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'Aquece o coração': por que pessoas de luto estão recorrendo ao Street View

João, pai de Julie, morreu em abril; no registro do Google Street View, ele está cortando a grama da vizinha - Reprodução/Google Street View
João, pai de Julie, morreu em abril; no registro do Google Street View, ele está cortando a grama da vizinha Imagem: Reprodução/Google Street View

Jorge Cosme

Colaboração para o TAB, do Recife

07/08/2022 04h01

Uma mulher de vestido estampado e pés descalços apoia-se no portão da sua casa de número 58, olhando o movimento na rua. Um homem calvo, de camiseta preta em pleno dia ensolarado, está sozinho na calçada de sua casa, ao lado de seu Astra prata. Um idoso repousa o braço esquerdo em cima da cabeça enquanto descansa em uma cadeira de balanço na frente de casa. Em uma rua precariamente pavimentada, um homem paramentado com máscara de proteção, camisa de manga longa e botas de borracha corta a grama da vizinha com um aparador, enquanto é observado de perto por dois cães vira-latas.

São singelos registros cotidianos, talvez incapazes de despertar o interesse. Entretanto, estão carregados de significado, motivam lágrimas, risos e memórias. Seja no portão de casa, ao lado do Astra, na cadeira de balanço ou segurando um aparador de grama, ali estão pessoas que já faleceram, mas que permanecem incansáveis em atos corriqueiros nas ruas capturadas pelo Google Street View, serviço do Google Maps.

Lançado em 2007, o Street View funciona como um mapa em 360 graus do mundo. Ao longo dos anos, a ferramenta já capturou mais de 220 bilhões de imagens e percorreu mais de 16 milhões km em 102 países e territórios. Nesse vasto álbum de ruas, becos e vielas estão registros de pessoas que hoje estão mortas. Mais do que uma representação virtual das cidades, o serviço tem proporcionado a filhos, netos e conhecidos um encontro inesperado com quem já se foi.

No Dia das Mães, 8 de maio, o nutricionista Cristiano Silva da Cruz, 29, fez uma publicação que viralizou no Twitter. Tratava-se de uma foto de sua mãe, Edna Cristina Silva da Cruz, no portão da casa onde morava, em Belém.

A imagem estava acompanhada de um texto: "Sempre que eu saía e demorava muito pra voltar, minha mãe me esperava na porta ou na janela, acho que por preocupação. Quando eu tô com muita saudade eu abro o Google Maps e vejo essa foto dela me esperando chegar. Que você tenha um feliz dia das mães aí no céu, saudades demais", seguido de um emoji de coração. A postagem comoveu os internautas e, hoje, tem mais de 304 mil likes e 12 mil compartilhamentos.

"Não esperava toda essa repercussão. Postei para os amigos mais próximos verem", explica Cristiano ao TAB. "Passou a chegar notificação e gente parabenizando por eu ter tido uma mãe tão carinhosa. Me assustei porque vi que pessoas famosas postaram, tipo o Luciano Huck."

O jovem conta que descobriu a presença da mãe no Street View durante a pandemia, em um dia de tédio. Em tempos de restrições, decidiu sair de casa virtualmente. "Me deparei com essa surpresa, ela no portão, uma coisa que fazia bastante. Estava sempre esperando eu e meus irmãos chegarem."

Edna faleceu em novembro de 2020 em decorrência de complicações de um AVC. "Toda vez que eu vejo o portão, quando eu vou chegando em casa, fico pensando que ela estaria lá, me esperando, e quando eu chegasse iria perguntar por que eu demorei, perguntar onde eu estava."

Memorial no Google Street View - Reprodução/Google Street View - Reprodução/Google Street View
'Lembrei de quando meu pai e eu sentávamos na garagem e ficávamos comendo bergamota', diz Julie
Imagem: Reprodução/Google Street View

O dia a dia dos que se foram

Com a postagem no Twitter bombando, o nutricionista percebeu também muitos relatos de casos semelhantes ao seu. "Foi muito legal porque virou uma corrente de coisa muito boa. Galera se apoiando, se consolando, vendo memórias de pessoas que haviam partido através do Google Maps."

Ele tem uma teoria para o porquê desses registros causarem tamanho impacto. "Todo mundo tem uma foto de seu familiar, uma foto posada, mas ali você vê a pessoa em uma situação corriqueira, de dia a dia, algo que era da rotina dela."

O autônomo Clodoaldo Monteles, 42, foi um dos que interagiu com a publicação de Cristiano. Contou o caso do seu falecido pai, que, no Street View, segue vivo em sua cadeira de balanço em uma rua de terra da cidade de Timbiras (MA). "Meu pai ficava boa parte do dia na calçada. A saudade de chegar e encontrá-lo ali, do mesmo jeito e a posição do braço atrás da cabeça, também está gravada no Google Maps", escreveu Clodoaldo, alcançando com a mensagem mais de 7 mil curtidas.

"Quando eu volto para olhar o Google, é como se fosse uma visita que a gente está fazendo. A memória está ali. Quando eu chegava da minha viagem, ele estava lá sentado daquele jeito e a gente sabia que ele estaria no lugarzinho dele", diz.

