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A infância na 'cracolândia': 'Todo mundo usava ou vendia. Ninguém escondia'

Paula* morou por 10 anos, entre a infância e a adolescência, em um hotel na "cracolândia", no centro de São Paulo - Rogerio Fernandes/UOL
Paula* morou por 10 anos, entre a infância e a adolescência, em um hotel na 'cracolândia', no centro de São Paulo
Imagem: Rogerio Fernandes/UOL

Felipe Pereira

Do TAB, em São Paulo

23/06/2022 04h01

Paula* tinha 10 para 11 anos quando a vida da mãe começou a girar em torno de uma meia. Atitude suspeita num lugar condenado. A família morava num hotel na "cracolândia" de São Paulo. Olhando de frente, era a terceira construção à esquerda do fluxo, lugar onde tijolos de crack ficavam sobre mesas de plástico colocadas na calçada. Esse altar à miséria era rodeado de pessoas agachadas que fumavam até o limite do dinheiro ou do organismo — que sucumbia em desmaio ou convulsão.

De repente, essas pessoas esquálidas que medem o tamanho da felicidade pelo tamanho da pedra começaram a bater na porta da casa de Paula. A mãe era rápida para atender e mais rápida ainda na conversa. O conteúdo da meia era trocado por dinheiro e adeus. O aluguel de R$ 700 estava muito acima das possibilidades da família e Paula compreendeu como as contas estavam sendo pagas. "Eu já estava maior, mais esperta e entendi tudo."

A "cracolândia" tem habitantes que vivem da pedra, caso da mãe de Paula. Também há pessoas que vivem para a pedra, como a mãe de Silvia*. Estar grávida nunca foi impeditivo para ela frequentar o fluxo e a garota ia de carona na placenta. Nasceu com problemas de saúde e ficou três meses internada. Não recebeu uma visita sequer da mãe.

A família arranjou meios para contrabandear até o fluxo a informação sobre a alta da filha, mas a mãe não apareceu. A bebê saiu da maternidade nos braços da tia, que se dividiu com a avó nos cuidados. A paz era ilusão de curto prazo. Ela se desfez no dia em que a mãe armou um escândalo, exigindo que lhe entregassem Silvia. Mesmo com o crack na equação, a avó e a tia entenderam que a maternidade é um direito inalienável. A menina foi entregue.

Logo, os temores se justificaram. A bebê perambulou por braços alheios até os cinco anos. "Minha mãe me deixava na mão de um conhecido, na mão de outro. Pagava os outros para cuidar de mim e sumia um mês, dois meses."

Silvia explica que as pessoas cuidavam dela por pena, porque a quantia recebida era insuficiente. Quando não houve mais quem aceitasse ficar com a criança, a mãe tomou uma solução extrema — abandono. "Ela me deixou na ponte da [avenida] 23 [de Maio]. Uma mulher que me conhecia ligou para meu padrinho e ele foi me buscar."

Paula* morou por 10 anos (infância e adolescência) em hotel na 'cracolândia' - Rogerio Fernandes/UOL - Rogerio Fernandes/UOL
'As amigas da minha mãe chegavam de olho roxo e cara inchada de tanto soco', diz Paula
Imagem: Rogerio Fernandes/UOL

Viciada e violada

A "cracolândia" é associada a adultos agachados nas calçadas chupando cachimbos. Mas, durante as últimas duas semanas, o TAB ouviu histórias de pessoas que passaram a infância no perímetro do crack. Até hoje há um número considerável de crianças dentro da área de atuação dos traficantes e muitas moram em ocupações. Gente muito jovem no fluxo é algo raro, mas acontece.

Joana Machado soube disto enquanto era voluntária numa missão religiosa na "cracolândia" em 2009 e foi chamada por traficantes. Eles contaram a história chocante de uma pré-adolescente de 12 anos que fumou até desmaiar. Encontrada por quatro usuários, foi arrastada para um imóvel abandonado e sofreu estupro coletivo.

Na "cracolândia", o crime é a autoridade. Traficantes souberam da situação e interromperam o estupro coletivo. A pré-adolescente foi entregue a Joana para ser encaminhada ao médico. Quando a menina recuperou os sentidos, perguntou à voluntária onde estava o Jesus de quem Joana tanto falava enquanto faziam aquilo com ela.

A falta de uma resposta deixou a voluntária desnorteada e a levou a criar o Instituto Sonhe!, em 2009, projeto que trabalha com crianças e adolescentes. A fundadora e presidente conta que houve considerável redução de crianças na área desde então.

