'Enforcada' por prédios, Capela dos Aflitos é herança negra na Liberdade
O nome faz jus à sensação claustrofóbica que o pedestre sente ao caminhar pela Rua dos Aflitos, no bairro da Liberdade, zona central de São Paulo. A rua é estreita, escura, cercada de prédios. Termina em uma pequena igreja com uma fachada desgastada pelo tempo e pela pressa da modernização vertical. Uma frase escrita no toldo da entrada surpreende: "Capela Nossa Senhora das Almas dos Aflitos, fundação 27 de junho de 1779". Mantido há mais de dois séculos pela peregrinação de devotos, o local carrega um legado sombrio nas fundações e paredes em taipa de pilão. O espaço sagrado resiste até hoje como um marco da história negra que fundou o bairro.
A origem do bairro da Liberdade foi quase esquecida nas últimas décadas, em meio às inúmeras lojinhas e restaurantes japoneses, chineses e coreanos que funcionam nas ruas adornadas com os postes vermelhos. De certa forma, o estado físico da Capela dos Aflitos, hoje simbolicamente "enforcada" por prédios, serve de exemplo perfeito ao apagamento histórico do passado escravocrata do país e de figuras negras.
No beco sem saída, até os postes vermelhos escondem a fachada da capela. "É uma tentativa de apagamento", resume Eliz Alves, 58, diretora da Unamca (União dos Amigos da Capela dos Aflitos), coletivo que luta pela reconhecimento histórico do local. O grupo se desdobrou para organizar uma festa junina na rua, a fim de arrecadar fundos para a restauração do prédio e chamar atenção para o Memorial dos Aflitos, sancionado em 2020 pelo ex-prefeito Bruno Covas.
Séculos antes de a Liberdade se tornar um ponto turístico de otakus, o bairro foi palco de inúmeras execuções em praça pública. No Largo da Forca, hoje conhecido como Praça da Liberdade, foram assassinados negros escravizados, indígenas e toda sorte de indesejados. Seus corpos suspensos eram exibidos para a plateia. Fora da forca, o destino final era o Cemitério dos Aflitos, um dos primeiros da cidade. O cemitério funcionou até meados do século 19.
Foi no Largo da Forca que a história de Francisco José das Chagas, o Chaguinhas, nasceu. O cabo do Exército foi condenado à pena de morte em 1821 por liderar a Revolta Nativista, que exigia o pagamento dos salários atrasados ao 1º Batalhão de Caçadores, na cidade de Santos. Em 20 de setembro, perante uma multidão, Chaguinhas foi executado três vezes. Isso porque, nas duas primeiras, a corda se rompeu. Na terceira, o cabo seguiu pendurado, mas ainda tinha sinais vitais. Sob gritos de "Liberdade! Liberdade!", Chaguinhas foi morto a pauladas e enterrado no cemitério próximo à Capela dos Aflitos, local onde passou sua última noite preso.
Chaguinhas não é personagem dos livros de história, não ganhou monumentos e nem nome de praça. Mas o bairro foi nomeado em sua homenagem. A Capela dos Aflitos, desde então, é destino de inúmeros devotos que compram velas e fazem pedidos ao santo popular, batendo três vezes em uma porta de madeira.
São os devotos de Chaguinhas, ativistas negros e indígenas e simpatizantes que mantêm o local em funcionamento. Fora a fé, o local também atrai curiosos pela história macabra e foi incluído em passeios turísticos como o "O Que Te Assombra?".
Rastros arqueológicos
Dar continuidade à história da capela não é uma tarefa fácil, mas parece não intimidar Eliz Alves. Ao lado de outros voluntários, ela cuida desde 2022 da zeladoria da capela. Todo dia um membro se encarrega de abrir as portas da capela, receber devotos e cuidar da manutenção. "A capela sobrevive basicamente da venda de velas", explica Alves, enquanto se divida entre a entrevista e as tarefas burocráticas da Unamca, após a missa da última segunda-feira (27), que celebrou os 243 anos do local.
"Chamamos a Eliz de 'gigantinha', porque ela é pequena mas é capaz de tudo", revela Aurea Maria Neves, 67, aposentada do Tribunal de Justiça e parte do Unamca. Ainda que seja muito dedicada à causa, a diretora dispensa o apelido carinhoso. "Sou mais o Wilson Mano, do Corinthians. Jogo em qualquer posição que me colocarem", diverte-se.
