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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

No 7/9, viúvos da ditadura se encontram no mito do presidente 'imbrochável'

Bolsonaro durante discurso do Sete de Setembro -  O Antagonista
Bolsonaro durante discurso do Sete de Setembro Imagem: O Antagonista

Colunista do UOL

08/09/2022 04h01

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O golpe de 64 surgiu no meio de uma numeralha aparentemente aleatória, como numa cartela de bingo, pouco antes de Jair Bolsonaro seguir para o desfile do bicentenário da Independência, em Brasília.

"O Brasil já passou por momentos difíceis, mas por momentos bons, 22 [revolta tenentista], 35 [intentona comunista], 64 [golpe militar], 16 [impeachment de Dilma Rousseff, do PT], 18 [eleição presidencial] e agora, 22. A história pode se repetir, o bem sempre vence o mal."

O jogo de probabilidade ficava ao gosto dos fregueses — e, não se enganem, eles eram muitos com suas camisas verdes e amarelas ao redor do palco principal da festa.

Ao embaralhar as datas e terceirizar aos interlocutores a interpretação da farsa histórica, Bolsonaro deixava no ar quais dos eventos listados eram "difíceis", quais eram bons e quais poderiam se repetir.

No limite, poderia estar falando de sua vitória nas urnas em 2018. Poderia se referir apenas, malandramente, ao seu número de legenda. Como poderia estar chacoalhando os ossos do regime autoritário para lembrar aos súditos o que deve acontecer em caso de desobediência em outubro.

Já tradicional no calendário bolsonarista, o 7 de Setembro se tornou um microcosmos da mitologia que une todos os desejos de retrocesso em uma mesma praça.

Bolsonaro desfila em 24 horas tudo o que ajuda a manter de pé, aqui sem trocadilho, a crença de que estamos diante de uma figura moral e ética, quase divina, mais ereta do que de fato é — e não uma figura política vacilante, desconfortável quando confrontada, irritada quando questionada, e que precisou abrir as torneiras do orçamento secreto para garantir a própria sobrevivência e desbaratar o medo de responder, como um adulto, por atos, palavras e omissões.

A memória que Bolsonaro evoca em eventos do tipo se confunde com as figuras que o cercam. Não tem ninguém ali, dessa vez com exceção do convidado de honra, o presidente da antiga metrópole, Portugal, que não suspire com as memórias desbotadas do regime militar. Os anos de chumbo, dos coturnos, da força pela força, do destino inescapável em direção à ordem e ao progresso.

É como se, num deslocamento de projeção, a lembrança desbotada dos anos da juventude se confundisse com os bons tempos em que o Brasil era supostamente guiado por homens (sim, só homens) sérios, rígidos, retos e inflexíveis, cujos herdeiros mantêm agora a espinha ereta à base de próteses penianas e comprimidos de Viagra adquiridos com dinheiro público.

Bolsonaro — um militar indisciplinado que se abrigou na política para não ser expulso do Exército — e o delírio patriótico alimentado pelos militares se encontram na mesma esquina dos que se viram acossados pelos novos tempos, em que instituições amadurecidas demonstram indisposição em calar e obedecer por mais 21 anos. Onde já se viu tamanha falta de apreço à autoridade?

O reacionarismo expresso em cartazes e bandeiras nas passeatas revela um misto de desprezo e assombro com um mundo em busca de consensos pelas vias democráticas, nas quais quem calava e obedecia até outro dia agora escolhe o seu assento e pede um lugar ao sol. O ranço da turma com as mulheres que fogem ao figurino que delas se espera é emblemático.

Daí o apelo à firmeza de outros tempos em que um falava, outro obedecia, e que oposição e contrapontos eram consertados na chinelada.

Bolsonaro, em sua trajetória atribulada em direção à Presidência, sonha em representar essa volta ao mundo das pílulas douradas em poucos dias até a eleição. Um mundo em que lugar de mulher era na posição de enfeite, como princesas escaladas para levar os maridos e outras figuras de autoridade, quase todas masculinas, ao paraíso dos bons tempos que podem, sim, se repetir.

Não é à toa a associação dessa projeção de potência sob ameaça (caso os adversários ousem vencer uma disputa nas urnas) a um corpo político e literal que não falha, que não chora nem admite frescura e mimimi (mesmo diante da morte), que não teme a morte, que só deixa o poder preso, morto ou vitorioso. E que não brocha.

Não parece ser um acaso que o pedido de loas ao figurino "imbrochável" aconteça poucas semanas após espernear em público ao ser chamado de "tchutchuca", um adjetivo feminino. Primeiro, por um apoiador arrependido. Depois, por uma adversária.

Como resumiu, em seu perfil no Twitter, o jornalista e comentarista da GloboNews Octavio Guedes, não foi o coração de D. Pedro, tirado do descanso eterno em sua Portugal para viajar com honras de chefes de Estado por aqui, o destaque das comemorações. Em vez da víscera, o presidente preferiu exaltar o próprio pênis.

Fica difícil não se lembrar do narrador macabro e obsceno que carregava o próprio pênis em um vidro de compota de pêssego no livro "Pilatos", de Carlos Heitor Cony. Mais um pouco e Bolsonaro, a exemplo do imperador, manda guardar para a História, num recipiente do tipo, a projeção da virilidade que tenta associar aos tempos das rédeas firmes dos velhos regimes, monárquicos ou militares. Em tempo: o nome do personagem guardado em vidro era Herodes.

Pela animação das fileiras e da plateia ao responder os gritos de "imbrochável" do dono da festa, não faltará na vida real quem se disponha a fazer as vezes de Perpétua, a personagem da novela "Tieta" que guardava em uma caixa o pênis de seu falecido marido.

Aprisionado em sua falsidade histórica, como o protagonista de Cony, Bolsonaro não desafia apenas os sistemas de pesos e contrapesos da República com as pretensões monárquicas de quem trocou o pangaré pela motocicleta no Dia da Independência. Desafia também a criatividade literária de quem se dispuser a contar o enredo de uma trama tão macabra quanto surreal.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL