de saúde. Entre 1907 e 1912, os Estados Unidos enfrentaram cinco grandes epidemias da doença, que estourou em Nova York e espalhou-se pelo país. Causada por um vírus, a poliomielite é transmitida por água e alimentos contaminados e, sem cura, pode provocar paralisia em suas vítimas. O drama foi retratado na última obra do escritor Philip Roth, "Nemesis", vencedora do Man International Book Prize em 2011. Publicado em 2010, o romance se passa no verão de 1944 e retrata os efeitos do surto de poliomielite sobre uma comunidade de Newark e suas crianças.

Em 1917, outro surto de pólio infectou 27 mil americanos e deixou mais de sete mil mortos, obrigando o fechamento de escolas, cinemas e piscinas públicas. Ao assumir a presidência dos Estados Unidos, em 1933, Franklin Roosevelt — que contraiu a doença aos 39 anos e sofria com suas sequelas — criou uma comissão dedicada a desenvolver uma vacina, que só veio em 1953.

Por mais que evitasse complicações, a vacina criada pelo médico norte-americano Jonas Salk não prevenia a infecção inicial. Isso só ocorreu cinco anos depois, com a introdução de uma vacina em forma de gotas, desenvolvida pelo pesquisador Albert Sabin. E foi ela que revolucionou a saúde brasileira no fim do século 20.

"Tivemos algumas epidemias por aqui em 1937, 1953 e 1954, e os profissionais de saúde prestaram a atenção e começaram a desenvolver planos de controle da doença", explica a pesquisadora Dilene. No fim de 1979, acusado de desleixo por não conseguir controlar a epidemia, o governo federal tomou a ousada decisão de vacinar todas as crianças em um único dia, criando o Dia Nacional de Vacinação. "Na época, não se sabia nem quantas crianças existiam no Brasil, foi um trabalho hercúleo", conta a pesquisadora. "Mas eles [o Ministério da Saúde] conseguiram, chega a ser emocionante."

No terceiro ano de campanha, a tendência já era zerar casos e, em 1994, o Brasil conquistou o certificado de erradicação da pólio. A experiência foi um marco para o desenvolvimento do planejamento estratégico e estatística em saúde, para a neurologia, pediatria e educação. "A epidemiologia no Brasil hoje é bem razoável, ela é bem estruturada para as doenças transmissíveis", diz a epidemiologista Marilia Sá Carvalho, da Fiocruz.

Uma escolha pela frente

A lista com mais exemplos de como as epidemias e pandemias mudam o curso da história vai longe: a varíola introduzida por colonizadores nas Américas contribuiu para o reflorestamento de áreas antes ocupadas e uma queda nos níveis de dióxido de carbono; uma epidemia de febre amarela em 1801 colaborou para a independência do Haiti ao dizimar soldados franceses que tentavam conter a revolução iniciada na então colônia; a pandemia da AIDS nos anos 1990 levantou o debate sobre educação sexual e uso de camisinha.

"Acho que as epidemias moldaram a história em parte porque inevitavelmente levaram os humanos a pensarem sobre grandes questões", disse o médico Snowden, em entrevista à revista The New Yorker. "As epidemias parecem levantar um espelho para enxergarmos quem realmente somos, e nem sempre [o espelho] mostra só o lado obscuro, ele também revela nosso lado heróico."

São Roque curando a Praga, óleo sobre tela, Tintoretto, 1549 - Reprodução/ Scuola Grande Di San Rocco - Reprodução/ Scuola Grande Di San Rocco
São Roque curando a Praga, óleo sobre tela, Tintoretto, 1549
Imagem: Reprodução/ Scuola Grande Di San Rocco

No caso do novo coronavírus, ainda é cedo para prever o que vai mudar. As pesquisadoras brasileiras ouvidas pela reportagem acreditam num resgate da confiança na ciência e da solidariedade, apontada também pelo historiador Harari como uma das escolhas que nos faria vitoriosos não só contra a atual pandemia, mas contra novas crises que podem surgir mais adiante.

"Quando escolhermos entre alternativas, precisamos nos perguntar não só sobre como sobreviver à ameaça imediata, mas também que tipo de mundo vamos habitar quando a tempestade passar", escreveu o autor israelense no artigo publicado pelo Financial Times. "Sim, a tempestade vai passar, a humanidade vai sobreviver, a maioria de nós ainda vai estar vivos — mas vamos habitar um mundo diferente."