A história de Alves cruzou com a da Capela dos Aflitos na infância, quando vinha com a mãe fazer exames médicos no bairro. "Sempre me senti muito bem aqui", conta a diretora. "É diferente da Igreja dos Enforcados [na frente da Praça da Liberdade]. Nunca gostei muito de frequentar ali, não me sinto confortável. É tudo muito escuro."
Alves, que nunca deixou de frequentar a capela, acabou acompanhando a deterioração do prédio. "As rachaduras apareceram com o tempo e nada foi sendo feito. Houve até um incêndio em 1994."
Em 2018, Alves e outros frequentadores se uniram quando a construção de um shopping no terreno vizinho comprometeu as estruturas da capela. Mais rachaduras surgiram e pedaços da fachada da capela começaram a cair. Foi assim que o grupo se organizou para tentar negociar algum tipo de solução para o lugar.
"Na época, o engenheiro da obra disse que a construção poderia atrair mais interesse para a capela", recorda-se. "Mas, quando perguntamos para ele se a entrada do shopping seria na Rua dos Aflitos, descobrimos que a entrada serviria de carga e descarga do shopping. Vê se pode uma coisa dessas."
Percebendo que a discussão não iria adiante, o coletivo fez uma denúncia ao Departamento de Patrimônio Histórico sobre a irregularidade das obras. Foi então que a história da capela falou mais alto: após uma inspeção, foram encontradas nove ossadas e objetos no terreno. A obra do shopping foi embargada, mas, o projeto de restauração do prédio ainda aguarda aprovação pelo Condephaat e Conpresp para poder captar recursos.
Lastro perdido
Quando a descoberta do sítio arqueológico foi noticiada na TV, o pesquisador Wesley Vieira, 42, resgatou o seu entusiasmo infantil com a arqueologia e decidiu se envolver com a Capela dos Aflitos. Formado em Pedagogia pela UNESP, Vieira começou em 2020 um projeto de mestrado na FFLCH - USP (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas) sobre o resgate da memória negra em São Paulo.
Atualmente, Vieira é um dos voluntários encarregados de abrir a capela e de receber alunos de diversas universidades e escolas. Nessas ocasiões, dá aulas sobre o local. "Abrir a capela todos os dias tem uma questão prática, que é de evitar a deterioração do lugar", explica o pesquisador.
O voluntariado corre junto com sua pesquisa, a fim de encontrar o máximo de informações e registros. Não é tarefa simples. "As fontes primárias são muito escassas. Não sabemos os nomes e nem o número de pessoas que foram enterradas aqui", afirma. "As informações estavam sob o poder da Igreja Católica, que não demonstrou interesse na época em manter esses registros."
Nas pesquisas, Vieira descobriu que a fachada da capela não é a original — que despencou em 1939. Do lado de dentro, entalhes originais seguem presos nas paredes e, além do altar de Santo Antônio Categeró, está tomado de cupins. Peças antigas de santos também foram retiradas da capela e hoje estão no acervo do Museu de Arte Sacra.
"Wesley foi um milagre", comenta Eliz sobre o envolvimento do pesquisador na Unamca. "Ele sempre dá um jeito de receber as pessoas aqui." Toda a pesquisa levantada por Vieira foi transformada em um guia gratuito de visitação.
Lentidão burocrática
A preocupação do coletivo e dos frequentadores é se a capela resistirá à deterioração, a tempo de o Poder Público reconhecer o projeto de restauração e iniciar a construção do Memorial dos Aflitos. O prédio foi tombado oficialmente pelo Condephaat em 1978, após um processo de dois anos, mas nada foi realizado desde então.
Eliz conta que passou meses tentando travar um diálogo com a Cúria Metropolitana sobre o estado da capela. "Houve resistência até para marcar uma reunião", relembra. A Cúria aprovou o projeto de restauração em janeiro de 2022. A Arquidiocese de São Paulo não respondeu ao pedido de entrevista até a publicação desta reportagem.
Há também uma resistência velada. Chaguinhas não foi canonizado pela Igreja Católica e não pode ser chamado de santo nos panfletos e em qualquer informativo vinculado à capela. No site da Arquidiocese, não há menção sobre o santo popular.
Fora a venda das velas, o coletivo levanta fundos fazendo eventos culturais, "centavo por centavo", afirma a diretora. "A burocracia é frustrante, mas já fizeram tanta coisa de qualquer jeito aqui que o melhor que podemos fazer é passar pelo processo corretamente."
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