Como o mito do 'homem cordial' embaça a percepção sobre o brasileiro
Não foram poucas as vezes em que, nesses tempos de pandemia e um sentimento de solidariedade aflorado, utilizou-se uma expressão consagrada no imaginário cabeçudo brasileiro para nos definir. Muitos se recordaram da clássica definição imortalizada pelo historiador Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) em seu livro "Raízes do Brasil" para dizer que o nosso povo é assim doce, lindão e do bem porque é um "homem cordial".
Não foi isso que Holanda quis dizer. Cordial vem de coração, que vez ou outra bate em direções erradas, quase opostas às da razão ou da moral. "O coração transforma tudo em uma grande relação de amizade, de apadrinhamento e de intimidade", afirma ao TAB o historiador Thiago Lima Nicodemo, professor da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e autor do livro "Alegoria Moderna: crítica literária e história da literatura na obra de Sérgio Buarque de Holanda". "Mas isso não quer dizer ser carinhoso apenas; quer dizer ser muitas vezes violento, porque você transforma numa coisa íntima aquilo que deveria ser de todos: isso inclui as pessoas e também os bens públicos."
Sim, você entendeu certo. Essa cordialidade, na visão acadêmica, também está na raiz de muitos de nossos males. "A cordialidade é uma forma radical de violência que tem como base a sociedade escravista e em alguma medida é relacionada com a corrupção, pois resume o que deveria ser público numa relação privada."
Em vídeo veiculado esta semana no YouTube, o teólogo, filósofo e escritor Leonardo Boff também abordou a questão. "Quando dizem que o brasileiro é cordial, cordial não significa que é gentil, que é sentimental. Porque do coração vem a bondade, a gentileza, mas vem também o ódio e a vingança — e o brasileiro é as duas coisas", disse. "Isso está escondido dentro de nossa cultura: temos sombras terríveis, a sombra do colonialismo, do etnocídio indígena, da escravidão..."
Público x privado. Há uma frase atribuída ao veterano político Jorge Bornhausen, em tom de conselho, de que familiares só devem entrar em gabinetes de políticos se emoldurados por porta-retratos. Ainda que pareça anedótica, ela guarda um princípio importante: a separação entre o público e o privado, cujos limites são constantemente ultrapassados — em maior ou menor grau — pelos ocupantes dos altos cargos brasileiros. Vide o noticiário, em que a família Bolsonaro, e não apenas o senhor Jair Messias, interfere nas decisões políticas. "Temos, por herança ibérica, dificuldade de diferenciar o ambiente familiar do ambiente público, o privado do público. E ele [Holanda] coloca que, por vezes, a tendência é pensarmos o ambiente público e o Estado como decorrência natural do ambiente familiar", explica ao TAB o historiador Sérgio Ribeiro Santos, coordenador do curso de história da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Desde quando a gente é assim? Ah, isso vem de longe. "Essa era a forma como o senhor de escravos se comportava como patriarca com relação não só as seus filhos. Ele tratava tudo como família — na forma íntima mas violenta com que os senhores tratam os escravos, no apadrinhamento político, na lógica dos favores e do jeitinho, tudo girava em torno de uma espécie de hipertrofia da esfera familiar sobre aquilo que deveria ser política. Quem é apadrinhado por esse senhor está acima das leis, as leis são para os outros", explica Nicodemo. Esse jeito sacana de ser acaba transbordando para todas as relações sociais. E outra: cordial não é o "senhor de engenho" propriamente; cordial é a manutenção desse jeito de pensar a vida nas relações sociais, políticas e institucionais.
Patrimonialismo. Aí chegamos a um conceito muito trabalhado por um dos pilares da sociologia, o jurista e intelectual alemão Max Weber (1864-1920), cuja obra foi bastante estudada por Holanda. Weber procurou analisar e compreender o chamado patrimonialismo, essa não-distinção entre o que é particular e o que é coletivo. No Brasil, esse modelo foi implantado ainda nos primeiros anos do colonialismo português, pelo modelo de cessão de terras aos capitães hereditários, e resistiu aos novos arranjos políticos até hoje.
Buarque de Holanda, o pai. O historiador Sérgio Buarque de Holanda é pai de Chico Buarque. Nasceu em São Paulo e formou-se em ciências jurídicas e sociais pela então Universidade do Brasil, no Rio. Trabalhou como jornalista, mas se destacou como professor universitário e nos livros fundamentais que escreveu sobre a história e a cultura brasileira. Foi titular da cátedra de estudos brasileiros da Universidade de Roma, na Itália e professor visitante em diversas instituições norte-americanas. Aposentou o giz em 1969, em protesto por colegas professores terem sido aposentados compulsoriamente pelo regime ditatorial militar. (Pois é, isso rolou). Foi também um dos fundadores do PT (Partido dos Trabalhadores).
A expressão em si. Não foi Sérgio quem inventou o "homem cordial". Ele próprio admitiu que a tomou emprestada de um trecho de carta escrita em 7 de março de 1931 pelo jornalista e poeta Ribeiro Couto (1898-1963) ao poeta e diplomata mexicano Alfonso Reyes (1889-1959). "É da fusão do homem ibérico com a terra nova e as raças primitivas que deve sair o 'sentido americano' (latino), a raça nova produto de uma cultura e de uma intuição virgem — o Homem Cordial". O conceito, na origem, mistura um pouco do egoísmo europeu, "tocado pela intolerância e pela fome", com a "vastidão generosa" das Américas, criando seres humanos hospitaleiros e com tendência à credulidade. Sérgio Buarque de Holanda só lançaria o "Raízes do Brasil" cinco anos mais tarde.
Desculpa aí, Sergião. Holanda não escondia sua insatisfação frente à maneira como a expressão acabou mal-compreendida. Conforme escreveu o jurista, sociólogo e escritor Raymundo Faoro (1925-2003) em artigo publicado pela Folha de S. Paulo, o autor "passou o resto da vida indisposto com 'Raízes do Brasil', tentando explicar que não era isso", pontua Nicodemo.
Cordialidade de WhatsApp. Nicodemo acredita que o mundo digital aprofunda o caráter de "homem cordial" em nós, pois tende a isolar e individualizar cada vez mais as relações sociais. "Ajuda a entender também a dinâmica daquilo que costumamos chamar de fake news, porque são enunciados que navegam de par em par, reforçando e produzindo comunidades de aceitação. Não importa o que a ciência diz sobre a terra ser redonda, sobre as vacinas e sobre a necessidade da quarentena. O que importa é que tem um monte de gente 'que pensa igual a mim', em algum lado da rede."
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