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'A vida é mais que isso': como a pandemia acelerou a 'demissão silenciosa'

"Estou entregando tudo o que é compatível com minha função. E a vida é mais que o trabalho" - borchee/iStock
'Estou entregando tudo o que é compatível com minha função. E a vida é mais que o trabalho' Imagem: borchee/iStock

Edison Veiga

Colaboração para o TAB, de Bled (Eslovênia)

22/10/2022 04h01

Até a pandemia de covid-19 mudar tudo, a publicitária Flávia* era uma típica paulistana workaholic, dessas que colocam a carreira acima de tudo e de todos. "Eu estava com 38 anos, já tinha um cargo alto dentro de uma empresa multinacional, um bom salário e muito prazer em notar que, sim, era bem-sucedida", conta.

Ela costumava sair de casa às 7h, antes mesmo de sua filha acordar, e voltava por volta das 22h, 23h. "Passava dias sem vê-la, sem abraçá-la. Achava que ganhando bem e podendo comprar tudo o que ela precisa, pagar boa escola e passear nos fins de semana era o que bastava", diz. A empregada doméstica que morava no apartamento da família de segunda a sexta era quem tinha de cuidar da menina.

Então veio março de 2020. O mundo parou. A empresa de Flávia decretou home office. "Comecei a viver a vida real. Descobri que ficar abraçada vendo um filminho no sofá com minha família valia mais do que me matar de trabalhar para pagar um passeio caro. Minha filha passou a sorrir como nunca havia visto, talvez porque eu não estivesse presente nesses momentos", conta.

Aos poucos, a Flávia workaholic foi se transformando na Flávia essencialmente profissional, que só fazia o que era solicitado, só trabalhava no horário acertado, se negava a fazer horas extras ou assumir outras funções.

No auge da pandemia, ela e o marido decidiram "passar um tempo" na casa de praia, no litoral norte de São Paulo, onde teriam mais tranquilidade e uma vida mais em contato com a natureza.

A pandemia não acabou, mas a vida retomou os trilhos. "Só aquela velha Flávia que não voltou a ser quem era", brinca. Para ela, o trabalho jamais voltou a ser prioridade. "Antes vem o tempinho para mim. Então vem minha família, minha filha. Trabalho é somente aquilo que eu consigo encaixar em oito horas do meu dia. E está bom."

Ela negociou com a empresa e seguiu trabalhando à distância, morando na beira da praia — vai a São Paulo, no máximo, uma vez por semana, quando é necessário participar de um evento ou de uma reunião presencial.

"Não sei se sou uma quiet quitter. Na verdade, pensando bem, acho que sou, sim."

O mínimo que você precisa fazer

"Quiet quitting", expressão da modinha no mercado de trabalho, pode ser entendida simplesmente como "demissão silenciosa". Para especialistas, o fenômeno é consequência direta do comportamento de empregados e empregadores em tempos de lockdown e quarentena.

Na retomada da normalidade, está difícil aceitar algumas tarefas, obrigações e horários que antes não pareciam ser um problema. "Esse termo está relacionado a um comportamento que tem sido adotado por profissionais que optam por permanecer em suas funções, sem assumir responsabilidades maiores ou diferentes daquelas para as quais eles foram originalmente contratados", define Miriam Rodrigues, professora especialista em comportamento organizacional e gestão de pessoas da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

"Apesar de transmitir a impressão de que esse comportamento possa demonstrar preguiça ou apatia, cabe observar que os 'quiet quitters' não se importam em trabalhar intensamente. Mas farão isso apenas se identificarem contrapartidas por parte da empresa, em especial aquelas relacionadas ao crescimento profissional."

Já para Mariana Malvezzi, professora de psicologia e cultura organizacional na ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing). o "quiet quitting" é um "sinal de grande resignação", em que o profissional "executa o mínimo que lhe é solicitado".

"Estamos falando em um desinvestimento na própria carreira, na realização vinda do trabalho e, por que não, na própria realização pessoal", diz, citando uma pesquisa realizada em agosto pelo site norte-americano Intelligent.com.

Os dados revelaram que 21% dos empregados podem ser classificados como "quiet quitters" — e o número é maior entre os mais jovens: 25% dos que têm de 25 a 34 anos. "E 5% fazem menos do que o mínimo necessário", pontua.

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'Trabalho é somente aquilo que eu consigo encaixar em oito horas do meu dia. E está bom'
Imagem: Imagem: Unsplash/Reprodução

Reunião que podia ser e-mail

No isolamento provocado pela pandemia, muitas pessoas passaram a repensar a conciliação entre vida pessoal e profissional para priorizar o bem-estar.

"As privações de todas as ordens que vivemos na pandemia e o advento do home-office, que parece ter encontrado seu espaço definitivo em muitas organizações, geraram uma série de adaptações por parte das pessoas e das empresas e, dentre elas, a redefinição de prioridades por parte de alguns", contextualiza Rodrigues.

Ao que parece, ao trocar a janela da firma pela da sala de casa, o horizonte pessoal ficou um pouquinho maior naquele olhar de suspiro entre uma tarefa e outra.

"A quarentena sem dúvida antecipou tendências e rompeu paradigmas", acrescenta Malvezzi. Para ela, essa transformação fez com que "muitas verdades" passassem a "ser postas em xeque".

"Em certo sentido, pode-se afirmar que há uma perda de sentido para algumas ações, comportamentos, atitudes que até então eram consideradas corriqueiras", comenta. Que atire a primeira caneta quem não pensou naquela reuniãozinha que não leva a nada ou mesmo nos deslocamentos infernais para ir e vir do trabalho em pleno trânsito paulistano.

E tem aquela sensação de todos nós: estamos mais cansados. E talvez menos dispostos a enxugar gelo. No estudo da Intelligent.com, foi constatado que 80% dos "quiet quitters" sofrem de burnout, o famoso esgotamento. "A pesquisa também demonstrou que 46% não estão dispostos a trabalhar mais horas, mesmo mediante pagamento de horas extras."

'A vida é mais que isso'

É bem aquele papo de gestão organizacional: com tal diagnóstico em mãos, é preciso discutir a relação e buscar realinhar as expectativas entre empregado e empregador. Algo mais fácil na teoria do que na prática, claro.

"O tiro no pé irá acontecer a partir do momento em que os objetivos do profissional e os da empresa não estiverem alinhados", adverte Rodrigues. "É importante lembrar que sempre existirão expectativas de ambos os lados. Se o profissional é livre para suas opções de carreira, a empresa também o é na definição de seu time e do tipo de profissional mais aderente às suas necessidades ou expectativas."

"A carreira hoje é cada vez mais desenhada pelo próprio sujeito", afirma Malvezzi. "Isso significa que o investimento, a automotivação e as escolhas precisam fazer sentido para o profissional e que dependem em certo número exclusivamente a ele. É a chamada carreira interna, na qual as escolhas individuais precisam ser negociadas e construídas com o meio e cuja narrativa, acima de tudo, precisa fazer sentido ao sujeito."

O mundo mudou e, claro, os modos de trabalho também. Em caso de demissão silenciosa, melhor antes procurar o horizonte que mais satisfaz. E refletir, claro.

"O 'quiet quitting' é um sinal do que nós, como sociedade, precisamos repensar em termos de trabalho, carreira, realização pessoal e identidade."

Flávia conta que sua chefe "já reclamou algumas vezes". "Eu respondo que estou entregando tudo o que é compatível com minha função. E que a vida é mais que isso."

*Nome trocado a pedido da entrevistada