Sem grana na pandemia, jovem faz dinheiro vendendo máquinas de escrever
Há mais máquinas de escrever do que móveis no pequeno apartamento de Louis Eugênio de Lima Martins, 24, na zona norte de São Paulo. "Cuidado com a Valentine", alerta quando a reportagem do TAB tropeça numa máquina de cor vermelho-viva que disputa a atenção com outras 60. Fabricada em 1969 pela Olivetti, a Valentine é conhecida como a máquina de escrever usada por David Bowie — projetada pelo designer italiano Ettore Sottsass. "Mas fica tranquila. [As máquinas] são bem mais fortes do que parecem. Se não fossem, não resistiriam tanto tempo", garante o jovem de óculos grandes e cabelos compridos aficionado por objetos vintage.
O trabalho desse paulistano de nome afrancesado é garimpar e vender antigas máquinas de escrever. "Eu vivo 100% disso", orgulha-se. Animado com os números do seu negócio, amarra seu tênis All Star vermelho enquanto contempla uma máquina Erika Mod 10 semiportátil: "É da Alemanha Oriental. Não sei se quero vender essa, não."
Com uma boina listrada na cabeça, ele se senta à escrivaninha para mostrar à reportagem que não é preciso ter medo da máquina de escrever. "Quer tentar?", pergunta, enquanto seus dedos pressionam com força as teclas e um barulho agradável toma conta do lugar.
Ele exibe sua habilidade numa Tropical, máquina da Olivetti inspirada na Olympia Traveller de Luxe. Pesando 4 kg, conta ele, era um dos modelos preferidos de jornalistas e profissionais liberais. "Todo mundo tinha uma dessas."
Ao lado da Tropical está uma Bambina, modelo da Olivetti voltado para o público infantil e um dos últimos esforços da marca, preocupada com o avanço da computação, em atingir novos públicos. "É muito rara", comenta Louis. Na década de 1980, quando ainda resistia o pensamento de que "se seu filho não tiver curso de datilografia, não vai ser ninguém na vida", a Bambina foi pensada para cativar os pequenos: cheia de adesivos, cores e encarte anunciando-a como "a máquina de escrever igualzinha à do papai". Não deslanchou.
A Lettera 22 de Clarice
Louis pula de máquina em máquina e conta suas histórias. Informa que Clarice Lispector tinha uma Lettera 22 da Olivetti — depois atualizada pela marca como Lettera 32. O modelo de cor verde-oliva foi muito usado pelo romancista norte-americano Philip Roth na década de 1960. Roth tinha ainda uma Olivetti Underwood Studio 44 (1965). De um azul-esverdeado, seu nome "estúdio" sugere um artista em ação. "Essa aqui já está vendida", avisa.
É difícil acompanhar o pensamento de Louis, que vai emendando uma referência na outra. "Toda máquina de escrever tem uma história", justifica. Seu gosto por elas começou em janeiro de 2021, quando a namorada o presenteou com sua primeira máquina de escrever, de R$ 80. Ele a achou grande demais e, tentando trocar por uma menor, via Facebook, descobriu todo um universo que não conhecia.
Durante a pandemia, numa situação financeira complicada após receber negativas em entrevistas de emprego, chegou ao perfil de um colecionador de máquinas no Instagram que também as revendia. "Vi uma de que gostei e custava R$ 800, daí eu vi que ele vendia, e não vendia pouco. E passou pela minha cabeça.. Por que não?".
Em 13 de janeiro de 2021, data de que lembra sem piscar, Louis comprou sua primeira máquina com o crédito do presente recebido pela namorada: uma Nisa, anos 1960, da antiga Tchecoslováquia. Custou R$ 50 e pertencia a uma caminhoneira de Mairiporã muito simpática que o encontrou no Shopping Metrô Tucuruvi.
Ele registrou suas primeiras impressões sobre a máquina numa folha de papel que exibe com orgulho. "Não posso corrigir meus erros. Tenho que ser atento, mas gosto disso: parece um híbrido entre escrever à mão e escrever num computador. Estou tentando escrever com mais dedos, esqueci de tirar o 'capslock'. Estou preso no preto, nenhuma tecla Tab. Agora vou parar de teclar porque Brilhante não aguenta mais o barulho." Brilhante é o sobrenome de sua namorada, Aline, 26.
