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Filho de Milton Nascimento: 'Esperavam uma namorada, apareci com um pai'

Augusto Kesrouani Nascimento, minutos antes do primeiro show da turnê "A Última Sessão de Música" em São Paulo - Gsé Silva/UOL
Augusto Kesrouani Nascimento, minutos antes do primeiro show da turnê "A Última Sessão de Música" em São Paulo
Imagem: Gsé Silva/UOL

Do TAB, em São Paulo

31/08/2022 04h01

Milton Nascimento sobe os degraus do palco a passos curtos. Ao seu lado, Augusto lhe dá sustentação: segura-o pela mão e acompanha o ritmo da marcha até a cadeira ao centro, comprada numa loja de decoração tão logo voltaram da turnê na Europa. O assento usado nos shows de lá deixava o cantor em suspenso, com os pés longe do chão.

De sandálias de couro e moletom, Milton acena para os músicos, pega uma pequena sanfona e toca os primeiros acordes de "Ponta de Areia". Augusto cumprimenta músicos e técnicos, fingindo dar golpes de jiu-jítsu, e organiza o tempo da passagem de som para o pai, que conheceu quando tinha 13 anos.

Na época, o adolescente sabia de quem se tratava — o artista visitava um casal de amigos de Juiz de Fora, no interior de Minas Gerais, e Augusto estava ali porque era amigo do filho do casal. A figura quieta e tímida dava uma única impressão. "A primeira vez que o encontrei, achei ele de uma antipatia...", relembra.

Mineiro de alma, Milton voltou algumas vezes àquela casa para descansar, sempre aos fins de turnês. Augusto muitas vezes estava lá. Aos poucos, a má impressão se dissipou. "Ele é muito fechado, mas ficou sabendo que eu não tinha relação com meu pai biológico e ficou curioso. Lembro de um dia ele chegar pra mim e dizer: 'se você fosse meu filho e não falasse comigo, acho que eu me matava'. Aquilo me marcou. Foi a primeira vez que senti um carinho paterno."

Quem preenche oficialmente esse papel hoje é a "voz de Deus", como um dia Elis Regina descreveu o cantor. Um laço criado entre sonhos e faltas — e oficializado na Justiça em 2017. A certidão emoldurada, presente de Dia dos Pais, está na cabeceira do quarto de Milton.

Augusto e Milton Nascimento nos bastidores da turnê "A Última Sessão de Música" - Gsé Silva/UOL - Gsé Silva/UOL
Imagem: Gsé Silva/UOL

Augusto e Milton Nascimento nos bastidores da turnê "A Última Sessão de Música" - Gsé Silva/UOL - Gsé Silva/UOL
Augusto e Milton Nascimento nos bastidores da turnê "A Última Sessão de Música"
Imagem: Gsé Silva/UOL

Augusto e Milton Nascimento nos bastidores da turnê "A Última Sessão de Música" - Gsé Silva/UOL - Gsé Silva/UOL
Augusto e Milton Nascimento nos bastidores da turnê "A Última Sessão de Música"
Imagem: Gsé Silva/UOL

Augusto Kesrouani Nascimento é o único herdeiro e idealizador de "A Última Sessão de Música", show que coroa os 80 anos do consagrado artista da MPB (a serem completados em outubro) e que marca sua despedida dos palcos. Atualmente em cartaz no Brasil, o show vai para os Estados Unidos na sequência e volta, em 13 de novembro, para o encerramento da turnê no Estádio do Mineirão — os ingressos estão esgotados, como na maioria das apresentações. Os 65 mil bilhetes foram vendidos em quatro horas, êxito pouco comum entre artistas nacionais com 60 anos de carreira, à exceção, talvez, de Roberto Carlos.

Os shows de despedida têm provocado euforia na plateia. Sentado na nova cadeira, Milton recebe as ovações com os dois pés firmados e um sorriso de canto de boca. No lugar das características tranças, ele agora se apresenta careca ou com boina, item que também tem feito a cabeça do filho. Veste manto e farda desenhados pelo estilista Ronaldo Fraga, com desenhos e bordados de elementos do cancioneiro de Milton, como a imagem de um trem. No show, há paradas em todas as estações: das primeiras canções, passando pelos hinos do Clube da Esquina, aos temas instrumentais e folclóricos. O destino final são as "músicas de churrasco", como Augusto define o bloco final do show, com "Caçador De Mim", "Nos Bailes da Vida", "Maria, Maria" e "Coração de Estudante".

A turnê na Europa, onde faziam passeios turísticos juntos, foi como elixir para o octogenário. "Ele voltou da Europa outra pessoa, falante, comunicativo", observa o filho. "Ninguém está entendendo, parece que bateu alguma chapação nele, ligou para todo mundo para bater papo." Havia uma apreensão inicialmente de que o trajeto e o número de shows poderiam sobrecarregar o cantor. No passado, por muito pouco, Milton não se despediu dos palcos sem nenhum anúncio. "Foi por saúde, ele teria que parar."

