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'Rei da Boca do Lixo', MC Nego Bala faz show de calouros na 'cracolândia'

Ao microfone Nego Bala, 24, canta e interage com as pessoas, atraindo o público para a ação - Reinaldo Canato/UOL
Ao microfone Nego Bala, 24, canta e interage com as pessoas, atraindo o público para a ação
Imagem: Reinaldo Canato/UOL

Do TAB, em São Paulo

07/08/2022 04h01

"De que classe você é, fumador de cachimbo?", uma caixa de som acoplada em uma bicicleta vibrava com a voz do homem gritando ao microfone. O zunzunzum da rádio ambulante chamava atenção de comerciantes e pessoas em situação de rua na região da Luz, no centro de São Paulo, ao ver a pequena comitiva com umas seis pessoas cruzar uma das faixas da larga rua Mauá, em frente à Sala São Paulo, e entrar na contramão, pela faixa de pedestre, na avenida Duque de Caxias. "Você é trabalhador!", emendava o locutor.

Quem fala ao microfone é MC Nego Bala, 24, que canta e interage com as pessoas, atraindo o público para o destino final do projeto independente Teto, Trampo e Tratamento, do qual faz parte. O grupo caminha por ali todas as quintas-feiras, à tarde, até um dos fluxos da "cracolândia", na rua Helvétia, onde desde maio usuários de drogas se concentram após repetidas dispersões da Prefeitura de São Paulo e das polícias Civil e Militar.

"Eles precisam de pessoas pretas para tirarem eles do limbo, do buraco. A solução não é se afastar, mas estar perto deles. Como minha mãe usou crack, eu me sinto perto dela de alguma forma", conta o funkeiro ao TAB, referindo-se às pessoas que estão vivendo no fluxo. "Eles sofrem pressão, jogam água e bomba neles tentando oprimir, para que os usuários peçam ajuda. Mas quem quer ajudar não humilha."

A intervenção cultural, diz ele, aplaca o clima hostil no território e os problemas de saúde causados pela dependência. "Essa aqui é minha família, mano. Sempre que nós pode, nós ajuda. Todo mundo tem estigma de que aqui não dá pra viver. Mas nós vivemos em comunhão, trocamos ideia, nos ajudamos."

MC Nego Bala, 24 - Reinaldo Canato / UOL - Reinaldo Canato / UOL
MC Nego Bala, 24
Imagem: Reinaldo Canato / UOL

Rei da Boca do Lixo

Nego Bala cresceu e mora na Boca do Lixo, região da Luz e berço da pornochanchada. Ele foi apreendido pela primeira vez aos 11 anos, enquanto vendia drogas naquele entorno. "Isso aconteceu mais vezes. Ele chegou a ir pra Febem e depois foi preso, aos 18", contava Altair Generoso, 51, pai do MC, que acompanhava o filho pela segunda vez no projeto. "Graças a Deus e à música ele saiu do tráfico."

Altair, que também é artista, passou parte da vida tocando em bandas de duplas sertanejas de São Paulo. "Criei meus filhos assim. E criei eles sozinho, porque a mãe usava crack e morreu. Nego tinha 1 ano, e a irmã dele tinha 4", lembra. Hoje evangélico, ele diz que toca para Jesus.

Na prisão, Nego Bala usou a rima e o funk como válvula de escape. Passou a cantar sua própria história e a realidade da vida dos seus amigos e vizinhos. Aos poucos, fora da cadeia, foi fazendo disso profissão, até investir de fato na carreira.

Há três anos, Nego Bala integra o projeto Papo, Teto e Tratamento, a convite do psiquiatra Flávio Falcone, que o conhece desde adolescente. Através da ação, o médico desenvolve um trabalho de redução de danos entre usuários de drogas. Ele atua na "cracolândia" há 15 anos vestindo-se de palhaço e fazendo intervenções artísticas — uma delas é a rádio ambulante.

Falcone defende que o tratamento para redução de danos necessita da criação de vínculo com os usuários. "Isso é revolucionário dentro da psiquiatria. Porque também une o tratamento à arte, com contestação política", comentava André Binas Kitzinger, 22, estudante de medicina da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), que acompanha a atividade.

