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'Imbrochável': New York Times incorpora o vocabulário do governo Bolsonaro

O presidente Jair Bolsonaro, ao lado do empresário Luciano Hang, no desfile de 7 de Setembro, em Brasília - Alan Santos/PR
O presidente Jair Bolsonaro, ao lado do empresário Luciano Hang, no desfile de 7 de Setembro, em Brasília Imagem: Alan Santos/PR

Edison Veiga

Colaboração para o TAB, de Bled (Eslovênia)

11/09/2022 04h01

Se os jornalistas brasileiros que cobrem o governo federal passaram a ter, com Jair Bolsonaro, uma rotina dificultada por xingamentos do próprio presidente e perseguições virtuais da militância fanática, os correspondentes estrangeiros que atuam no Brasil ganharam ainda uma outra pedra no sapato: traduzir, adaptar e explicar aos seus públicos o recorrente vocabulário que é a tônica do entorno presidencial — no caso, com um léxico pouco afeito aos protocolos do cargo.

E a cada descompostura vernacular a internet vai à loucura imaginando como os tradicionais veículos do exterior vão noticiar. Considerado o principal jornal do mundo, The New York Times fica no centro da curiosidade. No perfil do twitter New New York Times (@NYT_first_said), as menções brasileiras têm sido campeãs de repercussão, não raramente, desencadeando memes e provocações políticas.

No último 7 de Setembro, quando se celebrou o bicentenário da Independência do Brasil, o perfil registrou duas menções inéditas em língua portuguesa — ou, ao menos, no dialeto presidencial brasileiro: "motociata" e "imbrochável". Esta última, uma verdadeira campeã de reações.

Em 24 horas, o post havia engajado mais de 500 comentários, provocado 7.000 retweets e colecionado quase 50 mil likes.

O autor da proeza de emplacar esses termos tão, digamos, arrojados nas páginas e no site do tradicional diário é o jornalista Jack Nicas, norte-americano de Massachusetts que é o responsável pela cobertura brasileira do veículo desde janeiro.

Duas semanas antes, ele já havia encarado o desafio de incluir, em seu texto, o termo "tchutchuca do centrão", ao relatar o incidente ocorrido com o youtuber que jocosamente dirigiu-se ao presidente utilizando a expressão.

Em todos os casos, o profissional não somente precisa dar um jeito de traduzir o termo heterodoxo mas também dedica um ou dois parágrafos usando a nomenclatura original e contextualizando-a, explicando para o leitor internacional.

Linguagem do presidente

Ao TAB, Nicas comenta que "algumas vezes a própria palavra se torna parte da história". "Isso aconteceu tanto no episódio da 'tchutchuca' quando no do 'imbrochável'. Nesses casos, decidi que era importante incluir a palavra original", ressalta. "Isso se aplica principalmente quando a palavra é difícil de traduzir. Assim, dizemos claramente aos leitores que há essa dificuldade de tradução e, em seguida, fazemos nosso melhor para traduzi-la."

Em seu próprio perfil no Twitter (@jacknicas), ele tem explicado um pouco sobre esses processos. E admite que muitas vezes recorre a especialistas para chegar à melhor expressão — no caso do "imbrochável", contou com a ajuda da tradutora Flora Thomson-DeVeaux, norte-americana radicada no Brasil que tem se dedicado a verter para o inglês as obras de Machado de Assis (1839-1908).

É uma realidade que ele não esperava encontrar no dia a dia. "Fiquei impressionado com a linguagem informal do presidente, mas sei que isso faz parte de sua marca política e o ajuda a se tornar mais próximo do brasileiro médio", analisa ele. "Lembro-me de assistir à sua entrevista no podcast Flow e de ficar surpreso com a frequência com que ele dizia 'porra'."

Mas não é apenas o círculo bolsonarista que rende ineditismos ao repertório do New York Times. Quando noticiou a morte precoce da cantora brasileira Marília Mendonça (1995-2021), o obituário lançou mão do termo "feminejo" para explicar o movimento musical da qual ela era protagonista.

O jornalista Nicas orgulha-se de ter emplacado a expressão "pé-sujo" em uma reportagem publicada por ele sobre o cenário dos botecos cariocas.

Questões de decoro

Nicas diz que, no caso do "imbrochável" puxado por Bolsonaro no 7 de Setembro, "parecia que grande parte do país também ficou surpreso que o líder da nação entoasse que ele nunca falha sua ereção, em frente à uma multidão durante as comemorações do bicentenário do Brasil, estando ele no palco ao lado de vários líderes governamentais e militares".

Na matéria publicada pelo jornalão norte-americano, a cena rendeu três parágrafos. Primeiro, Nicas enfatizou que Bolsonaro "prosseguiu com a estratégia de fazer com que sua masculinidade seja parte central de sua campanha". Foi quando ele reproduziu a fala do presidente sobre a importância de que um homem se case "com uma princesa" — e beijou a primeira-dama, Michelle.

A matéria também menciona o coro de "imbrochável". Nicas então definiu o quase impublicável termo como uma "levemente vulgar palavra em português que pode ser traduzida mais ou menos como 'never limp'". Então, o último parágrafo da sequência menciona que o próprio Bolsonaro entoou "never limp" — e o texto repete o coro, três vezes.

Quando estava fechando o texto, Nicas decidiu consultar a opinião da tradutora Thomson-DeVeaux. "Em um primeiro momento, ele estava pensando em traduzir 'imbrochável' por 'virile', que me pareceu muito mais solene e erudito do que o original", conta ela, ao TAB. "Também entendo que haja questões de decoro no New York Times, e não daria para emplacar uma tradução explicitamente vulgar."

A especialista explica que, na hora, pensou que qualquer tradução do termo "deveria refletir a verdade incômoda de que um grito de guerra feito justamente para afirmar a virilidade tenha a palavra 'brocha' bem no meio dele". "É o desmentido imediato — como diria Shakespeare, 'the lady doth protest too much'. Pensei que seria importante ter uma palavra bem 'brochante' em inglês, e aí sugeri 'never limp' — uma frase que brocha no final..."

Submissão ao establishment político

O jornalista conta que a tradutora também o auxiliou no caso da "tchutchuca do centrão". Para contextualizar "tchutchuca", ele usou dois parágrafos em que explicou as raízes angolana e tupi do termo e citou o funk do Bonde do Tigrão. Por fim, cravou que, nesse contexto, significaria algo como uma "mulher submissa".

Centrão, por sua vez, ele explicou como sendo o "establishment político".

Além de Thomson-DeVeaux, Nicas conta que tem pelo menos outros quatro conselheiros no que tange à língua portuguesa: o linguista Andrew Nevins, os intérpretes Ivan Farah e Gustavo de Freitas Santos, e a colega jornalista Lis Moriconi.

Acostumada aos desafios de verter uma obra de uma língua para a outra, Thomson-DeVeaux acredita que o enfrentado por seu conterrâneo aqui no Brasil é semelhante àquilo encarado por qualquer correspondente em país de língua estrangeiras.

"O que faz a diferença aqui é que você tem um grande público brasileiro que consome mídia em inglês. Então existe um interesse maior justamente nesses desafios: uma 'plateia' para o tradutor, digamos assim", argumenta. "Particularmente, acho saudável. Em outro momento, essas palavras mais complicadas provavelmente seriam glosadas ou parafraseadas. Certamente, não chamariam tanta atenção. É sempre bom que o exercício da tradução seja visível e presente, e que exista um debate saudável a respeito das soluções possíveis."