Câmara gasta R$ 2,9 mi em combustível, que abastece até avião de empresário

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Nos últimos cinco anos, a Câmara dos Deputados custeou R$ 2,9 milhões em combustível para aviação e encheu até tanques de aviões de empresários.
O UOL identificou em notas fiscais que deputados usaram recursos da cota parlamentar para abastecer helicópteros e aeronaves próprias e também de terceiros —inclusive durante períodos de recesso em Brasília.
Em 2023, a Câmara recebeu 265 pedidos de reembolso. No ano passado, 340. Até maio de 2025, 82.
Até 2023, a Câmara permitia a deputados um gasto de até R$ 4.500 por mês com combustíveis e lubrificantes, tanto para carros quanto para aviões e embarcações.
Naquele ano, o então presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), reajustou esse valor em 108%, elevando o limite para R$ 9.392.
Não há regra que proíba abastecer veículos de terceiros.
Procurados pela reportagem, os parlamentares defenderam a regularidade das despesas.

Como funciona o uso de combustíveis
Os parlamentares têm direito a uma verba mensal para custear despesas do mandato: a cota parlamentar.
Ela paga passagens, alimentação, hospedagem, aluguel de escritório de apoio no estado de origem, aluguel de carro e combustível, por exemplo.
O valor da cota é diferente para cada estado, pois considera o custo de bilhetes aéreos, e também varia entre Câmara e Senado —onde os valores são ligeiramente menores.
O Senado não especifica os gastos dos parlamentares minuciosamente como a Câmara. É preciso levantar os valores em cada nota fiscal.
De janeiro a maio de 2025, o senador Ciro Nogueira (PP-PI) gastou R$ 84 mil em combustível para aviões —ele é dono de duas aeronaves, uma delas por meio de uma empresa da qual é sócio.
O valor equivale a 36% da cota parlamentar a que teve direito no período (R$ 234 mil).
O senador não respondeu aos contatos do UOL.
Motta também usou cota
Na Câmara, os parlamentares gastaram, em média, cerca de R$ 2.300 a cada abastecimento. Os valores podem variar, conforme o modelo do avião e a distância da viagem, por exemplo.
O deputado Paulo Magalhães (PSD-BA), que é dono de um avião, segundo informou o TSE (Tribunal Superior Eleitoral), usou R$ 308 mil entre 2020 e 2025 em combustível para a aeronave —o maior valor para o período.
O deputado respondeu por meio de sua assessoria que "o avião é dele" e justificou os gastos com a distância entre as cidades na Bahia que ele precisa visitar. "Para dar toda a atenção aos municípios, não teria como fazer as viagens de carro."
Já o atual presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), gastou R$ 151 mil em combustível para aviões. As notas fiscais apresentadas não indicam o prefixo do avião que ele abasteceu.
Motta detém 50% de um avião pequeno. A outra metade pertence a uma empresa que tem o deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB) como um dos sócios.
Procurado, Hugo Motta não quis comentar.
O deputado Nelsi Coguetto Maria, o Vermelho (PP-PR), apresentou, em 2024, 18 notas fiscais de abastecimento de uma aeronave da
FeG Engenharia de Obras. A empresa tem contratos com prefeituras do interior do Paraná.
Em 2023, a Comissão de Desenvolvimento Regional e Turismo do Senado encaminhou R$ 5,1 milhões em emendas para pavimentar estradas rurais nos municípios de Dois Vizinhos e Marmeleiro. A FeG venceu as licitações para tocar as obras.
Após o STF determinar maior transparência e rastreabilidade nas emendas parlamentares, o Congresso tornou públicas as planilhas com indicações de verba de deputados e senadores.
Vermelho direcionou R$ 4,7 milhões em emenda para a obra de Marmeleiro, vencida pela FeG. A informação foi publicada pelo jornal O Globo e confirmada pela reportagem.
O deputado Vermelho disse ao UOL que usa "esporadicamente a aeronave da FeG (...) durante visitas à sua base eleitoral", que os gastos estão disponíveis para consulta pública no Portal da Transparência e que "a utilização esporádica da aeronave da empresa e a execução de obras em municípios atendidos pelo deputado são meras coincidências, sem qualquer relação que comprometa a lisura dos processos ou a transparência do mandato".
Afirmou ainda que destina emendas "conforme as demandas apresentadas pelas prefeituras", mas que o processo de licitação e contratação "é de total responsabilidade do poder público municipal, seguindo os trâmites legais".
Segundo o deputado, a FeG Engenharia é uma empresa da mesma região, "o que naturalmente aumenta a probabilidade de sua participação e contratação em obras".
Tanque cheio em avião dos outros
O deputado João Carlos Bacelar (PL-BA) é dono de um avião com seis assentos. Ele gastou R$ 88.715 em combustível no ano passado —segundo maior valor entre os parlamentares da Câmara.
Ele também encheu o tanque do avião da Agropecuária Hermes em janeiro e fevereiro de 2024. O custo ficou em R$ 6.200.
A agropecuária está em nome dos filhos do empresário Nelson Hermes.
Reportagem da Folha de S.Paulo de 2023 mostrou que Hermes foi alvo de processos por mais de duas décadas, sob acusação de atuar com funcionários armados para grilar terras na fronteira da Bahia com Goiás.
A defesa de Hermes disse ao jornal que o empresário não havia sido condenado em processos criminais e não usava violência.
Bacelar declarou ao UOL que seu avião "estava em manutenção e foi feita uma permuta" para que ele pudesse usar outra aeronave, "o que é muito comum na aviação".
A "negociação", segundo ele, teria sido feita entre os próprios pilotos. Também informou "que não tem qualquer relação pessoal com o senhor Nelson Hermes", que apenas tem "amigos em comum" com ele.
Há casos também em que os parlamentares recorrem aos recursos das lideranças partidárias, além das próprias cotas.
O deputado Elmar Nascimento (União-BA) consumiu R$ 40,8 mil, em 2024, dessa forma, para abastecer um helicóptero que está em nome de uma empresa da qual ele é sócio. O parlamentar não quis comentar.
Suplente gasta R$ 23 mil em quatro meses
A deputada suplente Lucyana Genésio (PDT-MA) exerceu mandato por quatro meses entre junho e outubro de 2024. Gastou R$ 23.453 em combustível.
Notas fiscais apresentadas à Câmara indicam que ela viajou em um avião em nome da secretária de Assistência Social da Prefeitura de Alto Alegre do Pindaré (MA), Jamária Morais —mulher do prefeito Didi do PP.
Lucyana disse ao UOL que "alugou [com recursos próprios] o avião da senhora Jamária para o deslocamento de São Luís [onde a parlamentar reside] para cumprir agenda política em Pinheiro [sua base eleitoral] e outros municípios do interior, durante o período das eleições municipais de 2024".
Declarou não ter "vínculo de amizade [afetiva]" com Jamária Morais e que se trata "apenas de contato profissional relacionado à política".
A assessoria de imprensa de Lucyana também disse que a razão da viagem foi "deslocamento de trabalho", e que "os documentos apresentados estão em consonância com as exigências do ato da mesa número 43/2009, que regula a concessão da cota, no tocante aos aspectos fiscais e contábeis".
"No período de junho a outubro de 2024, a parlamentar manteve a produtividade de trabalho em Brasília e no Maranhão, de forma transparente e com zelo."
Viagem com avião de cantor
O deputado Yury do Paredão (MDB-CE) consumiu R$ 12.369 em combustível em 2024, com trajetos saindo de Fortaleza e Juazeiro do Norte.
A aeronave usada por ele está em nome da produtora do cantor Jonas Esticado, da qual o parlamentar é sócio.
O deputado afirmou à reportagem que é sócio de Jonas Esticado há dez anos. A distância entre as cidades é de 492 km, mas não existe voo direto.
"Somado a isso, o deputado utiliza a aeronave para também visitar outras cidades do Ceará", afirmou.
Ao abastecer o tanque de aviões de terceiros, os parlamentares podem deixar combustível para outras pessoas. Isso porque uma aeronave precisa voar com abastecimento "de sobra".
O físico e especialista em segurança aérea Kerley Oliveira explicou ao UOL que cada avião demanda uma quantidade específica de combustível.
O consumo está ligado ao tipo de motor e de voo e às condições meteorológicas. "Não pode ir com a quantidade contada; tem que ter uma quantidade, por exemplo, que dê para ter uma alternativa de pouso", afirma.
O que dizem Câmara e Senado
A Câmara afirmou ao UOL que a Cota para o Exercício da Atividade Parlamentar "não especifica o veículo a ser utilizado, uma vez que a rubrica de combustíveis é única".
Segundo a Casa Legislativa, "a norma não impõe que os veículos usados sejam de propriedade dos parlamentares, mas sim que a atividade para a qual o veículo foi usado esteja relacionada à atuação parlamentar".
"O limite mensal para combustíveis e lubrificantes é de R$ 9.392 e inacumulável de um mês para o outro", afirmou.
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