Memorial no Google Street View - Reprodução/Google Street View - Reprodução/Google Street View
'A saudade de encontrá-lo ali [na calçada] também está gravada no Google Maps', conta Clodoaldo
Imagem: Reprodução/Google Street View

"A posição do braço capturada no Street View é exatamente a memória que eu tenho. Toda vez que eu estava conversando com ele e ele queria lembrar de algo ou construir uma informação sobre a situação do diálogo, era assim que rememorava ou elaborava o pensamento. Então, eu consigo reativar a memória afetiva com aquela imagem, justamente por saber que, naquele momento, ele estava em um mundo contemplativo."

Antônio Gomes da Silva, o pai de Clodoaldo, faleceu em 2014, aos 82 anos. Era conhecido na localidade como Antônio "pau-de-arara", após ter deixado o Piauí e se estabelecido no Maranhão.

A calçada em que Antônio descansava na cadeira de balanço continua sendo ocupada. É um lugar de vivências entre Clodoaldo, seus seis irmãos e sua mãe. "Vamos para lá todas as noites. A nossa mãe tem mais de 80 anos e a gente quer ficar o máximo de tempo com ela, preservando o que eles construíram, que é essa boa relação entre todos nós."

O autônomo confessa que, quando acessa o Google Street View, vai na expectativa de que seu pai ainda esteja lá. "É uma expectativa de que não tenha sido atualizado. A gente cria um vínculo afetivo com aquela imagem."

Memorial no Google Street View - Reprodução/Google Street View - Reprodução/Google Street View
'Volto ao Street View para poder lembrar dele, de tudo que a gente viveu', relata João, sobre seu padrinho
Imagem: Reprodução/Google Street View

Aquecer o coração

O estudante João Girão, 23, que cursa de engenharia naval na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), também tem o ritual de voltar ao Street View e observar o momento em que seu padrinho está na calçada ao lado do carro no município de Serra (ES). Agostinho Iacomini faleceu em 2018.

"Eu estava no Rio e era uma época de provas muito pegadas. Eu queria ir ao funeral, mas cairia no dia em que eu tinha duas provas. Os professores não aceitariam um atestado de óbito de uma pessoa que não tem grau de familiaridade comigo", lamenta o estudante. "Resolvi não ir e, no final, acabei me arrependendo."

João usava o Street View para identificar as mudanças ocorridas no bairro onde costumava residir. "Quando eu o encontrei, senti um misto de saudade com emoção. Fiquei triste por não ter aproveitado a última oportunidade de tê-lo visto, mesmo que fosse dentro de um caixão." A descoberta ocorreu cerca de um mês após a morte do padrinho. "Eu volto ao Street View para poder lembrar dele, de tudo que a gente viveu", explica o universitário.

Julie de Castro, 24, precisou ser amparada pelos colegas de trabalho após começar a chorar repentinamente durante o expediente em uma transportadora de Florianópolis. A auxiliar operacional tem como uma de suas funções analisar endereços em que a transportadora não conseguiu realizar entregas. Para isso, recorre às ferramentas do Google.

Em uma dessas ocasiões, Julie precisou fazer um levantamento em Lages (SC), sua cidade natal. Aproveitou para consultar seu antigo endereço.

Ela encontrou a primeira casa que morou, que já não existe, e o pai cortando a grama da vizinha. João de Castro, pai de Julie, morreu de câncer aos 63 anos em 2 de abril deste ano. Nos últimos meses de vida, ele, que sempre foi um homem ativo e de saúde invejável, não tinha mais forças para andar.

"Voltar para o ano de 2012, pela imagem do Street View, em que meu pai ainda era forte, resgatar essa lembrança dele, foi bem emocionante", lembra. O pai, segundo a jovem, era o "faz-tudo" da rua, cortando a grama da vizinhança todo final de semana. "Em volta do meu pai tem os cachorros, que eram sempre os companheiros dele", ela descreve.

"Quando eu avistei a minha casa, ela me levou de imediato para as lembranças de quando eu colocava todos os meus ursinhos para o lado de fora e dava aula para eles. Ou quando eu colocava no som o CD pirata da banda RBD e ficava dançando ali porque era meu palco de show", recorda Julie.

"Lembrei de quando meu pai e eu sentávamos na garagem e ficávamos comendo bergamota. Ele ficava reparando e soltando alguma bobagem sobre quem estivesse na rua. Era cheio de graça, sabia que eu me divertia e ficava horas ali comigo no tempo livre dele, fazendo só isso."

Enquanto era amparada pelos colegas de trabalho, a auxiliar operacional tinha dificuldades de conseguir explicar o que se passava. "Eu estava entre o choro e o riso, porque estava me achando tão boba, mas ao mesmo tempo estava rolando um misto de sensações. Era saudade junto com uma sensação incrível de privilégio por ter vivido ali", comenta.

Cristiano, o nutricionista do post viral, dizia tratar com naturalidade uma eventual atualização do Google Maps, o que tiraria sua mãe daquela rua em Belém.

Na última quinta-feira (4), ele voltou a transitar pelo Street View e percebeu que o bairro estava com imagens atualizadas. Com dedos ligeiros, percorreu o caminho até a casa de número 58. Apesar de a rua estar atualizada, Edna continuava lá. "O Google atualizou, mas manteve a imagem da minha mãe", celebra. "Muita gente marcou o Google nas respostas do tuíte, pedindo para não atualizarem. Se foi proposital do Google ou não, não sei, mas deu uma aquecida no coração."