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A costureira baiana que mantém viva a memória do bando de Lampião

Dona Indaiá herdou da avó cangaceira o dom da costura e um jeito de ser cismada - Felipe Iruatã
Dona Indaiá herdou da avó cangaceira o dom da costura e um jeito de ser cismada Imagem: Felipe Iruatã

Nilson Marinho

Colaboração para o TAB, de Salvador

18/09/2022 04h01

A costureira baiana Indaiá Santos, 63, é desconfiada. Se recebe o telefonema de um desconhecido em sua casa no bairro de Cosme de Farias, em Salvador, pedindo informações sobre o cangaço, reluta em confirmar sua identidade. Quer saber com quem está falando e por que a procuram. Essa cisma toda é coisa de família.

Neta dos cangaceiros Dadá e Corisco, aprendeu com a avó, com quem conviveu por 45 anos, a ter sempre um pé atrás com estranhos. Afinal, o casal passou anos de suas vidas escapando de sorrateiros ataques daqueles que queriam vingar as mortes de parentes, vítimas dos bandoleiros. "Minha avó fez o parto da minha mãe. Fui criada como filha por ela. Eu puxaria a quem?", questiona a neta.

Indaiá conta que ela e sua avó já escaparam de envenenamento durante um jantar, que seria servido como boas vindas à ex-cangaceira em uma cidade do interior baiano - onde, outrora, o bando havia deixado o seu rastro. As duas foram alertadas pela cozinheira que, afeiçoada à história dos bandoleiros, decidiu entregar o plano.

O avô Corisco ela conheceu só de ouvir falar, já que o "Diabo Loiro", como era chamado o braço direito de Lampião, morreu nas mãos de uma patrulha policial no semiárido baiano, anos antes de Indaiá nascer.

A desconfiança não foi a única coisa herdada por Indaiá. Com a ex-cangaceira, ela aprendeu costura, coisa que Dadá dominava com maestria - era a avó a responsável por adornar as vestimentas do bando. As roupas, vistosas em meio à caatinga acinzentada, os colocavam facilmente na mira das forças volantes, por isso nunca eram usadas durante as fatigantes expedições. Reservavam-se, conta Indaiá, às festas realizadas quando as forças policiais estavam longe.

O fato é que somente no início dos anos 30 as roupas e acessórios do bando ganharam a aparência única que permanece no nosso imaginário quase um século depois. Isso porque foi durante esse período que as mulheres passaram a fazer parte do banditismo. A primeira foi Maria Bonita que, apesar de saber costurar, não levava tanto jeito. Os panos ganharam beleza mesmo a partir da chegada de Dadá, que foi levada a contragosto para o grupo, aos 14 anos, já dominando as agulhas.

Indaiá Santos, neta da cangaceira Dadá - Felipe Iruatã - Felipe Iruatã
As bolsas de Indaiá, inspiradas na criação de sua avó Dadá: Lampião invejou Corisco e quis também
Imagem: Felipe Iruatã

Os bornais floridos de Corisco

Dos 34 netos que teve, Dadá escolheu Indaiá, então com 10 anos, para ensinar costura. A introdução ao pedal da máquina Singer não foi porque ela quisesse, mas por insistência da cangaceira que, certa feita, tomou a menina pelo braço e vaticinou: "Uma mulher precisa saber costurar". A garota berrava. Seus pequenos pés mal podiam tocar o maquinário. Tudo aquilo era uma chatice para ela, que preferia se entregar às meninices da idade.

Sob severa supervisão da avó, a menina tinha que criar os bornais, peças que os cangaceiros levavam a tiracolo para guardar munições, alimentos e miudezas de toda sorte. Se errava no corte, não havia problema, sempre tinha um metro a mais de tecido guardado para dar continuidade à lição. Mas foi assim que, aos poucos, Indaiá tomou gosto pela costura.