Em março de 2021, viu uma máquina à venda no Facebook e resolveu exibir o produto nas suas redes, pedindo um preço acima. Fechou negócio e, com a venda, adquiriu a máquina, garantiu lucro e passou a garimpar peças sozinho. Já vendeu mais de 170 máquinas desde então.Além do garimpo, Louis é procurado por gente que quer doar. "Essa aqui chegou através de um senhor que ganhou a máquina do pai quando tinha 18 anos. Ele nem queria vender, mas viu que seria bem cuidada e fiquei com ela", conta.
Comprou por R$ 200. Louis diz que ainda precisa de revisão e não revela o preço de revenda. Esse é um diferencial que ele aprendeu com um profissional de mecanografia, Ronaldo Oliveira, 69. "Me ensinou quase tudo que eu sei."
Antiguidades no Instagram
Nascido em São Paulo, Louis viveu até os dez anos em Embu-Guaçu, menor município da Região Metropolitana de SP. Sua primeira memória sobre máquinas de escrever remete aos 7 anos de idade: uma Olivetti Lettera 32 do pai, Eugênio de Lima Martins, falecido em 2008. Jornalista das antigas, nas palavras do filho, Martins falava oito línguas — entre elas o Francês, de onde tirou o nome "Louis" —, era avesso a novas tecnologias e preferia tudo que fosse analógico - máquinas fotográficas com filme, por exemplo.
Louis herdou a predileção — e comprou seu primeiro celular somente em 2016, aos 18 anos de idade, embora já usasse as redes sociais pelo computador. "Fiquei abismado com as notificações recebidas no meio do trem. Lembra disso, amor? Era 3G", comenta com a namorada, que confirma e dá risada ao relembrar de quando se viram pela primeira vez no vagão de um trem que viajava sentido Osasco.
Era uma tarde de 2015 e ambos iam para shows de bandas diferentes. "Ele começou a cantar uma música com a amiga dele. Começamos a conversar, descemos numa linha e nos beijamos", conta ela.
Apesar desse gosto por antiguidades, Louis e Aline são o que poderíamos chamar de "casal moderno". Adepto das relações não monogâmicas, Louis frequentava reuniões sobre o tema para discutir sobre ética e não monogamia. Aline diz que o desapego dele com a tecnologia ajudou a manter o relacionamento vivo, preservando a individualidade de cada um. "Consegui criar de certa forma um jeito de viver", concorda ele.
Apesar da aversão à tecnologia, Louis negocia suas peças pelo seu perfil no Instagram: "O Escriba Garimpeiro". A clientela, conta, é basicamente de três tipos: pessoas que usam as máquinas para escrever bilhetes e textos com estilo, colecionadores e clientes que usam as máquinas como objeto decorativo. Ele destaca que os dois primeiros grupos muitas vezes não conseguiam encontrar peças funcionando e com garantia, como ele oferece.
O próprio Louis mantém uma pilha de papéis datilografados com suas poesias e relatos diários. Puxa uma folha escrita numa Olivetti Bambina: "Eu quero escrever história e quero escrever poesia. Quero ser um repórter e quero narrar os fatos, mas não quero me prender à linha do tempo. Minha mente eufórica, embriagada. Sinto calor e uma sensação gostosa de estar viajando, mas não estou. Me mudei em definitivo para a zona norte. Agora pago aluguel. Pago luz. Agora pago tantas coisas. Agora tenho privacidade. Sou acordado com palmas para receber o micro-ondas. Acordo cedo. Não estou viajando. Não é temporário. É minha vida".
No fim do encontro com o TAB, o jovem retorna para o modelo usado por David Bowie, quase pisoteado pela reportagem. "[A Valentine] é uma das mais icônicas da história, uma das mais disputadas por colecionadores", não cansa de se admirar. E não é por acaso: em 2016, a máquina original do artista inglês foi leiloada pela Sotheby's de Londres por US$ 56.565.
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