Joana ressalta que não significa solução. A queda é consequência da demolição das ocupações, mas essas crianças e adolescentes foram morar em favelas próximas ao centro, principalmente a do Moinho.

Paula* morou por 10 anos (infância e adolescência) em hotel na 'cracolândia' - Rogerio Fernandes/UOL - Rogerio Fernandes/UOL
Paula* viveu num hotel e em ocupações da 'cracolândia'; desde os 16 está longe desse meio
Imagem: Rogerio Fernandes/UOL

A história de Paula

A reação dos traficantes ao estupro coletivo demonstra que até o mundo cão tem limites. As regras incluem não oferecer crack às crianças e seguir um código de ética. "Quando a gente passava, eles gritavam: 'Olha o anjo'. Quem tava fumando crack, ou fazendo alguma coisa parava."

Na época, em 2014, Paula morava no hotel na alameda Dino Bueno e entendia que essa norma era cortina de fumaça para mascarar a proximidade da droga. Ela lembra o dia em que a irmã de 2 anos chegou toda serelepe porque encontrou uma bala quebra-queixo. A mãe olhou, cheirou e confirmou a suspeita: era maconha. "Não sei se ela colocou na boca, mas, pelo desespero da minha mãe, acho que colocou."

Paula e Silvia têm 19 anos hoje. Elas dividem a idade, a infância atrelada à "cracolândia" e uma série de medos provocados pelo passado. Quando era bebê de colo, Paula era emprestada ao tio para amolecer corações enquanto pedia esmola.

Ela não classifica o episódio como traumático, talvez por ser pequena demais na época. A garota viveu no hotel do crack e em ocupações da "cracolândia" e o primeiro trauma desenvolvido foi com ratos. Entre as memórias mais antigas está o barulho dos animais correndo pelo barraco quando desligavam a luz.

A partir dos oito anos, Paula não dormia por medo de a mãe se envolver em confusão. Ela tinha personalidade explosiva e brigas aconteciam aos montes nas ocupações. Quase sempre, cercadas de covardias. Paula já viu quatro rivais se juntarem para bater na mãe. "Ela caiu no chão e continuaram a chutar. Foram uns cinco minutos de espancamento."

A mãe ser solteira era um alívio porque a violência doméstica era uma constante na vizinhança. "As amigas da minha mãe chegavam de olho roxo e cara inchada de tanto soco."

A história de Paula mostra que pode não haver a oferta de crack às crianças, mas o ambiente hostil e carregado de violência deixa marcas emocionais. A lista de cicatrizes inclui não confiar em ninguém. A lição, ensinada desde cedo, foi reforçada nos tempos em que a mãe era traficante. Um concorrente "caguetou" e só não deu cadeia porque o estoque havia acabado quando os policiais militares fizeram a batida.

Parede com marcas de fogo deixadas por usuários é coberta por mãos de crianças na última ocupação da cracolândia - Felipe Pereira/UOL - Felipe Pereira/UOL
Parede com marcas de fogo deixadas por usuários é coberta por mãos de crianças em ocupação da 'cracolândia'
Imagem: Felipe Pereira/UOL

'Uma cama só minha'

A possibilidade de prisão encorajou Paula a questionar a mãe sobre o tráfico. A resposta foi um olhar gelado indicando "não se mete, sua pirralha". O assunto nunca mais surgiu. Mas o susto foi suficiente para os dias de tráfico terminarem. Aos 11 anos, a garota deixou o hotel vizinho ao fluxo.

Ela diz que era um prédio com balcão na recepção — na frente havia uma escada longa que levava aos dois andares superiores. Havia 20 quartos, cada um com uma área que as imobiliárias de hoje chamariam de estúdio. Paula relata que, depois da denúncia de tráfico, as batidas policiais se tornaram semanais. Uma dupla com fuzil atravessado no peito revirava o quarto, chamava a mãe dela de relaxada e escória e ia embora.

Os vizinhos de hotel transformavam o local em que Paula vivia num manifesto ao crack. Ela diz que, dos 20 quartos, somente dois não tinham moradores envolvidos com a droga. "A gente vivia num meio que todo mundo ou usava ou vendia. Ninguém escondia da criança. Os papos eram: 'Você já vendeu tanto? Já usou quanto?'"

