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'Acabou a paz': o impacto do podcast da 'casa abandonada' em Higienópolis

A mansão em Higienópolis, bairro nobre de São Paulo, que virou ponto turístico com o sucesso do podcast "A Mulher da Casa Abandonada", da Folha - Reinaldo Canato/UOL
A mansão em Higienópolis, bairro nobre de São Paulo, que virou ponto turístico com o sucesso do podcast 'A Mulher da Casa Abandonada', da Folha
Imagem: Reinaldo Canato/UOL

Cláudia Castelo Branco

Colaboração para o TAB, de São Paulo

08/07/2022 04h01

Anoitece em Higienópolis, bairro nobre na capital paulista. Um casal consulta o Google Maps e aponta para uma casa próxima a uma praça, cercada de prédios de ricos. "É aqui!", dizem.

Moradores passeiam com seus cachorros fingindo costume, mas o passo sempre desacelera em frente à casa. Um homem barbudo chama quem passa de "fofoqueiro", mas permanece ali por duas horas. Em meio a uma dúzia de pessoas, três jovens, fãs de programas "true crime", trocam referências sobre crimes reais. Estão entre os poucos que não disfarçam o motivo da visita: ver de perto a mansão que ganhou fama com o podcast "A Mulher da Casa Abandonada", do jornal Folha de S.Paulo, sobre o crime de uma brasileira cometido nos EUA.

O publicitário Bruno Medeiros é declaradamente "um curioso", mas se frustra ao chegar ao local — esperava ver uma mansão maior. "A gente pensa que o Brasil é terra de ninguém porque muito nazista fugiu para o Paraguai...", disserta para o vácuo.

Enquanto a expectativa aumenta com a possibilidade de a Polícia Civil entrar na casa, câmeras de TV exibem através das janelas detalhes ao vivo da mansão. Ao contrário do divulgado pelo programa, os policiais não entraram.

Histórias escutadas ao pé d'ouvido dão a entender que eles aguardam um suposto mandado para entrar. "Hoje isso aqui vai longe", comenta discretamente um agente ao telefone. Não foi. Trinta minutos depois, a viatura partiu silenciosamente, sem dar explicações. A casa de Margarida Bonetti resiste mais uma noite.

O homem barbudo e sem graça permanece plantado na calçada, chamando os outros de fofoqueiros. Ninguém perguntou, mas ele exclama que "só fala com o Chico".

"O Chico" é Chico Felitti, jornalista e autor do podcast que lançou luz sobre o crime cometido por Margarida, brasileira que manteve uma empregada doméstica nos Estados Unidos sob cárcere privado por 20 anos.

A casa da rua Piauí 1111, que virou ponto turístico com o sucesso do podcast 'A Mulher da Casa Abandonada' - Reinaldo Canato/UOL - Reinaldo Canato/UOL
Pessoas sobem na mureta para tirar fotos da mansão de Margarida Bonetti
Imagem: Reinaldo Canato/UOL

Caça-fantasmas e 'fanfics'

"Sou apenas um pai que foi obrigado pela filha a vir aqui", justifica outro homem que estaciona na rua. Ela e outras garotas tiram selfies e fazem vídeos em frente à casa.

"Ô, João, providencia uma mesa de café bolo pra vender aqui", brinca Francisco, zelador do prédio ao lado. Ele descreve Margarida como pacífica, normal e culta, e diz que não está à vontade com a movimentação. "Lógico que o que ela fez é terrível, mas o pessoal fantasia demais", opina. "O pior é na madrugada: as pessoas passam gritando 'bruxaaaaa', buzinando, fazendo zoeira", complementa João, segurança do prédio em frente. "Nunca me fez mal", diz, sobre Margarida.

Enquanto a reportagem do TAB esteve por lá, não havia um clima hostil entre os curiosos de plantão. A publicitária Simone Finguermann é uma das mais entusiasmadas. "Já pensou se ela aparece e tiro uma selfie?", brinca. Simone conta que participou do resgate dos cachorros que viviam na mansão.

A casa da rua Piauí 1111, que virou ponto turístico com o sucesso do podcast 'A Mulher da Casa Abandonada' - Reinaldo Canato/UOL - Reinaldo Canato/UOL
Imagem: Reinaldo Canato/UOL

De súbito, as pessoas dispersam — menos as que estão diante das janelas. O silêncio é interrompido pelo grito de um vizinho: "Acabou a paz em Higienópolis!".

Um homem em situação de rua dorme no banco da praça Vilaboim, a poucos metros dali.

Na madrugada de terça-feira (5) apareceram caça-fantasmas, conta Simone, mostrando um vídeo do grupo tentando contato com os pais de Margarida. Segundo eles, a moradora está lá. Alguém solta que "deve ter muita joia". Outro diz que, "se fosse pobre, a polícia já teria entrado". Há também os que acreditam na existência de corpos guardados em geladeiras. Cada um na sua "fanfic".

