'Eles estão aqui': como um condomínio reagiu à dispersão da 'cracolândia'
Houve um tempo em que a preocupação dos moradores de um condomínio de classe média, em pleno centro de São Paulo, era discutir a punição para um casal mais assanhado que não se conteve a estímulos hormonais e resolveu esquentar a relação em uma área comum do edifício. Nunca se soube ao certo qual castigo receberam do síndico, mas o tal flagra jamais morreu por completo no grupo de WhatsApp e ressuscita sempre que possível em alguma crítica ou sarcasmo de alguém — seja lá por qual razão.
Houve outro tempo, esse bem mais recente, em que o problema na comarca virtual dos vizinhos era o barulho do prédio ao lado. Sem conseguir dormir, principalmente aos finais de semana, eles discutiam uma saída judicial para resolver a questão.
Há poucos dias, no entanto, um problema maior se espalhou pelos andares: o fluxo de usuário de drogas na redondeza. Próximo ao largo do Arouche, entre a avenida Duque de Caxias e a rua Dr. Frederico Steidel, o prédio se tornou uma das novas vizinhanças cercadas pelo espalhamento da chamada "cracolândia", dispersada nas últimas semanas pela polícia e descentralizada em várias ruas centrais da cidade. O TAB acompanhou as discussões dos moradores ao longo de dias.
Deslocados
Desde 11 de maio, a vizinhança acompanha apreensiva os desdobramentos de uma ação da Prefeitura e das polícias Civil e Militar na praça Princesa Isabel, a um quilômetro dali, onde há meses se instalou a "cracolândia". Naquela madrugada, 36 pessoas foram presas por tráfico de drogas. Depois da retirada de barracas da região, houve também briga e quebra-quebra entre agentes da GCM (Guarda Civil Metropolitana) e frequentadores do local.
Antes das 8h da manhã, a mensagem do síndico avisava os condôminos da situação. "Pelo que tem sido noticiado na imprensa, esse seria o motivo da maior circulação de viaturas na região e modificação do tráfego de trânsito dos veículos", dizia. "A Av. Duque de Caxias amanheceu interditada em suas pontas. Redobrem os cuidados de atenção pela região."
O alerta não foi o primeiro feito pelo síndico. Recém-eleito para administrar o condomínio, desde o início da sua gestão ele vem avisando aos moradores sobre perigos e o aumento de violência nas redondezas. Por e-mail, frequentes, e em cartazes colados nos corredores, recomenda que as pessoas sigam protocolos de segurança mais rígidos, como aguardar táxi e Uber na portaria (e não na calçada) e se certificar do fechamento das portas na entrada e na saída do prédio.
No quintal
Quase uma semana depois da operação que espalhou a "cracolândia", um morador compartilhou no grupo uma sequência de dois vídeos com a movimentação de pessoas na rua Dr. Frederico Steidel, na esquina com a avenida São João, por trás do edifício. Era início da noite de segunda-feira (16).
"Quem são? Cracolândia?", perguntou uma vizinha. "Sim, um dos núcleos, já que agora se formaram vários", respondeu o rapaz. "Era só o que faltava", emendou um terceiro.
Por causa de um reparo em uma rede subterrânea de fornecimento de energia, na rua Helvétia, onde estavam até então, usuários de drogas foram retirados dali pela polícia e se instalaram justamente numa das esquinas da rua de trás do edifício. Com barracas e carroças, as pessoas deslocadas passaram a ocupar, tumultuosamente, a rua e as calçadas.
Foi o suficiente para começar uma frenética troca de mensagens entre os moradores, com reclamações e especulações. "Eles fecharam a rua. Os carros não estão passando", alarmava um vizinho. "Mas a moça que estava na portaria da Frederico disse que passaram alguns carros de polícia", ponderando, ele mesmo, em seguida.
Quem voltava do trabalho, pelo metrô, tentava atualizar os outros com mais informações. "Descemos agora e não tem mais ninguém na nossa rua, só pessoas caminhando mesmo... Tudo normal", explicava um rapaz. "Está de boa a rua, não vi nenhuma movimentação estranha!", reforçava mais um. "Não está normal! Viaturas, não passa carro e muita gente lá no final", discordava outro, minutos depois.
Por volta das 20h, uma mensagem interrompeu a conversa. Um condômino, aparentemente alheio à situação, queria divulgar uma live nas suas redes sociais. "Haverá uma live com um adestrador top de SP, especialista em pet de condomínio, cachorro com mau comportamento etc. Quem tiver problema que quiser acessar, vai lá no insta, às 21h". Fora sumariamente ignorado.
Noite adentro e manhã seguinte, a preocupação de uma pequena parte dos 130 integrantes do grupo era achar solução para retirar a "cracolândia" dos seus quintais. Cogitou-se a contratação de seguranças privados. Mas a obrigação de policiamento não seria do Estado, retrucou alguém. "A questão da cracolândia não é um problema que vai ser resolvido com operação policial", ponderava uma moça, que colocou três aspas de cada lado da palavra "resolvido".
Alguém até chegou a questionar, com mais parcimônia, "como vocês veem a questão da dispersão do ponto de vista da segurança do nosso prédio?". "Não sou de SP e gostaria da opinião de alguém que entenda melhor a dinâmica da cidade", explicava ela, que queria saber se havia "mudanças substanciais nos entornos, ou 'apenas' uma intensificação do clima geral de insegurança que nós já conhecemos". Ninguém respondeu.
'Perto de nós'
À meia-noite da terça-feira (17), um morador mandou uma mensagem comentando a situação da rua: "Acabei de voltar pelo metrô, [a entrada de] fundo da Frederico Steidel [está] fechada e uns 4 a 6 perdidos perto do portão".
Às 12h44, outra pessoa reforçou, compartilhando um novo vídeo com imagens da aglomeração de pessoas. "Eu moro no prédio e imagino que todos estejam preocupados, tanto como eu, com a ocupação da Frederico Steidel pelo fluxo. Não sabemos quando vão sair, ou se vão voltar para a [rua] Helvétia, conforme previsto. De qualquer forma, estarão perto de nós. Mas quero dar uma palavra de esperança, informando a todos que tem muita gente unida, em Santa Cecilia, trabalhando pela região."
Sem resposta para as ligações que fizera ao longo da semana para a polícia pedindo a retirada da "cracolândia" daquela esquina, uma moradora mais efusiva retrucava: "Eu vou até o inferno para tirar esse povo daí! Não vamos deixar isso quieto não."
O clima de pânico voltava a crescer entre os moradores. Alguém divulgou um vídeo de um delegado discursando em apoio a moradores do centro. Uma vizinha insistia para que os outros enviassem mensagem diretamente nas redes sociais do policial. "O síndico poderia agilizar esse processo junto com os outros prédios da rua."
O que ela não sabia, na verdade, é que um grupo de cinco síndicos da região já estava se reunindo para, formalmente, pedir ajuda às autoridades policiais. Às 16h38, o administrador do prédio escreveu, calmamente: "Para tranquilizar a todos, o zelador acabou de informar que o final da rua está sendo liberada, pessoal sendo reconduzido para outro local." A aglomeração foi desfeita, e o grupo voltou para rua Helvétia, deixando para trás um amontoado de lixo na esquina da Dr. Frederico Steidel.
Na manhã da quarta-feira, (18), um novo post o síndico informou que a polícia voltou à rua deles para evitar outra aglomeração. "Se ele não está conseguindo, manda o exército!", respondeu uma moradora, começando um longa discussão entre os vizinhos — uma que deve perdurar por bastante tempo.
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