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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Coração de D. Pedro 1º no Brasil é elogio monárquico e crítica à democracia

O presidente Jair Bolsonaro, ao lado da primeira-dama, Michelle Bolsonaro, durante solenidade na chegada do coração de D. Pedro 1º a Brasília, em 23 de agosto - Gabriela Biló/Folhapress
O presidente Jair Bolsonaro, ao lado da primeira-dama, Michelle Bolsonaro, durante solenidade na chegada do coração de D. Pedro 1º a Brasília, em 23 de agosto Imagem: Gabriela Biló/Folhapress

Colunista do UOL

05/09/2022 04h01

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Autor convidado, o historiador Paulo Pachá, professor de história medieval na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e pesquisador visitante do Centro de Estudos Avançados Romanlslam, da Universidade de Hamburgo (Alemanha), analisa a simbologia do translado do coração de D. Pedro 1º ao Brasil durante as comemorações do bicentenário da Independência. O especialista compara o episódio ao roubo do corpo de São Marcos no século 9, levado a Veneza no momento em que a localidade via nos restos mortais do santo uma oportunidade de consolidar sua influência. Para o autor, a pseudo-sacralização do coração de D. Pedro atende a um projeto político do ideário bolsonarista e ecoa a veneração por relíquias medievais, numa leitura explicitamente positiva da finada monarquia brasileira, em meio a ataques ao sistema democrático.

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As vísceras do imperador

Por Paulo Pachá

A Veneza do século 9 fornece elementos para examinar a chegada do coração de Dom Pedro 1º ao Brasil.

Em 827, dois mercadores venezianos chamados Bonus e Rusticus chegaram a Alexandria, cidade à época sob domínio muçulmano e que abrigava o túmulo de São Marcos, o Evangelista. Com a ajuda de um monge e um padre, responsáveis pela guarda dos restos mortais de Marcos, os comerciantes roubaram o corpo do santo e o esconderam em meio a carnes de porco para escapar da inspeção dos oficiais muçulmanos. O objetivo era levar o contrabando até Veneza. Chegando lá, Bonus e Rusticus foram recebidos com pompa por Participazio, doge da cidade, que colocou o corpo do Evangelista em seu palácio e anunciou que construiria uma basílica para abrigá-lo. Participazio morreu antes que a igreja fosse construída, mas seu irmão concluiu a obra — trata-se da famosa Basílica de São Marcos em Veneza.

Segundo o historiador Patrick Geary, a cidade se encontrava em uma delicada posição: pressionada tanto pelo Império Carolíngio quanto pelo Império Bizantino, desejava manter sua independência, sem, contudo, abandonar as relações com os dois impérios. Os carolíngios não comandavam Veneza politicamente, mas buscavam estabelecer controle eclesiástico sobre ela. A primazia episcopal era disputada na época entre Aquileia (sob controle carolíngio) e Grado (sob controle bizantino). Como se atribuía a fundação da Igreja da Aquileia justamente a São Marcos, a posse das relíquias do santo colocava Veneza no "pódio" mais alto dessa disputa.

A chegada dos restos mortais, portanto, não havia sido um ato fortuito, mas uma resposta a uma urgência política enfrentada por Veneza.

Venerar relíquias como aquela era algo muito popular no final da Antiguidade e durante a Idade Média. Neste processo, as relíquias se revestiram da mesma sacralidade representada pelo indivíduo, e sua posse simbolizava uma relação direta com eles.

Acreditava-se que essas relíquias (objetos utilizados por mártires e santos ou partes de seus corpos) eram uma via privilegiada para estabelecer essa relação pessoal com o indivíduo sacralizado e alcançar milagres. Isso explica porque esses itens se tornaram alvo de cobiça — sendo frequentemente roubados, comprados, doados e emprestados.

A presença de relíquias em túmulos, igrejas e mosteiros criavam vínculos diretos entre as cidades que as abrigavam e os santos patronos, responsáveis pela proteção e pujança daquelas comunidades. Na ausência de relíquias de uma figura importante, o roubo e a trasladação eram estratégias relativamente comuns.