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Lucas Arruda faz live na frente da casa e grava conteúdo para postar nas suas redes sociais
Imagem: Reinaldo Canato/UOL

'Ontem até pediram pizza'

Sob a luz do sol, lágrimas-de-cristo saltam do portão, que amanheceu pichado com a frase "Qual será o mistério da mansão?". Uma adolescente conversa com a irmã por FaceTime enquanto descreve o cenário.

A casa ganha contornos coloridos de verde e roxo, e transeuntes vestidos à moda esportiva com tênis e conjuntos de ginástica passam de cara emburrada com seus cães.

É uma luz boa para fotos. Equipado com um tripé, o ator Lucas Arruda faz uma live para seu Facebook e reúne conteúdo para usar nos seus outros canais, no TikTok e no Instagram. "Achei assombrada. Isso aqui vai virar um ponto turístico." Fã declarada de programas sobre crimes reais, Lucia Gomes reflete: "Os crimes norte-americanos têm mais enredo, mais história. Aqui já matam logo, não tem narrativa".

No muro agora está escrito "escravocata", assim errado, mas Margarida para muitos parece estar em segundo plano. Todos ali, naquela manhã, querem mesmo é ver a casa e imaginar seus mistérios. Francisco, porteiro há 13 anos num condomínio da rua Pernambuco, observa a vegetação, que salta muito viva. "Aquela é a pingo-de-ouro", explica.

A casa da rua Piauí 1111, que virou ponto turístico com o sucesso do podcast 'A Mulher da Casa Abandonada' - Reinaldo Canato/UOL - Reinaldo Canato/UOL
Segundo relatos, a rua já foi visitada por 'caça-fantasmas' e curiosos pediram até pizza na 'vigília'
Imagem: Reinaldo Canato/UOL

Heloisa Avante, que acabou de chegar da Alemanha com o noivo finlandês, deixou as malas no apartamento e foi conhecer a mansão, influenciada pela irmã, Duda. "Mas daí vou sair na reportagem de 'curiosona'?", pergunta, dando risada.

De Santa Catarina, Ricardo Mateus caiu no podcast durante o voo para São Paulo. "Cheguei hoje, desci do avião e tinha esse intervalo entre uma reunião e outra. Daí vim aqui", conta o engenheiro civil. Também passou por ali uma jovem com aspirações acadêmicas. O tema do TCC de Amanda Isabeli é turismo "dark", que trata de "visitar esses lugares onde já aconteceram tragédias". "Para você relembrar, não esquecer", diz.

Gabriela Moreira veio de Sorocaba (SP). Após resolver seus afazeres na região do Brás, a dona de uma loja de roupas decidiu dar um rolê em Higienópolis. "Queria ver de perto a casa, não a Margarida. Vim porque sou curiosa, é isso."

Na praça Vilaboim, o ajudante geral Gileno de Castro passa com a noiva, Isabela Cavalheiro. "Essa história que a mulher maltratava os cachorros é mentira. Tudo gordinho, as casinhas limpas. Pessoal quer aparecer", diz.

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A palavra 'escravocata' foi pichada no muro da mansão nos últimos dias
Imagem: Reinaldo Canato/UOL

O ex-morador de rua conta que entrou na parte externa da casa duas vezes para recolher ferro e calha, em meados de 2016. Isabela solta que "ontem pediram até pizza" na porta.

Simone, a vizinha que estava lá à noite, aparece novamente. Seus cães, Boker e Laila, latem para outros cachorros. Ela assume que está obcecada pelo caso e conta que a polícia tem aparecido todos os dias, mas logo vai embora. Segundo ela, policiais usaram um drone na segunda-feira (4).

A despeito da vizinhança desacostumada com o espetáculo do cotidiano, a casa no quarteirão nobre de São Paulo não está mais abandonada. "É Lula e FHC que moram aqui", grita um homem alcoolizado. E passam todos adiante, cada um com novas versões de suas histórias.

Nesta quinta (7), a Polícia Civil informou que iria intimar o filho e a irmã de Margarida para prestarem depoimento em inquérito que apura se "a mulher da casa abandonada" sofre de algum distúrbio psiquiátrico e se houve "abandono de incapaz".

Com uma viatura estacionada na rua Piauí, a Polícia Civil não quis comentar o caso.

A casa da rua Piauí 1111, que virou ponto turístico com o sucesso do podcast 'A Mulher da Casa Abandonada' - Reinaldo Canato/UOL - Reinaldo Canato/UOL
'Queria ver de perto a casa, não a Margarida. Vim porque sou curiosa, é isso', diz Gabriela Moreira
Imagem: Reinaldo Canato/UOL