Kesrouani de mãe

"Tem gente que acha que eu não tenho mãe", reclama Augusto, com leve sotaque mineiro, embora tenha nascido em Campo Grande (MS). É dela o Kesrouani no sobrenome — ela se chama Sandra e mora em Cuiabá (MT). "É minha grande referência. Sempre que tenho dúvida de alguma coisa, ligo para ela e pro meu pai", diz. Já sobre o pai biológico, ele é curto e direto: "Era uma pessoa que não tinha nada a ver comigo, uma relação que não me fazia bem."

Passado o som, Augusto curte uma cerveja e troca ideia com alguém da equipe sobre alguma garota. "É muito corrido. Às vezes atrapalha o tempo de ser jovem", comenta, apertando as pálpebras numa risada, seu traço mais mineiro. Hoje ele comanda o Nascimento Música como selo, e empresaria outros artistas — do amigo de longa data do pai, Beto Guedes, ao novato Zé Ibarra, reforço vocal que auxilia Milton nas músicas com notas mais altas.

Augusto e Milton Nascimento nos bastidores da turnê "A Última Sessão de Música" - Gsé Silva/UOL - Gsé Silva/UOL
Imagem: Gsé Silva/UOL

Passagem de som do show "A Última Sessão de Música˜, em São Paulo; turnê marca a despedida dos palcos de Milton Nascimento - Gsé Silva/UOL - Gsé Silva/UOL
Passagem de som do show "A Última Sessão de Música˜, em São Paulo, que marca a despedida dos palcos de Milton Nascimento
Imagem: Gsé Silva/UOL

"O show é moldado para ele [Milton] brilhar e se divertir, cantar as partes da música que ele canta tranquilo e que não forçam ele", afirma, sem disfarçar a impaciência com as críticas que recebe. "Vejo crítica de show: 'Ah, a voz não é mais de Deus'. Eu não vou conseguir fazer meu jiu-jítsu aos 80", responde. Por enquanto, a antiga paixão pelo esporte continua presente para aliviar o estresse do trabalho.

Enquanto Caetano e Gilberto Gil, ambos recém-octogenários, têm em suas esposas a grande cabeça administrativa das carreiras, o advogado é quem orienta os negócios e a direção artística do pai. "Elas são as grandes vilãs, como eu sou também. A gente é quem fala não", diz. "Eles não têm uma relação como a gente tem com dinheiro, com organização, nada. Eu vejo gente falando que a turnê é para ganhar dinheiro, só que ele não tem ideia de valores e isso é a parada mais bonita. Ele viveu tudo na vida e não se corrompeu pelo nosso mundo capitalista, essa voracidade que a gente vive."

A relação, ele conta, inicialmente incomodou a família. "Imagina um adolescente apresentando um pai ao invés de uma namorada", relembra. "Com o passar do tempo, minha mãe entendeu que não era uma coisa leviana, que não estávamos brincando de pai e filho." Hoje, Sandra e Milton se falam por telefone e criaram uma amizade. Nos Natais e dias festivos, é o cantor quem é adotado pela família de Augusto.

Ele pontua que a adoção sempre rendeu comentários e é, até hoje, fofoca perene nas redes sociais e bastidores. "Recebo comentários bonitos, mas tem alguns que ainda falam 'está na cara que são namorados'. No início me incomodava, mas hoje, foda-se. Hoje ele está no hype, a gente viaja junto, está ganhando dinheiro e muito bem. O show é a pontinha do iceberg da nossa vida. Tem uma parte que ninguém sabe."

Augusto e Milton Nascimento nos bastidores da turnê "A Última Sessão de Música" - Gsé Silva/UOL - Gsé Silva/UOL
Imagem: Gsé Silva/UOL

Nascimento de pai

Em 2014, num show com Criolo em São Paulo, Milton passou mal em cima do palco. No momento em que tocava "Ponta de Areia", a emoção o fez cambalear, mas o mal-estar se repetiu. Na época, foi diagnosticado com uma profunda depressão, o que agravou algumas comorbidades. Diabético e com problemas cardíacos, o artista havia se submetido a um cateterismo e chegou a ser internado algumas vezes. Na mais sensível delas, Augusto estava em época de prova, em Juiz de Fora.

"Vim correndo de carro pro hospital. Ele estava sozinho. Quando me viu, abriu o maior sorriso do mundo. Naquele momento, eu vi que eu era insubstituível. Foi um momento muito importante nosso. De ele sentir de fato família e amparo. De que pode acontecer qualquer coisa porque o Augusto estava ali", relembra. "Ele tinha um certo pânico de solidão."

