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'Aquele som era saudade do Brasil': Macalé, Caetano e o exílio em 'Transa'

Caetano Veloso e Jards Macalé em Londres, 1971: Saudades do Brasil - Pedro Paulo Koellreutter/Acervo pessoal Jards Macalé
Caetano Veloso e Jards Macalé em Londres, 1971: Saudades do Brasil Imagem: Pedro Paulo Koellreutter/Acervo pessoal Jards Macalé

Do TAB, em São Paulo

29/01/2022 04h01

"Transa" é apenas um entre os mais de 30 discos de Caetano Veloso. Sem nenhum sucesso radiofônico e com canções originalmente escritas em inglês, o álbum completa 50 anos neste mês de janeiro com um dos mais celebrados registros da música brasileira. O álbum ecoa, ainda com frescor, não apenas o período de exílio forçado de Caetano, em plena ditadura militar, mas as intrincadas e vivas raízes do Brasil. É uma obra guiada por um único sentimento.

"É uma saudade da sua terra, da língua, do seu jeito de ser, do seu povo", explica Jards Macalé, diretor musical do álbum, cinco décadas depois. "Estar fora do país se sentindo obrigado [a isso], a saudade é muito diferente."

Macalé tem 77 anos e não chegou a ser preso, mas andava visado pelos militares. Sem trabalho e esperança, nutria a vontade de fugir do país. Por isso mesmo chorava em meio aos foliões no Carnaval de 1970, em Salvador. Foi quando viu Maria Bethânia cruzar a multidão em sua direção. Ela dizia que Caetano, seu irmão, queria falar com ele por telefone — era urgente. Meia hora depois, ouviu do cantor um chamamento. Queria gravar um disco, mas só o faria se Macalé estivesse ali com ele, em Londres, onde morava havia mais de um ano.

Não fazia muito tempo que Caetano estivera no Brasil pela primeira vez após o episódio. Em janeiro, os pais do cantor haviam comemorado 40 anos de casados e, por intermédio de Bethânia, conseguiu com os militares a permissão para uma visita, o que o encheu de esperança. Vivia um período depressivo em Londres, como conta no livro "Verdade Tropical", e como está explícito na melancolia de seu primeiro disco gravado longe de sua terra. "Londres representou para mim um período de fraqueza total", escreve Caetano. "Não tinha forças para esboçar um gesto livre."

A chegada de Caetano foi tensa. Assim que desembarcou, foi levado a um apartamento na rua Presidente Vargas, no Rio, e interrogado e ameaçado por seis horas. Os oficiais exigiam que ele compusesse uma canção-propaganda para a Transamazônica, a estrada que se tornaria símbolo do governo militar.

O cantor se livrou da obrigação, mas acatou a participação em dois programas da TV Globo, imposta pelos inquiridores, "para que tudo parecesse normal". Na plateia, jovens cariocas sequer sabiam das prisões. Na época, circulava nos carros o adesivo com os dizeres: "Brasil, ame-o ou deixe-o."

"Cheguei a sentir dor física no coração. Era o slogan triunfante da ditadura", relembra no livro. Voltou a Londres acreditando que levaria muitos anos para o retorno definitivo, mas se sentia reanimado. "Apesar de tudo, o Brasil ainda existia."

Envolto em lembranças de pessoas e lugares — era esse o Caetano que falava do outro lado da linha. Dizia que o baterista Tutti Moreno, o baixista Moacir Albuquerque e o percussionista Áureo de Souza já estavam por lá. Só faltava Macalé e seu violão para assinar a direção musical do novo projeto.

Parte da banda de Transa em Londres. Da esq. para dir.: Maurice Hughes (engenheiro de som), Áureo de Souza (baterista e percussionista), Jards Macalé (diretor musical), Caetano Veloso e Moacir Albuquerque (baixista) - Divulgação - Divulgação
Parte da banda de Transa em Londres. Da esq. para dir.: Maurice Hughes (engenheiro de som), Áureo de Souza (baterista e percussionista), Jards Macalé (diretor musical), Caetano Veloso e Moacir Albuquerque (baixista)
Imagem: Divulgação

Macalé conta que queria abandonar o país, mas era sempre demovido da ideia por amigos. "Tinha medo de não voltar. As pessoas diziam: você vai, mas você não volta." Não era para menos. Aos 26 anos, o músico se tornou persona non grata após apresentar a apocalíptica "Gothan City", parceria com Capinam, no 4º Festival Internacional da Canção. A canção foi sumariamente vaiada.

