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'R$ 500 a mais': garotos de programa se drogam para agradar clientes ricos

Como os garotos de programa estão lidando com a "epidemia" de chemsex em São Paulo - Carine Wallauer/UOL
Como os garotos de programa estão lidando com a 'epidemia' de chemsex em São Paulo Imagem: Carine Wallauer/UOL

Daniel Lisboa

Colaboração para o TAB, de São Paulo

15/06/2022 04h01

Ricardo* já está em 2030 e traz más notícias. A chegada de novas drogas ao Brasil causará uma emergência sanitária de grandes proporções. Autoridades correrão para tomar providências equivocadas, usuários terão suas vidas destruídas e muitos se perguntarão por que algo não foi feito enquanto havia tempo.

As culpadas serão drogas já bem conhecidas nos Estados Unidos e na Europa, que se espalharão por aqui silenciosamente, em especial devido ao "chemsex": o sexo "turbinado" por substâncias químicas.

Ricardo teve experiências pontuais como acompanhante e conhece muitos profissionais do sexo. Quando afirma que vive no futuro é porque sabe que o estrago causado hoje pelo "chemsex" entre homens gays de São Paulo só receberá a devida atenção quando romper a bolha e ganhar força fora da comunidade LGBTQIA+. "Arrisco dizer que, de cada 100 profissionais do sexo, 80 ou 90 fazem uso de drogas durante o trabalho", diz. "O sistema não se atenta a isso porque envolve gays."

Ricardo não é um observador distante, tampouco moralista, da situação. Já usou metanfetamina e GHB (ácido gama-hidroxibutírico, um dos componentes usados no "Boa noite, Cinderela"), drogas comuns no "chemsex", e tem uma coleção de relatos para compartilhar.

"Muitos [garotos de programa] me conhecem pelo meu trabalho na internet, onde falo bastante sobre HIV. Me procuram para saber onde acham PrEP (profilaxia pré-exposição) e contar suas histórias", explica. "Eles fazem coisas que não gostariam por causa da droga. O cliente oferece R$ 500 a mais para o garoto usar metanfetamina e ele acaba aceitando por causa de sua vulnerabilidade, de precisar do dinheiro."

A metanfetamina pode ser fumada ou injetada, é altamente viciante e aumenta muito a libido e o prazer durante o sexo. De acordo com o IDPC (Consórcio Internacional de Políticas de Drogas, na sigla em inglês), a quantidade de dopamina (neurotransmissor responsável pela sensação de prazer) liberada pelo uso da droga é quase quatro vezes maior que a da cocaína.

Como os garotos de programa estão lidando com a epidemia de chemsex - Carine Wallauer/UOL - Carine Wallauer/UOL
Muitos garotos se drogam para ganhar mais, mas se viciam e passam a trabalhar para pagar por mais droga
Imagem: Carine Wallauer/UOL

O looping da droga

"Conheço acompanhantes que não aguentavam mais usar a droga. O garoto passou a madrugada toda trabalhando e pintou um cliente às 6h da manhã que queria de todo jeito que ele usasse, mas o corpo não aguentava mais", conta Ricardo.

Muitos desses garotos entram no looping clássico das drogas pesadas: viciam-se e passam a trabalhar para pagar a droga, que não é barata, custa em torno de R$ 400 a R$ 500 o grama.

"Quase fui agredido por um cliente que queria muito sair comigo. Ele veio em casa e começamos a nos pegar, mas ele estava tão louco que a coisa não rolou. Eu disse pra gente parar, que nem precisava me pagar e ele quis me bater com um skate", lembra.

Ricardo também já esteve do outro lado, o do cliente, e tem histórias igualmente tristes.

"Ele atendia na rua Augusta, nos encontramos algumas vezes e cheguei a passar três dias na casa dele", conta. "Ele saía para atender clientes e usava metanfetamina. Fumava muito. Acabei indo embora e ele ficava me mandando mensagem pedindo dinheiro. Uma semana depois, estava dormindo na rua e carregando o celular no shopping Frei Caneca porque não tinha mais dinheiro para pagar o Airbnb."

