RAPAZ COMUM

Com sandália de couro e inspiração em Luiz Gonzaga, João Gomes, 19, é o fenômeno do ano na música

Tiago Dias (texto) e Gabi Di Bella (fotos) Do TAB, em São Paulo

Era noite de festa e o CTN (Centro de Tradições Nordestinas), na zona norte de São Paulo, fervia da plateia aos bastidores. Na parte de trás do espaço, funcionários, jornalistas e assessores aguardavam a chegada da primeira atração do Festival Pizeiro — assim mesmo, com Z, em referência aos jovens entre 18 e 25 que pareciam ser a maioria a "sextar" ao som da pisadinha.

Uma van logo encosta e João Gomes desce num pulo. Sorri sem jeito e faz um sinal de joia. O olhar surpreso parece procurar algum rosto conhecido e logo fixa em uma funcionária da casa, que está à sua frente. Dá um rápido abraço nela e entra no camarim abastecido de energéticos, hambúrgueres, bolos, refrigerantes e uma pequena tábua de sushis. Uma melancia se destaca, esculpida com o rosto daquele rapaz de 19 anos.

De camisa polo, calça jeans, sandálias de couro e o inseparável boné, João Gomes era a estrela daquele camarim e emendava entrevistas curtas para a TV. O assunto naquela sexta-feira (3) era seu "crush" com Maísa. A apresentadora que ganhou fama ainda criança resgatou uma mensagem antiga de João no Instagram. Ele tinha 15 anos — e nenhuma esperança em ser notado: "Eu sou a fim de você desde os tempos de 'Bom Dia & Cia'. Beijo, te amo", dizia.

Um humorista aparece vestido de Maísa para entrevistá-lo. João se acanha. O entrevistador provoca e o chama de "bonitão". Ele olha para a avó que o acompanhava pela primeira vez na estrada: "Olha aí ele mentindo pra mim". O próximo quadro é a simulação da dinâmica de um aplicativo de paquera. "Nunca entrei nisso", diz o cantor, olhando pra baixo. A apresentadora lista algumas famosas: Larissa Manoela, Priscila Alcântara, Maraísa, Anitta. Ele diz não pra todas. "Você me bota numa peleta. Vão dizer: 'tá se achando, não sei o quê'", reclama João.

A noite anterior marcou a estreia do cantor pernambucano nos palcos em São Paulo, após o vozeirão grave se tornar onipresente nas paradas de streaming, botecos, praias, festas e jukebox de bares. Em poucos meses, João se tornou o mais novo fenômeno de uma onda forte que bateu no país chamada pisadinha. Seu único disco, "Eu Tenho a Senha", feito em 15 dias, tornou-se o álbum mais ouvido no Brasil em plataformas como Spotify e Deezer. Suas músicas ficaram durante semanas entre as mais ouvidas.

"Meu Pedaço de Pecado", "Se For Amor" e "Aquelas Coisas" versam sobre crushes irresistíveis na batida do teclado e da sanfona, e no tom de voz que lembra o de um seresteiro. Não demorou para se tornar trilha sonora de um Brasil que anseia um verão sem pandemia — e, de preferência, dançando coladinho com alguém. Apesar disso, ele diz ser um cara tímido e reservado, o que não o impede de olhar fixamente para o interlocutor durante uma conversa, principalmente se o assunto for música, seja Cartola ou o rap de Don L, Orochi e Matuê. "Cresci muito ouvindo Luiz Gonzaga", anima-se.

Ao falar do Rei do Baião, ignora o barulho e canta baixinho "Riacho do Navio", uma das canções que ouvia quando criança. "Pra ver o meu brejinho / Fazer umas caçada / Ver as pegá de boi / Andar nas vaquejada / Dormir ao som do chocalho / E acordar com a passarada". Desde pequeno, ficava encantado em como uma música podia descrever cenas do cotidiano. "A gente vê o chocalho de um bode, da ovelha", diz. "É o que essas músicas retratam. A gente tem que fazer o que a gente vê. Tocar o que a gente vê."