A polêmica começou nos ensaios da apresentação, no Maracanãzinho, e chegou aos ouvidos da mãe a partir de uma vizinha: "Jardzinho está aprontando alguma coisa séria, por que o pessoal do escritório está louco". Soube depois que a mulher trabalhava na Polícia Federal. "Estávamos marcados. Veio o AI-5 e fechou tudo. Ficou quase impossível uma existência digna no Brasil", explica.

O convite por telefone era a chance de sair do pesadelo. Antes da viagem, disse ter dormido três dias seguidos, apavorado. Deixou o verão carioca e foi recebido com frio em Londres. "Não se impressiona com esse cinza todo aí fora não, aqui é assim", Caetano o recepcionou.

No primeiro dia, deu de cara com Jorge Mautner, que filmava o "O Demiurgo". Ganhou no filme experimental, de roteiro anárquico, o papel de mensageiro de uma terra distante. "Já no dia seguinte, começamos a bagunçar algumas ideias", relembra.

Os ensaios aconteciam diariamente na casa de Caetano, em Chelsea, onde Jards morou por mais de um ano. Vez em quando, tocavam em piqueniques nos parques londrinos. Munido de uma Super-8, Jards registrou esses encontros. Cinquenta anos depois, essas imagens vão nortear o documentário "London 70", da diretora Rejane Zilles, que resgata a passagem de Macalé por Londres e a criação de "Transa". O filme está em pré-produção e conta com imagens da volta do músico à cidade cinza, em 2017.

Jards Macalé volta a Londres em 2017. Imagens estarão no documentário "London 70" - Rejane Zilles/Divulgação - Rejane Zilles/Divulgação
Imagem: Rejane Zilles/Divulgação
Jards Macalé volta a Londres em 2017.  Imagens estarão no documentário "London 70". Na foto acima, ele volta ao Electric Cinema, citado em "Nine Out of Ten" - Rejane Zilles - Rejane Zilles
Jards Macalé volta a Londres em 2017. Imagens estarão no documentário "London 70". Na foto acima, ele volta ao Electric Cinema, citado em "Nine Out of Ten"
Imagem: Rejane Zilles

Colagem, ácido e leite

A ideia de se criar uma colagem musical estava presente desde o início dos ensaios. Muito antes do surgimento dos samples no rap e no pop, Caetano emprestava citações de canções brasileiras mais antigas como forma de consolo. Assim, "It's a long way", a canção em inglês sobre a jornada forçada, começa citando Beatles, mas navega por "A lenda do Abaeté" (de Dorival Caymmi) e um coco de Zé do Norte — os versos "Arrenego de quem diz que o nosso amor se acabou / Ele agora está mais firme do que quando começou" do paraibano, revisitado na canção, parecia reafirmar a relação com a terra mãe, apesar da distância.

Aliava-se ao rosário de imagens do Brasil profundo, o poema do baiano Gregório de Matos, "Triste Bahia", musicado pelo grupo, e "Mora na Filosofia", do sambista carioca Monsueto. "Era um reencontro com o Brasil. Abstrato, mas era", afirma Macalé. "Era uma saudade nossa, detonada pela saudade do Caetano."

O músico traduziu esse sentimento em timbres muito próprios. Não era rock, muito menos MPB. Fazendo um contraponto com o violão de Caetano -- que apenas em Londres assumiu o instrumento no estúdio --, desbravou as lembranças de uma forma que até hoje não consegue reproduzir. Em "Nine Out of Ten", toca guitarra pela primeira vez. Em certo momento, levado por violões e percussão, Caetano grita: "Bora Macau". O músico então emenda um solo. "Até hoje não sei como fiz e nem sei tocar de novo."