Àquela altura, o advogado cuidava dos direitos autorais de Milton. "Tinha muita gente o tempo todo, mas hoje eu vejo isso na minha vida profissional. As pessoas são muito movidas a interesse, e isso custou muito caro ao meu pai, essa vida de glamour. Quando ficou mal, as pessoas sumiram. Agora, com essa turnê, a quantidade de pessoas que apareceram dizendo que estão com saudade, querem reencontrar...", conta.

A vontade de ser pai é algo patente em Milton, contam pessoas próximas. Nos anos 1990, ele próprio fez vir à tona a história de um filho, chamado Pablo Ferreira, com quem perdeu contato durante o regime militar (a quem homenageou na canção "Pablo"). Na verdade, Pablo é filho da comerciante de objetos de arte Cáritas, com quem o artista se relacionou nos anos 1960. Mesmo sendo fruto de outra relação, Milton foi um "pai simbólico", informou Cáritas na época. "Essa história o marcou", conta Augusto. "Ele se casou três vezes e nunca concretizou esse sonho. Foi quando ele mais chegou perto de ser pai."

Augusto Kesrouani Nascimento: 'É legal que ele pare não porque está doente, sem conseguir cantar' - Gsé Silva/UOL - Gsé Silva/UOL
Augusto Kesrouani Nascimento: 'É legal que ele pare não porque está doente, sem conseguir cantar'
Imagem: Gsé Silva/UOL

Adoções

A adoção rege a vida de Milton desde os dois anos. Nascido no Rio de Janeiro, filho de uma empregada doméstica, ele ficou órfão cedo e foi adotado pela professora de música Lília, uma das filhas da patroa. Adotar um filho, aos 70 e poucos anos, parece ter sido vital na recuperação de sua saúde. O cantor pedia para que o Augusto o levasse sempre que possível a Juiz de Fora. Dormiu algumas vezes no dormitório estudantil de Augusto. "Teve um dia que a gente não tinha nada em casa e ele jantou miojo. Aí falei: 'acho que é melhor você se mudar pra cá'. Ele topou mudar, eu achei uma casa. Não dava."

Já na nova casa, Augusto um dia surpreendeu Milton ao piano, após um bom tempo sem encostar em nenhum instrumento. Perguntou se ele estava a fim de voltar a soltar a voz nas estradas e o pai assentiu com a cabeça. Vieram as turnês "Semente da Terra" e "Clube da Esquina", em comemoração ao clássico disco gravado com Lô Borges em 1972. Nesse período, o filho passou a compartilhar mais a vida do cantor no Instagram e os shows começaram a vender mais.

"Eu sentia a imagem do meu pai muito intelectualizada, distante do povo. Comecei a expô-lo como vovô fofinho mesmo, porque realmente é assim", explica. Na vida fora das redes, ele diz que o Milton é noveleiro e tem um senso de humor muito próprio. "Ele não funciona como as outras pessoas, isso é um fato."

Milton Nascimento no show "A Última Sessão de Música" - Anderson Carvalho / Espaço Unimed - Anderson Carvalho / Espaço Unimed
Milton Nascimento no show "A Última Sessão de Música"
Imagem: Anderson Carvalho / Espaço Unimed

Milton Nascimento no show "A Última Sessão de Música? - Anderson Carvalho / Espaço Unimed - Anderson Carvalho / Espaço Unimed
Imagem: Anderson Carvalho / Espaço Unimed

Após a pandemia, conversaram sobre limitações e decidiram traçar o plano de despedida. Um vídeo com Milton repassando feitos e conquistas emocionou os fãs e anunciou a turnê. A ideia veio de Augusto, inspirado no lutador de jiu-jítsu Rafael Mendes, que anunciou a aposentadoria dos ringues com uma retrospectiva.

"Eu nunca fui uma criança criativa, mas trabalhando com meu pai e fazendo essa imersão na carreira dele, quis criar", ele diz. "É legal que ele pare não porque está doente, sem conseguir cantar. Queria que esse show fosse grandioso, porque a carreira foi grandiosa."

Apesar da sensibilidade dos pés, afetada pela neuropatia diabética, e o tremor involuntário — efeito colateral de excesso de medicamento intravenoso, segundo Augusto —, Milton está, de fato, mais animado que em outras turnês. Responde às gracinhas do público, ergue as mãos na hora dos hits e tem soltado a voz de oitenta anos com mais potência.

Nas viagens de carro entre destinos mais próximos, entretanto, o que Milton canta é Beatles, que ele apresentou tão logo Augusto se tornou filho. Na época, o rapaz só ouvia Bob Marley e Oasis. Hoje, dividem a obsessão pela discografia dos ingleses. A célebre imagem do disco "Abbey Road", em que os integrantes atravessam uma rua, está tatuada no antebraço de Augusto com um quinto elemento na travessia: seu pai. "A gente se reencontrou na estrada", ele nota.

Naquela tarde, vindo para São Paulo, para o primeiro dos quatro shows da nova turnê na capital paulista, Milton pediu para tocar "The Long and Winding Road" no último volume e abriu os braços.