'Todos são bem-vindos': museu de bruxaria e magia atrai visitas em SP
Bruxas e bruxos viveram a perigo no início da Idade Moderna, época em que dezenas de milhares de homens e, principalmente, mulheres, foram perseguidos, julgados e mortos por protestantes e católicos na Europa. A campanha era tamanha que na época havia a fake news sobre praticantes de magia serem amantes de Satã e comedores de bebês recém-nascidos. A sorte é que o curso da História tende a amenizar certos temores e hoje é cotidiano, quase banal, encontrar um Museu de Magia e Bruxaria montado em uma casinha em plena Vila Mariana, bairro da zona sul de São Paulo.
O museu abriu as portas em 2021, mas fechou algumas vezes por causa da pandemia. Para quem conhece a região, é impossível não sorrir ao ver o museu, onde também funciona um santuário da religião Wicca, dividir parede com o Consulado da Bolívia e servir de rota de passagem para famílias e idosos que vivem por ali.
"Todos são bem-vindos", resumiu ao TAB Claudiney Prieto, 45, bruxo e autor de um dos livros mais importantes sobre Wicca. O museu foi montado com a ajuda da comunidade praticante de sua religião.
Além das salas lotadas de objetos curiosos relacionados à bruxaria e ao ocultismo, há também um santuário aberto e um jardim em estilo oriental, montado para receber toda sorte de visitante — de praticantes de Wicca mais fervorosos a curiosos que querem ver de perto uma das únicas religiões do mundo a crer que a criadora de tudo é uma Deusa, no feminino, e não um deus.
O espaço é convidativo: além de a casinha ser muito simpática, há também um trailer na porta vendendo quitutes. Uma placa anuncia a coxinha de jaca como carro-chefe entre as guloseimas vendidas pelos bruxos brasileiros. Nos finais de semana, os rituais são abertos para praticantes e visitantes.
"É como se fosse uma igreja, mesmo", define o fundador.
'Não recebemos reclamações'
Foi durante o isolamento que Prieto teve a ideia de tornar público seu acervo. Temendo receber a alcunha de acumulador, passou a rascunhar a ideia de abrir um espaço dedicado à bruxaria. A inspiração foi o primeiro museu do gênero, fundado em 1951 na Ilha de Man, território pertencente ao Reino Unido que, até fechar, em 1973, contribuiu para o fortalecimento dos mitos e folclores locais.
Nas quase três décadas dedicadas integralmente à Wicca, Prieto viajou o mundo e coletou objetos, artefatos e presentes recebidos de bruxos de diversos países. Para não deixá-los empoeirados em casa, compartilhou com a comunidade sua ideia de tornar tudo aquilo público. Para sua surpresa, o financiamento coletivo que criou foi um sucesso e, em fevereiro de 2021, o museu saiu do papel.
A exposição dos objetos e imagens explica de forma educativa a criação da religião Wicca, seus preceitos e características. Nas salas e corredores, o visitante pode escanear os QR Codes na parede para ouvir e ler materiais auxiliares, caso se anime.
Perguntado sobre a possibilidade de o museu ter causado algum incômodo na vizinhança, Prieto responde tranquilo. "Não recebemos qualquer reclamação", esclarece. "O jornal do bairro anunciou a abertura do espaço na época. Até fizemos um 'abraçaço' para impedir que fosse tirada uma árvore lindíssima na frente de casa. Quem mora na rua adorou".
Numa época em que política e religião estão cada vez mais misturadas, não houve qualquer demonstração de intolerância contra o espaço. Prieto acredita que essa seja uma característica bastante brasileira.
"Somos o maior país católico do mundo, mas só de fachada. A verdade é que somos muito místicos", explica o bruxo. "Tem católico que toma passe, evangélico que se identifica com os kardecistas. Somos um conglomerado de vários povos e espiritualidades. As pessoas ainda se dizem católicas por uma questão social. Em vida, o suporte espiritual é encontrado em outras crenças."
Não é raro encontrar imigrantes bolivianos que, resolvendo burocracias no consulado, encontram uma brecha de tempo para visitar o santuário, que conta com uma estátua de Pachamama, deidade máxima dos povos indígenas quechua.
Bruxos conectados
A bruxaria entrou na vida de Claudiney Prieto quando ele era adolescente. Foi obra do acaso, ou da Deusa, que o colocou na festa de casamento dos primos ao lado de um casal britânico, que passou a festa comentando sobre a existência de Wicca e a prática da bruxaria. Aquela conversa permaneceu na cabeça do jovem de 16 anos e, duas semanas depois, ele estava batendo na porta do casal para saber mais sobre a religião. Até então, seu contato com a religiosidade era feito por meio da família, praticante do candomblé. "Era uma mistura de misticismos, algo bem brasileiro", descreve ele.
