Mulheres que perderam emprego na pandemia recorrem à prostituição em SP
Quando a miséria prevalece e o filho chora de fome, certos constrangimentos se dissolvem. Em São Paulo, tem mulher se deitando com desconhecido por R$ 50.
A engrenagem da desgraça começa com comércio fechado pela pandemia, perda do emprego, dívidas e geladeira vazia. Aconteceu com uma vendedora de 21 anos que trabalhava numa loja do Brás, em que não vigorava a CLT. A moça sem direitos trabalhistas tinha um bebê com bronquite. O que ela não tinha era fralda e leite.
A vendedora resistiu o quanto pôde, mas choro de filho dispara um alarme. Fazer programa não era indigno. Errado seria deixar o menino de seis meses passar necessidade. Foi com esse raciocínio que, em abril de 2020, "nasceu" Pâmela Cristina, nome de guerra escolhido pela prostituta de shorts jeans e camiseta branca que bate ponto na esquina da estação da Luz a partir das 10 horas da manhã.
Pâmela entrou no submundo por meio de uma amiga de infância que cresceu com ela num bairro da zona leste de São Paulo. Com o apadrinhamento, garantiu um lugar na calçada sem hostilidades das demais garotas que trabalham na região.
Na data combinada, Pâmela se apresentou maquiada, vestindo calça jeans e a blusa cropped mais curta que tinha no guarda-roupa. Ainda no caminho para a esquina, aconteceu o que ela temia — um homem perguntou se fazia programa. Respondeu que não, mas a amiga entrou na conversa. "Faz, sim."Pâmela pediu R$ 70, valor acima do preço tabelado de R$ 50. O cliente pagou.
"Fomos para um desses hoteizinhos que tem na Luz. No caminho, eu pensava em desistir e que precisava da grana. Ele entrou no quarto e tirou a roupa. Fiquei chocada. Meio que tirei parte da roupa e falei: 'Só chupo de camisinha'. Transamos, tomei banho e fui embora me sentindo suja, mas feliz com o dinheiro."
As imediações da estação da Luz estão dentro da área da cracolândia. Nas suas calçadas dá para conseguir drogas e prostitutas, mas a maioria das mulheres tem idade avançada. Pâmela era novidade e muito mais jovem. Bastante requisitada, logo estava fazendo R$ 500 por dia. O valor endireitou as contas domésticas.
Ainda na gravidez, a garota se separou de um ajudante de pedreiro. Sem serviço no começo da pandemia, ele conseguia enviar coisa como R$ 50 para o bebê por semana. Depois que Pâmela decidiu se prostituir, o combinado foi a mãe sustentar a criança e o pai cuidar do filho.
Hoje, os rendimentos não repetem o sucesso das primeiras semanas, mas são suficientes para bancar o filho. A garota não entrega dinheiro ao ex. Leva compras, roupas, calçados e brinquedos.
Escândalo na família
Assim que perdeu o emprego no Brás, Pâmela tentou vaga nas lojas do centro de São Paulo. Quando começou a se prostituir, combinou as duas atividades. Pela manhã, entregava currículos; à tarde, fazia programas. Ela também foi levada a boates, mas não gostou da experiência.
"Lá, você trabalha cafetinada e fica só com parte do dinheiro. Na rua, tudo que eu ganho é meu."
Pâmela se fixou na Luz e a decisão causou sequelas familiares. A mãe não falou nada, mas usou o WhatsApp para agir, causando um barraco digno de programa de fofoca vespertino.
"Ela veio até aqui [Luz], tirou fotos de mim fazendo ponto e mandou para o meu pai. Ele me mandou uma mensagem dizendo: 'Você tá se prostituindo? Me conta isso direito para eu não te matar'. A gente ficou dois meses sem se falar."
Quando o pai aceitou conversar, ouviu o relato da penúria que a filha e o neto estavam vivendo. O assunto foi colocado embaixo do tapete. Pâmela tem uma família que prefere se enganar e não toca no assunto.
A garota também tem seus dramas com que lidar. Criada na Congregação Cristã no Brasil até os 12 anos, ela tocava órgão nos cultos e ajudava na limpeza da igreja. O passado religioso gerou um choque de valores. Mas a repetição das idas aos quartos dos hotéis amenizou a crise moral.
Hoje, Pâmela conta que não sente vergonha. Mas admite que recorre a válvulas de escape. Junto com a amiga de infância, queima até 20 gramas de maconha por dia.
