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Tacos de beisebol com inscrição 'direitos humanos' são vendidos online

Taco com arame farpado e inscrição "direitos humanos"  - Reprodução/Facebook
Taco com arame farpado e inscrição 'direitos humanos' Imagem: Reprodução/Facebook

Marie Declercq

Do TAB

14/06/2020 04h04Atualizada em 21/06/2020 19h19

Um taco de beisebol chamou a atenção entre um símbolo associado ao neonazismo e cartazes com pedidos de intervenção militar ostentados por alguns dos manifestantes reunidos na Avenida Paulista em 31 de maio. Empunhado por uma mulher que, segundo relatos, usou o bastão para inflamar os ânimos durante o ato das torcidas organizadas contra Jair Bolsonaro, ocorrido no mesmo dia, o apetrecho se destacou pela inscrição "Rivotril". Mesmo depois que sua dona foi conduzida para longe das manifestações por um PM, o bastão não foi confiscado.

Não é difícil encontrar tacos de beisebol com a inscrição "Rivotril" (ansiolítico com efeito sedativo) à venda na internet, e existem diversas opções na mesma linha. Em sites como Mercado Livre, pelo menos quatro anunciantes oferecem bastões de madeira maciça — inclusive envoltos em arame farpado, com inscrições como "diálogo", "respeito" ou até "direitos humanos".

Nesse universo, boa parte dos modelos fazem referência a séries e filmes cujos personagens usam os bastões como armas — como Negan, de "The Walking Dead", e Harley Quinn em "Esquadrão Suicida". Mas por trás de tacos com a inscrição "direitos humanos" há um longo histórico de tortura e outras formas de violência, especialmente as cometidas por agentes do Estado em presídios e centros de acolhimento para menores infratores.

Anúncio do taco 'direitos humanos' em site de vendas - Reprodução - Reprodução
Anúncio do taco 'direitos humanos' em site de vendas
Imagem: Reprodução

Capitalização de histórias de tortura e violência

Nos anos 1990, Júlio Lancellotti, padre e coordenador da Pastoral Povo da Rua, recebeu uma denúncia dos menores internos da antiga Febem (hoje, Fundação Casa) na cidade de São Paulo. Os menores relataram torturas com surras de porretes e cassetes personalizados pelos próprios agentes da unidade. Segundo ele, os porretes foram customizados especialmente para a prática — e houve um cuidado em gravar, com um pirógrafo, inscrições como "ECA" (em referência ao Estatuto da Criança e do Adolescente), "direitos humanos" e alguns até com o nome de Lancelotti.

"Quando eles diziam que iam 'chamar o padre', traziam isso para torturar e bater neles. Em uma ocasião, descobri onde esses porretes estavam e, junto com uma amiga psicóloga, abrimos o armário e descobrimos um monte. Lembro de ter pego uma braçada e levado para o presidente da Febem na época, hoje falecido, que me dizia que era exagero as denúncias", relata ao TAB. "Era uma coisa bem premeditada, não era uma violência ocasional e esporádica".

Porrete era usado para torturar menores internados em um centro socioeducativo na Paraíba - Reprodução/MPF-PB - Reprodução/MPF-PB
Porrete era usado para torturar menores internados em um centro socioeducativo na Paraíba
Imagem: Reprodução/MPF-PB

Em 2010, no Espírito Santo, agentes de uma Unis (Unidade de Internação Socioeducativa) do município de Cariacica foram denunciados por torturas e maus-tratos contra menores, usando pedaços de madeira com inscrições "Pastoral do Menor". No ano de 2015, a história se repete. Após denúncias, o Conselho Nacional de Direitos Humanos encontrou porretes com a inscrição "direitos humanos" e "ECA" para torturar internos do Centro Educacional do Jovem (CEJ) no bairro de Mangueira, em João Pessoa (PB).

Com a repercussão desses casos, os porretes personalizados se tornaram uma forma de zombar de organizações e ativistas de direitos humanos. Aos poucos, foram aparecendo versões mais sofisticadas — como um taco ostentado nas redes sociais por um policial militar de Pernambuco, com a inscrição "cura gay". Em 2017, traficantes do Morro do Dendê, no Rio de Janeiro, gravaram um vídeo portando um taco escrito "diálogo" para destruir um centro espírita. Até parlamentares, como a deputada estadual Ana Carolina Campagnolo (PSL-SC) — que ficou conhecida ao pedir para que alunos mandassem vídeos denunciando professores que pregassem "doutrinas de esquerda" — , já postou uma foto exibindo um bastão com a inscrição "direitos humanos". A publicação foi apagada após denúncias no Facebook, em 2018.

Não é crime

Em 2019, o Mercado Livre tirou do ar anúncios de produtos semelhantes após denúncias de usuários, alegando que a venda de produtos que incitem a violência é expressamente proibida na plataforma. Menos de um ano depois, os anúncios seguem na plataforma.

Os tacos, mesmo vendidos com finalidade decorativa, podem ser enquadrados como armas brancas — cuja venda não é criminalizada e regulada pela legislação. Armas brancas possuem uma categorização ampla, porque qualquer instrumento pode se tornar uma. No Brasil, cerca de 9 mil mortes são cometidas por instrumentos desse tipo, que são comumente usados em conflitos interpessoais e em casos de violência de gênero, como o feminicídio.