A chegada do coração de D. Pedro 1º ao Brasil, numa cena que evoca esse passado, causa compreensível estranhamento: o imperador não foi santificado e seu coração não é uma relíquia medieval. Apesar disso, o órgão foi preservado em um relicário, está sob a guarda de uma instituição religiosa e é frequentemente nomeado como uma relíquia — inclusive pelo governo brasileiro.

O translado do órgão acontece 50 anos após a chegada dos restos mortais do imperador ao país (seus ossos foram guardados numa cripta no Parque da Independência, em São Paulo). Na época, Brasil e Portugal eram comandados por ditadores: Emílio Garrastazu Médici e Marcello Caetano.

Coube ao presidente de Portugal, Américo Tomás, viajar até o Rio de Janeiro para entregar o corpo de D. Pedro 1º ao governo brasileiro. Em seu discurso na cerimônia, Tomás destacou que "o relicário onde, em terra portuguesa, guardamos o seu coração, e o túmulo em que, na terra brasileira, ele repousará, serão altares sagrados da imperecível identidade dos dois povos e símbolos perenes dos valores da comunidade que nos une".

A mensagem foi reforçada por Médici: "são permanentes e inquebrantáveis os vínculos raciais, a comunhão de sentimentos, a afinidade de espírito e a vocação cultural que unem os nossos povos".

Tanto em 1972 quanto agora, em 2022, o traslado dos restos mortais do imperador português esteve diretamente associado às comemorações pela Independência do país. Ambas as comemorações têm como objetivo afirmar uma suposta identidade essencializada entre o Brasil e Portugal — os "permanentes e inquebrantáveis vínculos raciais" destacados por Médici.

Em 2022, na ausência de um caráter sagrado (Dom Pedro, afinal, não era santo), o périplo das entranhas do imperador serve para reafirmar o passado e os laços de uma suposta identidade racial e cultural, rompidos com a independência.

Durante a Idade Média, o doge Participazio habilmente utilizou o corpo roubado de São Marcos como uma forma de afirmar o vínculo de Veneza com o Evangelista e, como consequência, a supremacia da cidade sobre a região. Foi o seu grito de independência.

Em 2022, o governo Bolsonaro busca instrumentalizar, de forma atrapalhada, as vísceras de D. Pedro para reafirmar o pertencimento da nação latino-americana à "civilização ocidental" — aqui entendida em termos primordialmente raciais (branca), religiosos (cristã) e políticos (monárquica). Tal iniciativa é, como se sabe, um dos pilares do projeto ideológico bolsonarista.

Soma-se a isso outro desses pilares: o elogio da monarquia e do período imperial no Brasil. A pseudo-sacralização do coração de D. Pedro funciona aqui, como no caso das relíquias medievais, como a pseudo-sacralização do próprio D. Pedro e de uma explícita positivação da finada monarquia brasileira.

Além de fazer um aceno importante à base monarquista de Bolsonaro, a viagem do coração de D. Pedro também carrega um elemento de crítica à democracia, alvo preferencial dos diversos grupos que se reúnem em torno do presidente.

O espetáculo de hoje funciona também como uma propaganda da narrativa histórica tradicional sobre o Brasil, enfatizando o foco nas ações dos "grandes homens" do passado e nos acontecimentos políticos vinculados ao Estado-nação.

Américo Tomás caracterizou em 1972 D. Pedro 1º como o "grande Chefe que criou há 150 anos esta pátria portentosa e doou ao meu país o seu coração e os seus ideais", enquanto Médici retrucou, afirmando Portugal "como intimorato protagonista da história" que "infunde na alma brasileira a energia da sua capacidade criadora".

O antídoto contra esse tipo de visão da história já foi ministrado pela Estação Primeira de Mangueira, ao cantar: "Tem sangue retinto pisado / Atrás do herói emoldurado".

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL