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Rap indígena sai da aldeia e protesta: "Agro não é tech nem pop. Ele mata"

Wera MC se apresenta no festival de música indígena em São Paulo - Júlia Dolce/UOL
Wera MC se apresenta no festival de música indígena em São Paulo Imagem: Júlia Dolce/UOL

João de Mari

Colaboração para o TAB, em São Paulo

03/12/2019 04h01

Numa época em que demarcação de terras indígenas virou coisa do passado, os índios estão rompendo as fronteiras de suas aldeias para fazer trap, rap e futurismo misturado com a ancestralidade de quem é brasileiro há muito mais que 500 anos.

A história da rapper Kaê Guajajara, 26, é uma síntese dessa criação artística em meio à destruição de uma cultura. Natural de Mirinzal, no Maranhão, a artista vivia em uma terra não demarcada e teve que se mudar para o Rio por conta de conflitos com madeireiros.

Ela sobe ao palco trajada com adereços indígenas de seu povo, que no início de novembro perdeu um de seus guardiões da floresta, Paulo Paulino Guajajara, responsável por fiscalizar e denunciar invasões na mata, assassinado a tiros. "Diferentemente dos artistas não indígenas, que podem trazer mensagens mais de entretenimento, nós estamos passando uma mensagem muito séria."

Apesar das sérias denúncias e provocações em suas letras, o som da rapper Kaê Guajajara não foge dos timbres melódicos, sintetizadores e graves robustos característicos do rap. "O agro não é tech, não é pop e também mata", começa o verso da música Mãos Vermelhas. "Tô renascendo da cinza do fogo que queimaram meus ancestrais", continua a letra, enquanto uma batida que lembra o boladão do funk carioca se misturava aos baixos que fazem tremer as caixas de som. Em grande parte de seu show, Kaê cantou com os olhos fechados, como quem se conecta com algo maior.

Entre agosto de 2018 e julho de 2019, as terras indígenas tiveram alta de 74% no desmatamento, um dos principais motivadores de conflitos, segundo o Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite (Prodes).

De fato, a artista recorre aos ancestrais quando o assunto é música. "Eu sonho, gravo no meu celular a melodia que veio e junto com todas as coisas que eu já tinha escrito", releva. Para as letras, ela anota casos de preconceito que vive no dia a dia. "Quando tenho que preencher alguma coisa e só dão as opções 'pardo, branco, preto', por exemplo".

Flow em guarani

"No meu trap, o flow é legal e pode até parecer que eu estou falando umas bobeiras. Mas não, cara, é protesto. Eu jamais vou fugir dessa linha aí", conta Wera MC, 24, traduzindo o significado das suas letras em guarani para o português.

O jovem, que é pioneiro no trap indígena do país, se apresentou no primeiro festival da música indígena contemporânea no Brasil. O Yby Festival reuniu, no último fim de semana, 15 artistas indígenas no Unibes Cultural, em São Paulo (SP).

Wera subiu ao palco com arco e flecha. Além de trapper, jovem é Xondaro, praticante da arte marcial guarani - Júlia Dolce/UOL - Júlia Dolce/UOL
Wera subiu ao palco com arco e flecha. Além de trapper, jovem é Xondaro, praticante da arte marcial guarani
Imagem: Júlia Dolce/UOL

Wera iniciou sua carreira há 10 anos no grupo de rap indígena Xondaro MC's, formado por jovens lideranças guarani mbya da aldeia Teoka Pyal, localizada no Pico do Jaraguá, na zona norte de São Paulo. O objetivo era chamar a atenção para causas como a demarcação de terras indígenas.

"A gente já ouvia Sandrão RZO, Racionais MC's, mas não tinha quem nos representasse. A gente se identificava com aquela realidade de miséria, de preconceito com as minorias que o rap mesmo traz, mas eles não estavam falando dos indígenas", destaca.