"Realmente, existe uma simbologia dramática por trás desses tacos, pois estão associados a violência e abuso policial. Mas esse mero fato, por si só, não é criminoso", explica Roberto Portugal de Biazi, advogado criminalista, em entrevista ao TAB. Segundo Biazi, o artigo 19 da Lei de Contravenções Penais (decreto lei 3.688/41) estabelece como delito "trazer arma consigo para fora de casa ou da dependência desta sem licença de autoridade", cuja pena pode ser prisão simples — de quinze dias a seis meses —, multa ou ambos, dependendo do caso. No mais, o porte de uma arma branca não é criminalizado justamente por sua difícil categorização legal.

O criminalista afirma, no entanto, que o porte de um bastão personalizado com uma inscrição como "Rivotril" ou "direitos humanos", em uma manifestação, ganha contornos diferentes. "Quando você tem uma inscrição como 'Rivotril', ou, pior ainda, se tiver prego ou arame farpado, é evidente que ele carrega por si só a finalidade da violência. No caso da manifestação, passa uma carga de violência, no mínimo uma intimidação. O art. 5 da Constituição Federal assegura o livre direito de associação e manifestação, e um aspecto importante do inciso 16 diz que todos podem se reunir pacificamente sem armas em locais abertos, independentes de autorização."

Taco personalizado com arame farpado foi feito a pedido de um cliente, explica fabricante - Reprodução/Facebook - Reprodução/Facebook
Taco personalizado com arame farpado foi feito a pedido de um cliente, explica fabricante
Imagem: Reprodução/Facebook

O que alegam os vendedores

O TAB entrou em contato com as lojas virtuais que anunciaram os bastões. Um deles é Elton Mossate, de Santa Catarina, que começou a vender tacos de beisebol personalizados em 2017, inspirado na série "The Walking Dead". Nas várias opções de inscrições oferecidas na página de Facebook do artesão, há um modelo "direitos humanos", feito de madeira maciça e envolto com arame farpado. Segundo Mossate, o taco foi encomendado por um cliente.

"Creio que os meus clientes usem como um objeto de decoração", explica. "Acredito que o ódio e a violência estejam dentro da mente de quem pratica o mal contra outro ser humano. Dessa forma, uma pedra, chutes ou até socos são armas para esses delinquentes. Vale lembrar que, diariamente, pessoas são agredidas com facas, pedras ou pedaços de madeira, enfim, qualquer objeto pode ser uma arma para quem é criminoso", disse Mossarte, por e-mail.

A reportagem entrou em contato com mais três vendedores — um deles, uma loja de armas de fogo — e o site Mercado Livre. Até a publicação, não houve resposta.

A comercialização de tacos de beisebol com inscrições incitando violência é comum em sites de vendas - Reprodução - Reprodução
A comercialização de tacos de beisebol com inscrições incitando violência é comum em sites de vendas
Imagem: Reprodução

Simbologia torta

Para organizações da área, o escárnio dos tacos de beisebol é um símbolo de intolerância e reprodução perversa de discursos que se cristalizaram nas últimas décadas contra a atuação de órgãos e ativistas na defesa de diretos básicos, assegurados pela Constituição e tratados internacionais. Os instrumentos também são formas de evocar memes e piadas sobre direitos humanos para minorias e pessoas vulneráveis, geralmente definidas como "mimimi".

Ouvimos, todos os dias, essas ofensas ao 'pessoal dos direitos humanos'. Isso sempre existiu, mas o que está acontecendo agora é que as pessoas estão sendo incentivadas a isso -- e não o fazem mais em nome próprio. Fazem, agora, motivadas pelas próprias autoridades federais
Padre Júlio Lancellotti

Para Alexandre de Almeida, historiador, coordenador do grupo de trabalho História das Direitas e pesquisador associado do Observatório da Extrema-Direita, o bastão não é um símbolo específico, mas revela um pensamento preocupante, no sentido de minimizar casos graves de violações de direitos. "No caso, é transformar uma causa muito importante em um deboche, achar que é uma frescura, vitimização, e que 'uma boa surra resolve'. Se está escrito lá no taco de beisebol 'direitos humanos' e coisas do tipo, está caracterizado que a finalidade é a prática da violência como uma concepção educativa", diz.

A diretora-executiva do Instituto Sou Da Paz, Carolina Ricardo, acredita que a criminalização de instrumentos dessa categoria pode não ser a solução mais eficaz de enfrentamento, mas defende um alerta aos símbolos de intolerância. "É a forma como as pessoas interpretam os direitos humanos — um conceito que é, historicamente, resultado de uma luta de movimentos sociais por direitos de educação, saúde, direitos individuais, e acaba sendo interpretado como direito de bandido", explica Ricardo.

"Toda vez que se banalizam os direitos humanos, nós damos um tiro de morte nos nossos próprios direitos", observa Gabriel Sampaio, advogado e coordenador do programa de Enfrentamento à Violência Institucional da Conectas Direitos Humanos. "É como se a sociedade colocasse em xeque tudo que ela lutou para construir. Nenhum direito humano foi consagrado sem muita luta da sociedade e sem que houvesse muita opressão do parte do Estado, por parte dos poderes constituídos contra essa sociedade. Negar o direito de defesa à condição humana é sempre um risco para toda a sociedade. Todos nós podemos ser vítimas desse porrete. Basta estar do lado errado."