Antes do casal britânico, a bruxaria já estava pairando sobre Prieto quando aos 12 anos ele leu o livro "Brumas de Avalon" de Marion Zimmer Bradley. Dividido em quatro volumes, a obra conta a história da formação da Távola Redonda pelos olhos das mulheres, especialmente Morgana, uma bruxa poderosa que protagonizou momentos decisivos com o Rei Arthur, seu irmão por parte de mãe, e outros cavaleiros. "Senti que estava voltando para casa quando me conectei com a bruxaria", relembra o escritor.
Desde que conheceu o casal britânico, nunca mais olhou para trás. Prieto passou a estudar o tema, procurando leituras na internet, que na época engatinhava. "Bruxos sempre foram e ainda são muito conectados à internet", explica. Dos estudos, formou um grupo — conhecidos na Wicca como "coven"— para discutir e desenvolver práticas de magia, e começou a falar mais publicamente sobre a religião.
"Na época em que comecei, não era ainda um movimento estruturado. As coisas eram muito incipientes, orgânicas. Procurei pessoas que queriam estudar isso, fazer um grupo de estudos, e isso foi crescendo. Em 1998, fundei a Abrawicca (Associação Brasileira Wicca), uma grande porta para que a gente encontrasse pessoas que estavam perdidas", afirma.
'Sim, somos bruxos de verdade'
Wicca é uma religião pagã moderna criada em 1954 pelo britânico Gerald Gardner (1884-1964), estudioso responsável por ressurgir e reinventar práticas pagãs ocidentais. Sua estrutura é muito diferente do que conhecemos do catolicismo, pois não possui uma figura principal e é descentralizada, espalhada entre pequenas comunidades e grupos. A teologia varia de acordo com suas vertentes, mas acredita-se numa relação pacífica com os cinco elementos da natureza e também no dualismo, onde tudo que existe tem seu oposto complementar.
Homens e mulheres ocupam o mesmo grau de importância nos rituais e práticas. Entre as vertentes principais — a gardneriana e a Wicca norte-americana — a última é a responsável pela formatação mais religiosa da prática.
Ainda que filmes e livros de fantasia e terror tenham contribuído para essa imagem, a prática de feitiços não é um elemento principal da Wicca.
A curiosidade em relação aos wiccans cresceu substancialmente nos anos 1990, com o revival new age na década do misticismo. No caldeirão místico entravam desde os programas de TV do espalhafatoso Walter Mercado e suas previsões astrológicas, a magia dos anjos de Mônica Buonfiglio, até a febre das lojas Além da Lenda e seus indefectíveis duendes de biscuit.
Prieto fez parte desse boom místico, ainda que tenha ressalvas quanto às banalizações do período. Mas foi durante essa época que passou a escrever livros como "Wicca: A Religião da Deusa". A obra foi uma das primeiras dedicadas ao tema a ser publicada no país por um autor nacional, e adaptou práticas e costumes, outrora ligados ao calendário e realidade europeia, ao Brasil.
Mesmo com a queda da onda mítica dos anos 1990 e começo dos anos 2000, Prieto seguiu dedicado a agregar entusiastas da religião. Em 2010, organizou a primeira edição da Mystic Fair no Brasil, hoje uma das maiores da América Latina.
A curiosidade popular sobre o tema não cessou. Em 2018, o escritor participou do programa de TV "Todo Seu", de Ronnie Von, com outra bruxa, Claudhia Issa. A dupla respondeu pacientemente às perguntas do apresentador. "Sim, somos bruxos de verdade", declarara no início da entrevista temática sobre a importância dos Dias das Bruxas para eles.
'É uma religião política'
No currículo místico do bruxo também há entra sua ordenação — Prieto é o único homem ordenado na Wicca Diânica por Zsuzsanna Budapest, escritora húngara muito influente na segunda onde feminista dos EUA. Fundadora do primeiro coven só de mulheres ela se dedicou a escrever sobre espiritualidade ligada ao feminismo.
"Foi coisa da Deusa, não tem outra explicação", conta Prieto. "Eu a trouxe para o Brasil para uma conferência e estava com muito medo de trazê-la, porque ela sempre foi muito radical e sempre dizia que não havia lugar para homens na bruxaria. Em determinado momento, ela se virou e falou para mim que entendeu que a Deusa gostaria que ela desse a linhagem para mim."
Ainda que a religião seja vista como algo majoritariamente feminino, Prieto afirma que a presença de homens é tão substancial quanto a de mulheres. Além disso, há uma abertura natural da Wicca a grupos marginalizados.
"Há uma presença grande de gays e lésbicas, de pessoas de esquerda. É uma religião transgressora, contracultural, que traz uma nova reflexão sobre coisas antigas. Wicca é receptiva a todas as pessoas que não encontram lugar nas religiões mais convencionais e oficiais. Aqui todos são bem-vindos, as pessoas são acolhidas."
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