Nos corredores do hotel havia lixo e gente maltrapilha. Os quartos de usuários tinham restos de comida, capas de celulares furtados, fezes e urina. Do lado de fora do prédio, os moradores do fluxo desafiavam a fronteira da degradação. Um homem conta que viu um dependente ter convulsão e vomitar. No meio da gosma expulsa do estômago havia um comprimido azul. Outro usuário pinçou a pílula com indicador e polegar e engoliu na esperança de ser ecstasy ou similar que desse barato.

Desde os 16 anos, Paula está longe desse meio. Ela conseguiu trabalho e, com esse reforço no orçamento, a família alugou um apartamento. "Nunca tinha tido um armário de cozinha, nunca tive uma cama só minha, uma mesa. Esse dia foi maravilhoso."

Hotel como o que Paula morou tinha como clientes usuários e traficantes de crack e foi interditado - Felipe Pereira/UOL - Felipe Pereira/UOL
Hotel como o que Paula morou tinha como clientes usuários e traficantes de crack e foi interditado
Imagem: Felipe Pereira/UOL

A história de Silvia

Quando a mãe abandonou Silvia no viaduto da avenida 23 de Maio, as autoridades agiram. Ela foi colocada em um abrigo e frequentou a escola de forma assídua pela primeira vez na vida. A psicóloga começou um trabalho para saber o tamanho do estrago causado pelas andanças com a mãe no fluxo.

A menina se recusou a abordar o assunto. Silvia sabe que não conseguir falar do problema é prova de que o trauma existe. Ela justifica não que tem estrutura psicológica para lidar com a questão. Se não houve avanço na frente emocional, ao menos a vida escolar evoluiu. Foi assim até os 13 anos, quando foi enviada a outro abrigo. Descontente, fugiu.

Começava o calvário da repetição da história da mãe. Ela se fixou na praça da Sé e demorou menos de um ano para a rotina incluir lança-perfume, maconha e cocaína. Havia dois caminhos para bancar o consumo. Pouco afeita a roubar, preferiu o tráfico.

A vida "loka" durou um ano e acabou em overdose de lança. "Foi horrível! Parecia que eu estava dormindo, mas formigas caminhavam nas minhas veias. Eu achei que ia morrer e só não morri porque dois meninos me arrastaram para a frente de um posto dos bombeiros."

Silvia ficou apavorada com a proximidade da morte e largou as drogas. Quanto a parar de viver do tráfico, o processo foi mais lento. Integrantes de grupos religiosos e assistentes sociais deram muito conselho até a garota se convencer a buscar outra vida.

Enquanto essa mudança ocorria, Silvia resolveu procurar a mãe. O lugar onde deveria ir era o fluxo. "Uma vez tava tendo saidinha [a mãe dela cumpria pena] e eu falei para Mel*: 'Vamos ver se a gente encontra a minha mãe.' Cheguei na porta da 'cracolândia', bem na entradinha do fluxo, e não consegui entrar. Voltei para trás."

Por sorte, a mãe foi até ela. "Eu acho que tava usando porque não tava bem da cabeça. Ela pediu desculpa por ter usado muito essa droga e ter abandonado a filha dela."

Recomeço

A mãe de Silvia está livre de drogas desde 2021. Parou de usar na cadeia e não voltou para o crack desde que foi solta. Silvia tem uma foto dela no celular, usa cabelo vermelho como ela usava quando tinha sua idade, mas a relação não foi retomada.

O laço afetivo é mais forte com o pai. Mas, como ele está detido por violência doméstica — antes foi preso por roubo e tráfico —, Silvia está sozinha. Mesmo tendo conseguido um teto, ela volta à praça da Sé com certa frequência.

Na semana passada, viu uma menina de 14 anos se debatendo com overdose de lança-perfume. Saiu correndo às lágrimas e não viu quando o corpo foi coberto por um pano até a chegada do serviço funerário.

Por situações dessa natureza é que ela promete a si mesma não sofrer recaídas. Sobre as visitas à Sé, explica que é o único lugar onde tem vínculos. Silvia não se considera merecedora de morar num bairro e ter uma casa.

Mesmo se sentindo sem encaixe na sociedade, ela afirma que vai se manter livre de drogas e do tráfico. O principal incentivo está dentro dela. Silvia está grávida de seis meses.

* Nomes trocados para preservar a identidade das entrevistadas

Paula* nas imediações da "cracolândia", onde viveu até os 16 anos. - Rogério Fernandes/UOL - Rogério Fernandes/UOL
Paula* nas imediações da "cracolândia", onde viveu até os 16 anos.
Imagem: Rogério Fernandes/UOL