A peça, chamativa do jeito que ficou conhecida, é uma invenção de Dadá, que durante um dia tedioso e escaldante em um esconderijo na caatinga, pegou tecido e agulha e inventou a bolsa para dar de presente a Corisco. Em uma entrevista de TV, a ex-cangaceira lembrou do episódio: "Eu mesma inventei aqueles bornais de flores, bordados, inventei enquanto estava em um coito, quando estava sem nada para fazer. Fiz um jogo para Corisco, mas quando Lampião chegou de um tiroteio viu aquilo e pediu. Depois, fui obrigada a fazer para todo mundo."

Indaiá diz com orgulho que é a única descendente do bando de Lampião a dar continuidade à estética do cangaço. E diz que continua a fazer seus bornais não apenas por prazer, mas porque lhe foi confiada uma missão. Em 1994, minutos antes de morrer de um câncer de intestino, a cangaceira chamou a neta à beira do leito e pediu: "Você precisa dar continuidade a isso, pela minha memória". O artesanato já lhe rendeu por três vezes consecutivas o primeiro lugar na categoria "Moda Popular" no Prêmio Internacional Ibero Americano.

Indaiá Santos, neta da cangaceira Dadá - Felipe Iruatã - Felipe Iruatã
Memórias de Dadá e Corisco: 'Minha avó me ensinou, além da costura, a ter palavra'
Imagem: Felipe Iruatã

Peças para Jorge Amado e Zuzu Angel

Foi há mais de 20 anos que, de forma despretensiosa, Indaiá passou a publicar fotos da sua arte na extinta rede social Orkut. Não demorou muito para a comunidade formada por historiadores e aficionados pela história do cangaço descobrirem a identidade dela. Todos queriam ter em suas casas uma bolsa feita pelas mãos da neta de uma amazona do sertão.

Com o tempo, a clientela nem sempre muito honesta fez com que ela desanimasse do ofício. Cansou das dezenas de pedidos atendidos, mas não pagos. Mas continua pela avó, pelo cangaço e pelos netos, já que a renda vinda do artesanato, somado à pensão que recebe do ex-marido, ajuda na criação de todos. Cada peça custa cerca de R$ 280.

Indaiá é tão fiel à memória da avó que faz questão de comprar os tecidos que utiliza na produção no mesmo armarinho que vendeu os retalhos à ex-cangaceira por décadas, um empreendimento histórico, localizado na Rua do Cabeça, centro de Salvador. Na cartela de clientes, há agitadores culturais, jornalistas e intelectuais.

Indaiá Santos, neta da cangaceira Dadá - Felipe Iruatã - Felipe Iruatã
Assim como Jorge Amado encomendou bornais a Dadá nos anos 70, uma estilista pernambucana pediu a Indaiá dezenas de peças para seu desfile em novembro
Imagem: Felipe Iruatã

Assim também era Dadá, que tinha como um dos fregueses o escritor Jorge Amado que, em 1973, sem conhecer pessoalmente a ex-mulher de Corisco, chegou à casa dela no bairro do Barbalho, centro de Salvador, e ordenou que o seu chofer jogasse sobre a mesa um punhado de cortes de tecidos. "Toma, Dadá, faça com urgência os seus bornais que serão enviados como presentes a amigos franceses", lembra a neta. Outra que se rendeu à estética do cangaço foi a estilista Zuzu Angel que, no fim dos anos 60, levou às passarelas americanas a fascinante coleção de roupas inspiradas na moda bandoleira.

Este ano, Indaiá recebeu uma ligação. Do outro lado da linha, falava uma estilista pernambucana não tão conhecida quanto a mineira, morta em 1974 em um suspeito acidente de automóvel. A mulher encomendou dezenas de bornais para ornar torsos femininos na passarela de um desfile que será realizado em novembro deste ano no Rio de Janeiro. "Não posso falar o nome da grife e da estilista, é segredo, a pessoa que encomendou pediu. Se tem uma coisa que minha avó me ensinou, além da costura, é ter palavra.