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'Papai, o que é aquilo?': drones sobrevoam aldeias indígenas no Pará

Um dos drones avistados na Terra Indígena Mãe Maria, no Pará - Terra Indígena Mãe Maria
Um dos drones avistados na Terra Indígena Mãe Maria, no Pará Imagem: Terra Indígena Mãe Maria

Leo Milano e João Paulo Guimarães

Colaboração para o TAB, de Santarém e Bom Jesus do Tocantins (PA)

01/08/2022 04h01

"Papai, o que é aquilo ali?", a garota perguntou a Katejupre, 33, morador da aldeia Akroti, na Terra Indígena Mãe Maria, em Bom Jesus do Tocantins (PA). Eram 20h, Katejupre se levantou da rede para observar o céu e, no alto, viu uma luz diferente. "Era um drone, pertinho de nós. Rapaz, fiquei chateado, viu. Tipo, isso é invasão de privacidade da gente, né?", diz.

Mãe Maria abriga cerca de 710 indígenas do povo Gavião, distribuídos em 20 aldeias. É uma pequena ilha de floresta de aproximadamente 62.500 hectares cercada por propriedades rurais, em uma das regiões mais desmatadas do Pará.

Desde dezembro de 2021, muitos indígenas relatam que avistaram drones nos arredores. Primeiro, era esporádico, um ou outro. Entretanto, a partir de junho, o medo se alastrou nas aldeias: diariamente, dizem, drones de diferentes tamanhos e tipos são vistos com o chegar da noite — dois deles foram registrados em vídeos, aos quais o TAB teve acesso.

Na primeira vez que viu um dos drones, Katejupre pegou o carro e por uns 8 km seguiu o dispositivo, que de repente foi embora, desaparecendo na escuridão, como se tivesse notado que fora descoberto.

A distância é maior do que a da maioria dos drones mais simples, voltados para lazer, é capaz de percorrer com segurança, segundo operadores profissionais consultados pela reportagem — no mercado nacional, drones de mais de 25 kg para empresas de monitoramento e prospecção precisam de autorização de voo da Anac (Agência Nacional de Aviação Civil).

Indígenas tentaram derrubar os drones com flechas, sem sucesso - João Paulo Guimarães/UOL - João Paulo Guimarães/UOL
Indígenas tentaram derrubar os drones com flechas, sem sucesso
Imagem: João Paulo Guimarães/UOL

Caçando drones

Por volta das 3h da madrugada de um sábado de julho, Hityiti, 31, estava voltando de carro de uma confraternização em outra aldeia da Mãe Maria. Viu um drone na BR-222, rodovia que corta o território dos Gavião. Conta que a aeronave o notou e passou a persegui-lo. Assustado, ele acelerou, mas foi seguido até a entrada de sua aldeia. Desde então, já chegou a avistar três drones simultaneamente.

Ana Maria Brito, 55, também tem vivido dias de ansiedade. "Antigamente, meu filho passava a noite na espera para caçar macacos. Agora, passa a noite na guarita, tentando derrubar drones", conta ela, mãe de Aiteti, 29, um jovem documentarista e integrante da brigada que combate incêndios no território.

Ana conta que as crianças já não se sentem mais à vontade para brincar à noite, e as mulheres temem andar seminuas, hábito comum durante as festas deles. Uma vez, por volta das 17h, quase 18h, eles estavam indo para a cidade vizinha e viram um drone "nem muito grande, nem muito pequeno, que tinha formato de avião", lembra Aiteti. "Quem usa drones em formato de avião?", questiona.

Aiteti aprendeu a fotografar aos 14 anos, e há dois anos documenta para o WWF Brasil ações de combate a incêndios na região. Nos últimos tempos, ele vem tentando registrar os drones sobrevoando o território, mas diz que é difícil com o equipamento que possui. Relata que, em alguns momentos, os drones estavam entre 5 e 10 metros de distância deles.

"Toda vez é em cima da aldeia e das casas, nunca em cima da mata", diz.

Eles postaram vídeos dos drones na internet e indígenas de outros estados relataram que também estavam avistando drones com frequência sobre suas aldeias, conta.