Pensava na vida dura na roça, onde via a mãe e avós trabalharem, quando escreveu "Eu tenho a Senha", música que lhe abriu as portas, no começo de 2021. "Ô levanta cedo pra labuta que eu tô pronto / Eu muito conto com meu Deus que tá no céu". No refrão, a diversão das vaquejadas, o alívio depois do trabalho pesado: "Eu vou, eu vou, colar na vaquejada / Segunda-feira com certeza tô por cá / Pessoal e a galera animada / Que gosta de comer água tá em brasa a me esperar." (Ouça esta e outras músicas citadas na reportagem na playlist feita pelo TAB.)

"Hoje não estou tão próximo da vaquejada, como estava no tempo em que escrevi. Hoje estou perto da estrada", reflete. "A gente se junta com o pessoal do funk, tem que ter essas vozes nas músicas do repertório, mas tem que resgatar nossa cultura também."

Por mais pop que sua música seja, João é um rapaz comum e orgulhoso das raízes. Tem pequenas espinhas no queixo, prefere roupas básicas e, no pé, em vez do tênis da vez, gosta mesmo de bota e sandália. Naquela noite, usava uma "parcata de vovô". "Comprei em Caruaru quando fiz show por lá. Comprei logo umas quatro. Tive um banho de loja, só que foi do que eu gosto."

Faltam dez minutos para o show e João é levado a outro camarim, onde está o humorista Whindersson Nunes. Eles acabaram de lançar um "feat" e vão reproduzir a parceria no palco. Fãs e presenças VIP se aglomeram na porta de acesso, mas nem a assessora do cantor consegue entrar. Uma patrocinadora da casa se irrita por não conseguir uma foto. Ela argumenta na porta: "Umas meninas estão aqui achando que ele é antipático e a gente sabe que ele não é". Na ausência da estrela da vez no TikTok, a avó vira celebridade entre as fãs.

A segurança na porta nega a entrada e pede no rádio, discreta: "A cachaça do João". Uma pequena dose num copo de plástico não demora a surgir e é levada ao camarim. Minutos depois, João ressurge, agora com camiseta e jaqueta jeans, em direção ao palco. O público reage aos gritos, alguns choram. Ele bate com a sandália no palco, pula e tenta uns passinhos. Reconhece que as dancinhas não são seu forte. "Quando ia para as festas era uma vergonha danada", diz.

Vendo o neto cantar ao vivo pela primeira vez, Josilene Diniz batia palma no canto do palco. "Ele foi para Pernambuco, na região da gente, mas eu sabia que ele vinha pra cá. Estava esperando esse momento pra vir junto", explica. "Dá saudade, mas ele me liga toda madrugada."

A mãe, Katia, estava com os olhos brilhando. Diz ainda não entender como o filho se tornou celebridade em seis meses — nem na peregrinação dos fãs na porta da sua casa em Petrolina (PE). "Ele tem uma essência, uma energia muito boa, todo mundo que chega perto sente, as criancinhas, as pessoas mais velhas", diz. "Só Deus explica."

João Gomes nasceu em Serrita, no sertão, e cresceu em Petrolina, no interior de Pernambuco, onde mora com a família. Passou a cantar de brincadeira nos intervalos do curso de agropecuária, em 2019. Com incentivo, migrou a cantoria para o Instagram. Tentou fazer uma dupla com um amigo, mas não vingou.

2021 tinha acabado de começar quando Tarcísio do Acordeon pisou na loja de roupas ao lado da casa da avó. O cearense estava estourado e, junto com o Barões da Pisadinha, levava o forró 2.0, mais dançante e cheio de teclado, no lugar antes ocupado pelos sertanejos nas paradas. "Um primo tinha acabado de abrir uma loja de roupa e eu fui visitar. Foi ele quem avisou escondido o João que eu ia estar por lá", relembra Tarcísio.

"Ele chegou alvoroçadão. Mostrou uma música, mas parecia uma carta. 'Levanta cedo para labuta que eu já tô pronto'. Ele nem queria vender, só que eu cantasse", conta. A música entrou no repertório, e João, sem experiência profissional, fechou um contrato com o empresário Jeovane Guedes, dono da Top Eventos.

Mesmo na seca de shows, combustível principal para cantores e aspirantes do interior do Norte e Nordeste, a pisadinha conquistava espaço nas redes sociais e no streaming, enquanto o sertanejo puxava o freio de mão nos investimentos durante a pandemia.

Em pouco tempo, "Meu Pedaço de Pecado" chegou ao primeiro lugar do Spotify, num movimento que impressiona quem acompanha de perto esses virais. Estima-se que, entre gravação e divulgação, o lançamento de João ficou abaixo dos R$ 50 mil. "Quando um sertanejo lança, é R$ 500 mil para cima pra tocar na rádio", explica Junior Vidal, pesquisador e coordenador de marketing do Sua Musica, conhecido como o Spotify do Nordeste.

A conquista chegou dias antes do primeiro show profissional. João foi atração da versão virtual da tradicional festa de São João. Não havia plateia, a dicção ainda era sofrível e o nervosismo podia ser percebido na transmissão. João até soltou no microfone: "Seja o que Deus quiser". Semanas depois, numa turnê no Pará, foi recepcionado por uma multidão. "Foi lá que caiu minha ficha", ele diz.

Para Junior, João virou um fenômeno por não ser "fabricado". "Ele agradece nos Stories a quantidade de seguidores que ganha porque aquilo ali não se tornou banal. Não gourmetizaram ele", diz. "As pessoas querem se ver representadas, e isso é maravilhoso porque vários talentos aparecem. Talentos que dificilmente teriam chance se estivessem na porta das gravadoras há alguns anos."

Hoje, com a flexibilização das restrições em todo o país, João chega a fazer 40 shows em um mês. Um deles, supostamente em Mossoró (RN), ganhou fama ao reunir cenas de sexo, embriaguez e desmantelo. Na verdade, nem todas são de uma apresentação dele, mas a trend do show que liberou a energia represada na pandemia viralizou nas redes.

Como primeira atração da noite no CTN, João não viu essas cenas se repetirem. Tão logo saiu do palco, tirou fotos com alguns fãs e entrou direto na van — seguiu na mesma noite para São Bernardo do Campo, em mais uma apresentação madrugada adentro (foram sete naquele final de semana).

A notícia nos dias seguintes já seria outra. Uma foto de João com o DJ Ivis foi alvo de críticas nas redes sociais. Produtor responsável por muitos virais da pisadinha, Ivis caiu em desgraça após aparecer em imagens agredindo sua mulher. Ele responde às acusações em liberdade. "Bom curtir perto de você, ver que está bem. Que Deus lhe abençoe e cuide de todos seus planos", comentou João na foto, supostamente tirada no sábado (4), num dos shows posteriores. Após esta reportagem, TAB entrou em contato com a equipe do cantor para falar sobre a relação com Ivis, mas não teve retorno.

Dias depois, uma nova polêmica. Fãs do cantor teriam promovido uma onda de hate contra a cantora pop Marina Sena, que venceu como Revelação do Ano no Prêmio Multishow, categoria em que João também concorria. João que, até aquele show colhia apenas comentários positivos, se viu novamente numa celeuma típica das redes sociais. Nos Stories, onde ele já havia mostrado a sandália nova ao som de Sena, não tocou no assunto, apenas divulgou um texto nesta segunda (13) sobre pessoas maldosas. "Nos livrem de todo mal", pediu, sem citar nenhum dos casos.

Católico como os avós, João demonstra ser temente a Deus sempre que possível. Ao encerrar o show, ajoelhou e fez o sinal da cruz. É sob esse prisma que ele avalia a rápida ascensão. "Não existe condição ideal pra nada. Precisa estar pronto, confiar em Deus, que ele vai nos preparar o caminho", diz, com voz baixa, mas firme.

Mesmo assim, a fama às vezes assusta, ele confessa. "Mas você olha ao redor e vê muita gente que depende de você. Então tudo se torna incentivo pra cantar."

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