Lenda da carruagem fantasma de Ana Jansen ronda centro de São Luís
Movido por um ódio profundo, o comendador e negociante Antonio José Meireles importou da Inglaterra centenas de penicos de louça, tendo ao fundo a fotografia de sua maior adversária, de tal modo que os usuários pudessem defecar e urinar sobre a imagem dela.
A venda dos urinóis no armazém do comendador foi um sucesso. Meireles só não contava com a peripécia da rival: ela própria acionou emissários para comprar todos os penicos. Quando não restava nenhum exemplar, mandou um grupo de 30 escravos à porta do comendador e, armados com portentosas estacas de pau, estraçalharam os urinóis até virarem pó.
O episódio real, contado no livro "Os tambores de São Luís", de Josué Montello, é um entre tantos conflitos em que Ana Jansen (1787-1869) "triturou" adversários.
Ana Joaquina de Castro Jansen Albuquerque, também lembrada como Donana Jansen, Dona Ana Jansen ou Nhá Jança, nasceu em São Luís, vinda de uma família rica que entrou em decadência.
Pobre, já era mãe solteira antes do primeiro relacionamento com o coronel português Isidoro Rodrigues Pereira — o homem mais rico do Maranhão. Com ele, na condição de amante, teve cinco filhos antes de casar e mais uma filha depois do matrimônio.
Quando o coronel faleceu, deixou para Ana Jansen terras, dinheiro, casas e escravos. Habilidosa nos negócios, ela multiplicou a riqueza e a associou à política, impulsionando sua família ao núcleo da elite maranhense. Durante quase 40 anos exerceu forte influência sobre desembargadores, chefes de polícia, cobradores de impostos, intelectuais, jornalistas e parlamentares.
O QG para a tomada de decisões era o suntuoso palacete da rua Grande, no centro de São Luís, em eventos regados a música e banquetes. "Dia e noite ferviam ali dentro as tricas políticas e os enredos privados da terra", registrou Jerônimo de Viveiros no livro "Ana Jansen, Rainha do Maranhão".
No imaginário maranhense, ela se tornou uma lenda, lembrada como uma mulher perversa que mandava torturar escravizados e cometia atrocidades contra inimigos. Uma das histórias fabulosas remete à "carruagem fantasma" de Ana Jansen, que a altas horas da noite parte de um cemitério puxada por mulas sem cabeça, guiada por um cocheiro negro decapitado. Até hoje há quem acredite que o espírito da matrona ronda o centro da cidade para expiar seus pecados.
As lendas sobre Ana Jansen vivem na memória dos trabalhadores do comércio informal espalhados no entorno do prédio. "Os vigias da noite comentam que escutam coisas estranhas aí em cima do sobrado, na madrugada, como se tivesse alguém falando, andando ou arrastando móveis", diz a vendedora de confecções Raimunda de Jesus Cutrim, 65, há 12 anos com ponto na vizinhança do palacete.
Nem vilã nem heroína
Não há registros históricos de processos contra Ana Jansen por morte ou tortura de escravos, diferentemente da baronesa Ana Rosa Viana Ribeiro, que foi a julgamento acusada de matar um menino negro de 8 anos, em 1876. Há quem confunda as duas Anas.
A família de Ana Jansen controlava o jornal "O Guajajara", adversário do periódico "A Revista". Ela fez que fez e conseguiu sabotar até a tipografia onde "A Revista" era impressa, que acabou despejada do sobrado onde funcionava.
Na época, as publicações "defendiam abertamente suas posições sem a preocupação com a ideia de neutralidade", lembra o historiador Marcelo Cheche Galves, professor da Universidade Estadual do Maranhão. "O Guajajara", por exemplo, era contra a "insurreição dos pretos" na Guerra da Balaiada, revolta popular entre 1838 e 1841: "guerra e mais guerra, aos rebeldes e pretos levantados", estampou certa vez, na primeira página.
A família também monopolizava a distribuição de água na capital da província. Seus escravizados coletavam água nas fontes ou chafarizes, e vendiam o líquido de casa em casa, em pipas sobre carroças puxadas a burro. Na época retornava de Paris o recém-formado engenheiro Raimundo Teixeira Mendes, que vislumbrou um projeto de canalização em São Luís. Ana Jansen não gostou de ter um concorrente e, oito dias depois da inauguração da companhia, apareceu nas águas do depósito um gato morto. "Os negros da Rainha espalhavam a notícia — gato morto na caixa d'água —, que o povo repetia pelas ruas da cidade", escreveu Viveiros.
Diz-se que foi Ana Jansen quem influenciou a decisão do coronel Isidoro Pereira de doar dois contos de réis à Santa Casa de Misericórdia para criar a Casa da Roda, projeto filantrópico de acolhida dos bebês de mulheres pobres ou que não podiam reconhecer a maternidade porque as crianças foram concebidas fora do casamento.
Ao ficar viúva, antes dos 30 anos, Ana Jansen foi companheira do desembargador Francisco Carneiro Pinto Vieira de Melo. Teve mais quatro filhos, sem casar. Depois, casou-se de fato, pela segunda vez, com o negociante Antonio Xavier da Silva Leite, de Belém.
Quer dizer: uma mulher que foi amante, casou duas vezes e teve dez dos 11 filhos fora do enlace matrimonial no século 19. "Ela atravessa a história como uma mulher que desafiou regras, lugares, modelos e discursos. Considero um erro qualificá-la como vilã ou heroína", diz a historiadora Marize Helena de Campos.
Para a historiadora Elizabeth Abrantes, da Uema (Universidade Estadual do Maranhão), o poder político e econômico de Ana Jansen incomodava a sociedade da época.
"Ela exerceu papéis não previstos para o sexo feminino e por isso teve muitos opositores, sendo alvo de uma série de intrigas e difamações que vão contribuir para a construção do imaginário negativo que se tem até hoje", acrescenta. Foi uma matriarca em uma sociedade patriarcal.
Ao longo do tempo, Ana Jansen colecionou vitórias contra ricos e poderosos, como o político Candido Mendes de Almeida, tirado à força de um navio quando tentava zarpar para o Rio de Janeiro, onde tomaria posse na Assembleia Geral Legislativa. Entretanto, ela amargou uma derrota quando teve negado o pedido para obter o título de baronesa de Santo Antônio junto ao imperador Dom Pedro 2º, em 1843.
Ana Jansen morreu aos 82 anos, em 11 de abril de 1869. Teve 53 netos e 14 bisnetos — uma das suas descendentes, Terezinha Jansen, destacou-se na cultura popular do Maranhão. A matriarca foi sepultada no cemitério dos Passos (hoje Estádio Municipal Nhozinho Santos). Sua vida marcante foi adaptada para o teatro na peça "Ana do Maranhão", da escritora Lenita Estrela de Sá, e ganhou versões para leitores infantis dos autores Beto Nicácio e Wilson Marques.
Na famosa Lagoa da Jansen, cartão-postal de São Luís, flutua uma grandiosa escultura de 74 metros da "serpente encantada", ilustrando uma cobra gigante que cresce ao longo dos séculos nos subterrâneos da cidade.
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