Mizanzuk, o gamer paizão que mudou a história das 'bruxas de Guaratuba'
Era 2018 e Ivan Mizanzuk andava meio desanimado com as perspectivas de sua carreira acadêmica.
O designer gráfico e professor universitário foi então surpreendido por uma boa notícia: a Globo queria sua participação no roteiro de um programa de TV sobre o caso das "bruxas de Guaratuba", tema que já tomava seu tempo e energia cada vez mais. O assassinato brutal do menino Evandro Ramos Caetano, 6, em Guaratuba, em 1992, era o assunto da quarta temporada do "Projeto Humanos", um dos podcasts de Mizanzuk.
O designer revelou a proposta a um amigo, contando que o contrato poderia lhe render uma "bolada". Com uma pergunta, o amigo o fez entender que o negócio envolvia bem mais que dinheiro. "Você sabe que isso vai mudar a sua vida para sempre, né?"
Ivan sabia, e fechou a venda. Sua vida realmente mudou. E não foi só a dele.
Mizanzuk lançou o podcast "Caso Evandro" em outubro de 2018 e logo foi fazendo barulho. Era um true crime brasileiro cheio de detalhes e bastidores do caso, informações que passaram batido pela imprensa ou pelos investigadores na época. Parte da pesquisa pode ser vista na série da Globoplay que estreou nesta quinta-feira (13).
A investigação de Mizanzuk sobre a morte do menino e a forma com que contou tudo isso mudaram o desfecho do caso. Também o alçaram ao posto de grande contador de histórias — um dos melhores storytellers do país. Não que a podosfera já não soubesse: Mizanzuk era figura conhecida entre a audiência brasileira de podcasts, pois fora criador do AntiCast. Lançado em 2011, o projeto era uma conversa sobre cultura, comportamento e design. Com o tempo, foi virando um hub de programas em áudio.
Graças ao sucesso do "Caso Evandro" (9 milhões de downloads desde seu lançamento), o professor de 37 anos, que um dia sonhou viver escrevendo artigos científicos sobre filosofia do design, foi largando a carreira acadêmica — ele dava aulas na PUC-PR (Pontifícia Universidade Católica do Paraná) e na UniBrasil (Centro Universitário Autônomo do Brasil). Contratado pela Globo desde 2020 para se dedicar totalmente à pesquisa de qualquer caso que julgar interessante, Mizanzuk o faz de forma metódica, num ritmo de trabalho que segue um ritual excêntrico.
Ele geralmente começa a trabalhar às 22h. Senta-se à frente de um microfone e de um computador plugado a dois monitores, sempre com amendoim ou bolacha ao alcance das mãos, além de um refrigerante ou energético. "Café, só quando estou muito cansado", confidenciou, em conversa com o TAB. "Também uso vaper [cigarro eletrônico]. Essas coisinhas me ajudam a manter a concentração."
Embalado por músicas do Pink Floyd, sua banda favorita, ele tenta se isolar do mundo a sua volta e mergulhar até as 6h ou 7h na história que se dispôs a contar. "Só levanto da cadeira quando vejo pela telinha da babá eletrônica que o Nicolas está se mexendo, precisando de alguma coisa", diz Mizanzuk, pai zeloso de um bebê de 5 meses, fruto de um relacionamento de mais de uma década com a também designer Anielle Casagrande.
Atualmente, o podcaster já trabalha na quinta temporada do "Projeto Humanos". Os programas tratarão de assassinatos de crianças no Pará, entre 1989 e 1993. O caso também teve repercussão nacional e ficou conhecido como "os emasculados de Altamira".
Nas paredes do quarto em que Mizanzuk se tranca toda noite, já estão pregados dezenas de post-its, organizados em fileiras de diferentes cores, com nomes e dados dos principais personagens da nova história que o move. "Isso aí me ajuda ver conexões entre uma pessoa e outra, me dá umas ideias", justifica. "É um pouco de mania também. Poderia estar tudo num caderninho. Mas eu gosto de entrar nesse 'mundo', onde só vejo a história."
Tudo bem, mas nada tá bom
Mizanzuk recebeu o TAB em sua casa numa tarde de maio. Gentil, abriu as portas do confortável apartamento onde mora, na região central de Curitiba, desculpando-se. "Isso aqui é a casa de um bebê e de dois cachorros, viu? Não reparem."