Na época, Macalé mantinha religiosamente o hábito de tomar um ácido por dia. Nos ensaios, apenas uma "maconhazinha". "Caetano nunca fumou, nem cheirou, nem tomou ácido. Ele tem medo de ficar maluco, como se ele já não fosse louco", brinca, aos risos. "Mas ele pegava carona, ficava tão louco quanto a gente, o que é um desrespeito com a comunidade."

A única coisa que Caetano aceitou tomar foi leite, quando a trupe foi ensaiar em um estúdio no Arts Lab, dividindo espaço com outros artistas. "Nossa sala era bastante grande e tinha um cara fazendo um trabalho com fibra de vidro, umas esculturas. Ele usava uma máscara e a gente ensaiava tomando leite para evitar contaminação", conta Macalé.

A gravação contou com a participação de Gal Costa, em visita a Londres, e de uma desconhecida Angela RoRo, munida de gaita. Macalé se lembra da surpresa do técnico de som com aquele som robusto e os instrumentos nunca vistos, como berimbau e agogô. "Tinha uma intensidade. Gravamos tudo praticamente ao vivo para pegar o calor da hora."

A música para Transamazônica não chegou a ser feita, mas o álbum ganhou o nome de "Transa", gíria da época para qualquer tipo de "troca". "Ali foi uma transa entre músicos", lembra Macalé.

A transa entre eles quase terminou em briga, após o lançamento do disco. "Transa" acabou sendo lançado apenas no Brasil, com uma capa-conceito que se desdobrava em muitas partes. O "disco-objeto", criado por Álvaro Guimarães, no entanto, não trazia a ficha técnica e créditos dos músicos.

"Naquela época ninguém estava acostumado a botar ficha técnica direito. Era um disco do Caetano, mas era nosso também, e só saiu aquela capa esdrúxula, que parecia um abajur", relembra Macalé. "Não gostei e passei algum tempo apertando ele, meio brigado. Depois nos resolvemos."

Na verdade, a ausência da ficha técnica também causava indignação em Caetano, que sempre atribuiu a falha à gravadora. Hoje, ele diz que "Transa" é um dos seus discos preferidos. "Era um disco de banda", reafirma em "Verdade Tropical".

Na labareda

Parecia que o governo militar já não ligava mais para o destino daqueles brasileiros e, em janeiro de 1972, os amigos desembarcaram no Rio, recepcionados por uma onda de calor. No aeroporto, Macalé comentou o choque térmico ao repórter Geneton Moraes Neto: "Uma labareda que lambeu tudo". A frase seria utilizada anos depois para nomear o documentário do jornalista sobre canções do exílio.

No dia seguinte à chegada, a banda fez sua estreia no Teatro João Caetano, no Rio. De calça amarela, tamanco e jaqueta, Caetano cantou para a plateia abarrotada por mais de duas horas. Era sua saída da prisão, que a rigor nunca tinha se dado.

Numa entrevista ao jornal O Globo, ainda no aeroporto, o cantor apenas afirmou, sem nunca citar a prisão, que voltara sem ter muita coisa programada: "Só a vontade de cantar, cantar muito".

Junto com o colega de Londres, Tutti Moreno, e o guitarrista Lanny Gordin, Macalé conseguiu gravar seu primeiro álbum, intitulado "Jards Macalé", onde desenvolveu um jeito único de tocar, solto e jazzístico, e que o faria se tornar um dos músicos mais admirados do país. "A gente saiu de uma ditadura e voltou numa ditadura, mas eu gosto muito de história e sei que essas coisas passam", recorda, em conversa com ao TAB. O músico então se despede da conversa, com um pedido atualizado, cinquenta anos depois: "Vamos continuar transando."

Errata: este conteúdo foi atualizado
Na segunda imagem da reportagem, a primeira pessoa à esquerda foi inicialmente identificada como o baterista Tutti Moreno. Na realidade, se trata do engenheiro de som Maurice Hughes. A informação foi corrigida.