Festinha da metanfetamina

Outro efeito da metanfetamina que a torna "perfeita" para um profissional do sexo é sua capacidade de deixar o usuário pronto para "maratonar".

"Particularmente, não gosto de metanfetamina", diz João*, garoto de programa em SP há pouco mais de um ano. "É uma droga que te deixa atento, metódico e acordado por dias. É normal que a pessoa passe dois, três, quatro dias sem dormir."

João calcula que, hoje, de cada dez clientes, três só transam com pessoas que também estão se drogando e pelo menos cinco usam alguma substância na hora do sexo. "Muitas histórias me assustaram. Tenho um amigo que trabalhou como acompanhante durante anos e precisou ir embora de São Paulo para passar por reabilitação", acrescenta João. "A metanfetamina acaba com a sua vitalidade. Te deixa exausto, mal alimentado e com a imunidade baixa."

Tanto Ricardo quanto João relatam que são comuns festas regadas a metanfetamina e outras drogas promovidas por clientes endinheirados. Um deles, em especial, seria um endinheirado que mora nos Jardins, bairro nobre da capital paulista. "Fui a várias dessas festas, especialmente quando cheguei a São Paulo", diz João. "Muitos clientes já insistiram para eu tomar droga e não fui chamado novamente porque não quis usar."

João conta que chegou a passar 30 horas acordado depois de usar metanfetamina. "A pessoa que tem menos grana se f? Vai ter que ir atrás de comida, não está com o psicológico em dia e não tem acesso a remédios psiquiátricos", diz. "Um milionário que usa no final de semana e na segunda-feira tem tudo à disposição é um caso muito diferente do garoto de programa que vai gastar todo o cachê dele para voltar a usar a droga."

Como os garotos de programa estão lidando com a epidemia de chemsex - Carine Wallauer/UOL - Carine Wallauer/UOL
'A pessoa oferecia e eu aceitava por medo de o cliente não me pagar ou não me chamar de novo', diz Fábio*
Imagem: Carine Wallauer/UOL

Um planeta com lindos jardins

O "chemsex" é considerado um problema de saúde pública em muitos países. A HIV Ireland, por exemplo, lançou um detalhado guia de cuidados e precauções. "Como decidir se alguém precisa de ajuda", "como ajudar alguém em uma emergência relacionada ao uso do GHB", "como lidar com alguém que está 'chapado', mas responsivo e consciente" e "como lidar com alguém que está semiconsciente" são tópicos do material da organização irlandesa.

Embora a metanfetamina seja a mais preocupante das drogas usadas no "chemsex", há outras de alto risco para o usuário, como o GHB.

"É uma droga muito f... Se você tomar um copinho dela misturado com refrigerante, e depois de uma hora tomar outro, você vai ficar loucão, mas de boa", explica João. "Se tomar dois copinhos de uma vez, porém, pode ter uma overdose e morrer. Existe um submundo em São Paulo onde muita gente sai de festas em coma. Aconteceu com amigos muito próximos."

Atualmente morando na Europa, Fábio* trabalhou como acompanhante em São Paulo e também conhece o "chemsex" de perto. "Eu usava drogas com os clientes, e inclusive conheci algumas substâncias por meio deles", relata. "Era bem bobinho. A pessoa oferecia e eu aceitava por medo de o cliente não me pagar ou não me chamar de novo."

Fábio define a metanfetamina como "aquela coisa insaciável, nunca está bom, a pessoa transa com um, e mais um e mais um e aí se passaram dois, três dias". Ele diz que os perigos relacionados à droga e seu alto custo são um incentivo para não comprá-la. "Às vezes, acontece de você avisar previamente o cliente que não está a fim de usar naquele dia e ele acabar desmarcando."

O documentário britânico "Chemsex", lançado em 2015, é bem explícito ao mostrar como é uma orgia regada a drogas injetáveis na Inglaterra. Em certo trecho, um dos entrevistados tenta explicar o prazer que o "chemsex" proporciona. "Em dois segundos, você está em um planeta que ainda não foi descoberto pela humanidade. Você chega lá e não está sozinho. Se tiver a sorte de encontrar alguém que está com tanto tesão quanto você, esse planeta terá lindos jardins."

* Nomes trocados a pedido dos entrevistados