"A gente já passou um bocado de coisas aqui, por causa desses drones", diz o cacique Xàprãmti, 32. Todos estão alertas, destaca ele, especialmente ante o atual governo.

Segundo um dossiê publicado pelo Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos) e pela Ina (Indigenistas Associados), diversos indigenistas foram substituídos por profissionais questionáveis — mais precisamente, por 17 militares, três policiais militares, dois policiais federais e seis profissionais sem vínculo anterior com a administração pública. Bruno Pereira, por exemplo, foi substituído por um missionário evangélico sem experiência na área.

Aiteti Parkatejê fez as primeiras denúncias sobre os drones na região - João Paulo Guimarães/UOL - João Paulo Guimarães/UOL
Aiteti fez as primeiras denúncias e tenta registrar drones sobrevoando a região
Imagem: João Paulo Guimarães/UOL

De olho nas jazidas

Os indígenas denunciaram o "assédio" de drones ao Ministério Público, ao governo do Pará e à Funai (Fundação Nacional do Índio). No fim de junho, a SEGUP (Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Pará) enviou policiais civis até Mãe Maria. Segundo os indígenas, os policiais constataram a presença de drones, mas não fizeram nada, pois o aparelho de bloqueio de sinal levado pela polícia era inferior à tecnologia das aeronaves.

Procurada pelo TAB, a SEGUP diz que a área é de competência federal, mas que ainda assim enviou investigadores à terra indígena. A Funai não respondeu.

A Anac diz que a operação de drones no Brasil é livre para equipamentos que operam até 120 m de altura e a distância de 30 m de pessoas que não concordaram com tal aproximação — o que quer dizer que os drones avistados não poderiam estar nas aldeias indígenas tão perto quanto estavam. "Operadores que descumpram as regras podem ser penalizados conforme artigos 33 e 35 do Decreto-Lei de Contravenções Penais e artigo 132 do Código Penal", informa a agência.

Os indígenas têm hipóteses para a presença dos drones. Uma delas é a atuação de quadrilhas que querem assaltar aldeias e cidades. Outra, a maior, é o interesse nos minérios presentes.

O SIGMine (Sistema de Informações Geográficas de Mineração), da ANM (Agência Nacional de Mineração), indica que há processos ativos no entorno da terra indígena, isto é, foram feitos pedidos de prospecção de minérios, o que sinaliza um interesse de explorar os recursos da região — atualmente, ali isso é proibido por lei.

Estrada de ferro de Carajás, que cruza o lado sul da Terra Indígena Mãe Maria - João Paulo Guimarães/UOL - João Paulo Guimarães/UOL
Estrada de ferro de Carajás, que cruza o lado sul da Terra Indígena Mãe Maria
Imagem: João Paulo Guimarães/UOL

A Terra Indígena Mãe Maria tem parte de sua história atrelada a Carajás, maior jazida de minério de ferro do mundo, com concentração de ouro, estanho, bauxita, manganês, níquel e cobre.

Desde a década de 1970, a exploração das jazidas de Carajás levou à instalação de linhas de transmissão de energia elétrica e uma ferrovia, que cruzam o território dos Gavião. A Eletronorte, estatal subsidiária da Eletrobrás, é a responsável pelas linhas de transmissão e a Vale (antiga Companhia Vale do Rio Doce) explora as reservas de Carajás.

Hoje, segundo os próprios indígenas da Terra Indígena Mãe Maria, o relacionamento deles com as duas empresas é bom. Entretanto, eles chegaram a suspeitar que a Eletronorte e a Vale estariam monitorando as linhas de transmissão e a ferrovia, respectivamente.

A Eletronorte não respondeu o contato da reportagem; já a Vale afirmou que não executa nenhum tipo de trabalho noturno com drones e, acrescentou, "quando há necessidade de atividades com uso do equipamento são previamente informadas as lideranças indígenas".

Os Gavião consideram os sobrevoos sobre a Terra Indígena Mãe Maria "uma absurda violação de direitos", um assédio, uma invasão — e uma ironia cruel para um povo que tem nome de ave ser vigiado, como eles dizem, por "pássaros de metal".