O psiquiatra Flávio Falcone - Reinaldo Canato/UOL - Reinaldo Canato/UOL
O psiquiatra Flávio Falcone, que se veste de palhaço durante a ação
Imagem: Reinaldo Canato/UOL
Grupo caminha com rádio itinerante pela região da Luz, no centro de São Paulo - Reinaldo Canato / UOL - Reinaldo Canato / UOL
Grupo caminha com rádio itinerante pela região da Luz, no centro de São Paulo
Imagem: Reinaldo Canato / UOL

'Se essa rua fosse minha'

A rádio do Teto, Trampo e Tratamento funciona como um show de calouros. Quando chega no fluxo, o grupo forra uma pequena lona circular, que vira o palco, e cinco pessoas são escolhidas para serem os jurados.

Quem quer se apresentar precisa colocar o nome numa lista, organizada por uma das assistentes de Falcone. Na quinta-feira (4), foram cerca de oito participantes. Alguns cantaram, outros fizeram rimas, intercalados por MCs que acompanham o grupo — incluindo Nego Bala e seus amigos.

"Vocês são animais selvagens?", ironizava Falcone, o apresentador, brincando com os calouros, logo após um rapaz que dançou uma música de axé. "Vejam só como vocês são perigosos", brincava. "Ou fica louco ou fica doido", respondia uma mulher, aplaudindo. "Essa aqui é nossa família, isso aqui é uma família", comentava ela, poucos minutos antes de ir pedir o microfone e cantar "Se essa rua fosse minha".

"Eles não gostam muito [desse evento], mas a gente gosta", dizia um homem, aparentando 30 anos, sentado na calçada bem próximo a agentes de serviço social da prefeitura (que também assistiam aos números). Bem naquele momento, dois policiais de moto passavam pela rua. Era a eles que o rapaz se referia, fazendo gesto. "Não canto porque tenho vergonha", emendava.

Intervenção cultural inclui apresentação de MCs, entre eles o próprio Nego Bala -  Reinaldo Canato / UOL -  Reinaldo Canato / UOL
Intervenção cultural inclui apresentação de MCs, entre eles o próprio Nego Bala
Imagem: Reinaldo Canato / UOL
Participantes da rádio itinerante na rua Helvétia -  Reinaldo Canato / UOL -  Reinaldo Canato / UOL
Participantes da rádio itinerante na rua Helvétia
Imagem: Reinaldo Canato / UOL
Projeto criar uma espécie de concurso de calouros, no fluxo  - Reinaldo Canato / UOL - Reinaldo Canato / UOL
Projeto cria uma espécie de concurso de calouros, no fluxo
Imagem: Reinaldo Canato / UOL

Por quase duas horas, as pessoas se divertem e sorriem. Dá para ver um pouco de alegria nas ruas tão degradadas do centro, enquanto o fluxo vai rodando bem atrás da rádio itinerante. É como uma pequena festa no caos — mesmo cercado de policiais sérios e a recorrentes passagens de viaturas lotadas de agentes de segurança, espremendo as pessoas que estão na rua.

O MC é frequentemente parado pela polícia, aliás. No fim de junho, dois guardas civis abordaram Nego Bala e um amigo à noite, na avenida São Paulo, pedindo para ver a nota fiscal das bicicletas que eles pedalavam — um dos agentes chegou a dizer que a dupla tinha "cara de bandido". Eles foram levados para a delegacia, contestaram a abordagem, e foram soltos em seguida. A Defensoria Pública de São Paulo chegou a reportar a situação.

"Eles são constantemente abordados pela polícia na região, por serem negros e jovens. Isso também é uma forma indireta de constranger o trabalho deles e desmobilizar a ação", conta Fernanda Balera, coordenadora do núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública, que entrou com um pedido de salvo-conduto para impedir a recorrência dessas abordagens policiais contra os músicos. O pedido foi negado, mas a Defensoria Pública recorreu e espera resposta.

Nem por isso os músicos deixam de ir às ruas. O desfecho da intervenção cultural é a contagem dos pontos de cada calouro. Eles recebem notas de 9 a 10 pelas performances, e os três primeiros colocados ganham prêmios, em valores que vão de R$ 20 a R$ 50.

Às 17h, a trupe encerra a atividade e se despede do fluxo. "Até semana que vem, cracolândia", dizia Falcone, retomando com a bicicleta. O grupo saiu novamente com o som ligado pela rua, com MC Nego Bala cantando. "Ele é o rei da Boca do Lixo", dizia o psiquiatra.

"Deus escreve certo por linhas tortas, né, meu filho?", sussurrava Altair. "Pra você ver: um palhaço e um cantor de funk, que muitas vezes é discriminado, tão aí fazendo o que o governo não faz."

Nego Bala e o pai, Altair - Reinaldo Canato/UOL - Reinaldo Canato/UOL
Nego Bala e o pai, Altair
Imagem: Reinaldo Canato/UOL