A realidade é dura, mas poderia ser pior. Quando estava sem leite e fralda para o filho, ela avaliou as possibilidades que estavam à disposição: prostituição, roubar ou traficar. A garota explica que, na quebrada onde nasceu, sabe de pessoas que poderiam providenciar meios para as duas atividades criminosas.
"Eu pensei que dava dinheiro, mas não dava futuro. Eu ia ser presa e acabaria longe do meu filho."
A pandemia impôs a Pâmela uma realidade em que a prostituição era a alternativa com menos efeitos colaterais. Ela só espera que não esteja contaminada pelo submundo a ponto de não querer voltar a ser vendedora. A preocupação existe, porque os rendimentos são bons e o asco ao ser tocada por estranhos desapareceu.
Medo do agiota
O ano de 2021 começou complicado na casa da cabeleireira Mirella, 40 anos. O fornecimento de cesta básica terminara e ela e o marido passaram dezembro comendo só arroz com feijão. Foi o cardápio até da ceia de Natal. A dieta limitada não impediu que a luz fosse cortada em janeiro.
A conta d'água também estava atrasada. Pior de tudo: pela primeira vez, desde o começo da pandemia, não havia R$ 700 para pagar o aluguel. O risco de serem despejados mudou de patamar. Passou de uma preocupação distante para uma possibilidade.
Dormir na rua apavorava Mirella. O medo de roubo, estupro e assassinato fez apelar para um agiota. Com os R$ 1 mil recebidos, a cabeleireira pagou as contas atrasadas e colocou comida na geladeira. O alívio foi provisório; o drama do empréstimo, permanente. Ela assinou uma duplicata com juros de 40% ao mês. "Senti que tava me fodendo, mas o desespero era grande."
A cabeleireira conta que não houve ameaça, apenas o aviso de que seria procurada em caso de atraso. O pavor em descobrir do que os capangas do agiota eram capazes transformou a prostituição em solução. De fevereiro em diante, ela adotou identidade dupla. De dia, usa o nome de batismo. À noite, atende por Mirella e faz ponto na Penha, na zona leste de São Paulo.
"A prostituição para quem trabalha na área de garagem de caminhão não atrai polícia. A PM não embaça porque a gente não faz bagunça, não joga camisinha usada no chão e não é área residencial."
Ciúmes do marido
Mirella deixou Rio Tinto (PB) e a família aos 21 anos, sonhando ser uma cabeleireira renomada em São Paulo. Chegou aos 40 orgulhosa das mechas e da escova progressiva que faz, mas não montou salão famoso. Atendia em casa, e a freguesia sumiu na pandemia. Nem foi isolamento social, mas falta de dinheiro, mesmo.
Arruinada financeiramente, Mirella comunicou ao marido a decisão de se prostituir. Contrariado, ele protestou. Diante da resolução da mulher, adotou a resignação. Não toca no assunto quando a cabeleireira volta para casa.
O combinado é ela deixar o ponto às 23h. Até esse horário, o casal troca mensagens de áudio enquanto Mirella espera clientes. Quando há demora na resposta, o ciúme aparece.
"Às vezes ele manda mensagem e falo que tô ocupada. Se eu demoro a mandar áudio, ele fala que tô fazendo romance ao invés de trabalho."
Para preservar a parceria do casamento, o casal tenta manter a rotina sexual. Mirella diz que estão juntos há oito anos e não existia mais a empolgação do começo do relacionamento. Eles transam somente nos finais de semana e, nesses dias, Mirella não dá expediente.
"Eu reservo o sábado e o domingo para o meu marido. São os dias que ele fica em casa e podemos estar juntos."
A realidade é ruim para os dois. Mirella precisa lidar com o casamento e administrar a cabeça. Muitas vezes, se sente humilhada por fazer programa. Também incomoda viver na mentira. Os vizinhos não sabem que está se prostituindo. A ausência durante as noites foi justificada com a desculpa de fazer um curso.
O look do cotidiano na hora de sair de casa mantém o disfarce, mas na mochila há roupas provocantes no lugar do material escolar. Mirella espera pagar o agiota até o meio do ano e encerrar este ciclo. Por enquanto, o cronograma está sendo cumprido.
No momento, a geladeira dela tem arroz, feijão, coxa e sobrecoxa de frango suficiente para uma refeição, margarina e uma jarra de Tang sabor laranja. O armário não tem pão, só bolacha salgada e café.
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