A sala já diz muito sobre quem é Mizanzuk. Além dos brinquedos de Nicolas e de suas duas cachorrinhas, Michaela e Lola, lá estão as estantes que guardam cerca de 2 mil livros. Há muita história em quadrinhos, literatura estrangeira, obras sobre religião. "Não sou um cara religioso, mas o assunto sempre me interessou", diz ele, que fez mestrado em Ciência da Religião na PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), de 2007 a 2010.
Há no cômodo também uma enorme televisão e quatro aparelhos de videogame, principal passatempo de Mizanzuk, especialmente em tempos de pandemia. Sempre à distância, é por meio dos jogos eletrônicos que ele mantém contato com alguns de seus melhores amigos em tempos de isolamento social, todo sábado, das 23h às 2h.
"O Ivan inventou isso de a gente jogar todo fim de semana, se reunir virtualmente. E ele é péssimo no Fifa [game de futebol]", disse Caio Corraini, fundador e diretor da Maremoto Podcasts, um dos melhores amigos de Mizanzuk. "O problema de jogar com ele é que ele para toda hora de jogar hora para atender o Nicolas, né? É seu jeitão. Meio obcecado."
A tal obsessão, aliás, torna Mizanzuk "insuportável" na produção de seus podcasts, disse Corraini. O amigo trabalhou na edição de alguns episódios do "Projeto Humanos". Segundo ele, para Mizanzuk, não há nada que esteja bom em sua primeira versão. "Sempre tem um detalhezinho para melhorar. É um tempo maior de pausa, uma trilha? Agora, o resultado final é outro, né? Ele mudou o mercado de podcasts no Brasil."
Anielle, a mulher de Ivan, confirma a obsessão do marido pelo trabalho. Lembra, porém, que essa característica é o que o faz ir realmente fundo em pesquisas sobre histórias que ele se propõe a contar. Tão fundo que surpreende até personagens da própria história.
Investigador incansável
O advogado Antônio Figueiredo Basto esteve envolvido na defesa dos acusados do assassinato do menino Evandro, em 1992. Recentemente, conheceu Mizanzuk pessoalmente, durante as gravações da série da Globo sobre o caso. Impressionou-se com o podcaster.
"Ele sabia mais do processo que eu, parecia um advogado falando", contou. "Tem uma capacidade investigativa impressionante. E mudou o final dessa história."
Mizanzuk, durante a produção dos podcasts sobre o "Caso Evandro", teve acesso a fitas com gravações que indicam que os acusados de assassinarem o menino em Guaratuba foram torturados para que assumissem a autoria do crime. Essas fitas, até então, eram inéditas. Com base nelas, Basto pretende pedir na Justiça uma revisão do caso para tentar reverter condenações baseadas nos depoimentos forçados dos processados.
Mizanzuk conta que a obtenção dessas fitas foi resultado de anos de trabalho e muita persistência. "De tanto olhar os processos, percebi que poderia haver uma chance de as fitas da tortura estarem com uma determinada pessoa", relatou, sem identificar a fonte. "Fui atrás e as fitas estavam lá, largadas. Aquela prova estava prestes a se perder para sempre. Uma história de injustiça poderia nunca mais ter sido comprovada."
Ivan é assumidamente progressista, comprometido com os direitos humanos. Disse que se interessa por crimes polêmicos porque eles são capazes de desnudar como erros da Justiça e da polícia podem arruinar a vida de pessoas inocentes.
Para Mizanzuk, essas histórias são um "reflexo do Brasil". Depois de escrever muito sobre teorias acadêmicas, integrar equipes de podcast sobre política, discutir abertamente o tema em redes sociais, ele entendeu que fazer uma apuração completa sobre casos que mobilizaram o país e recontar essas história de uma forma atraente é a melhor contribuição que ele pode dar à sociedade. É isso que o move.
"Ninguém vai lembrar de mim pelo que eu escrevi num artigo acadêmico, nem pelo que defendi num podcast de amigos", afirmou. "Agora, daqui a cinco anos, pode ocorrer outro caso de assassinato de criança por motivos supostamente macabros. Aí as pessoas vão lembrar do 'Caso Evandro' e exigirão uma apuração isenta."
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