O trap para Wera chegou com tudo, assim como para o restante do Brasil. Plataformas de streaming, como o Spotify, registraram um aumento de 50% no consumo do estilo musical de 2016 a 2019.

Porém, diferente do trap dos não indígenas que, além de falar sobre racismo e desigualdade, discorre sobre sexo, drogas e violência, a música de Wera ainda expõe uma grande necessidade de focar nas mesmas questões que ele já abordava há uma década.

"Eu acho que a gente está evoluindo musicalmente sim, mas calculamos até que ponto podemos ultrapassar esse muro. Venho para a cidade porque quero atingir o mundo através da arte, mas também para conscientizar que eu preciso ter minha vida como indígena também", conta, enquanto pega seu arco e flecha, que o acompanhou durante o show, para posar para foto.

O terapeuta Pedro Rodrigues da Silva, 22, é morador de Itaquera, na periferia da zona leste de São Paulo, e recentemente vem se conectando com suas origens Xucuru-Kariri, povo habitante de Palmeiras dos Índios (AL). O jovem, que se considera caboclo, conta que a música autóctone tem ajudado nesse processo de identificação. "Cresci na comunidade, via muito funk, convivi com amigos que estavam nesse meio e é muita ostentação, energia pesada. Quando você traz para dentro essa visão ancestral você honra a natureza e o que elas nos dá", afirma.

A geógrafa e performer Chayenne Furtado, 28 anos, que assistia ao show sem nem sequer piscar, acredita que a comparação de Wera com a cena não indígena do trap espelha diferentes formas de enxergar a sociedade. "Sei que o movimento da ostentação é forte no rap, e existe uma questão de desejo por consumir, a lógica de consumo é bem colocada na nossa sociedade 'ocidental', enquanto o paradigma indígena é outro, o contrário, inclusive", opina Furtado, que veio do Rio de Janeiro para acompanhar o festival.

Ancestralidade, presente!

A valorização da cultura original dessas terras também foi tema da apresentação do rapper Wesley Amaral, o Wescritor. Pés descalços e carregando uma bandeira com os dizeres "013 terra indígena". Assim foi como o jovem de 22 anos abriu seu show, onde lançou seu novo single Grito Ancestral. "Esses livros tão velhos, sujos, nada a ver com nada/A gente tem tudo a ver com a Terra", diz a música, que já está disponível em todas as plataformas.

Foi graças à ancestralidade que Wescritor pôde seguir a carreira de rapper. Aos 18 anos, ele escrevia poemas e fazia teatro em Santos, litoral paulista. Neste ano, depois de trabalhar na Força Aérea Brasileira, o rapper decidiu pegar suas coisas e encontrar seu avô, Ancião Amaral da aldeia Itapoã, na TI Tupinambá de Olivença, em Ilhéus (BA), onde teve uma conexão espiritual com suas origens.

"Existe um abafamento da nossa cultura desde que a gente nasce. A quebra disso é uma parada que cada um vai ter no seu tempo", afirma. Das cinco músicas apresentadas no show, quatro foram escritas em fevereiro deste ano, durante sua estadia na aldeia.

Futurismo sai da aldeia

Não é só no mundo da música "branca" contemporânea que o jovem é protagonista. Pensar na juventude e construir espaços para que os jovens tenham oportunidades de realizar seus sonhos e expressar seus sentimentos pela arte é um dos objetivos do futurismo indígena, tema central do Yby Festival.

"São novas formas de resistência, que têm elementos contemporâneos sem abandonar a cultura tradicional, as raízes indígenas, pelo contrário, fortalecendo e amplificando por meio dessas novas ferramentas", explica a jornalista Renata Tupinambá, que comanda a Rádio Yandê e é uma das organizadoras do Yby. "Por meio do festival, os jovens estão encontrando acolhimento e representatividade que tanto faltava na música indígena brasileira".

A rapper Brisa de la Cordillera, do povo mapuche do Chile, encerrou o fim de semana de shows. Aos 32 anos de idade e sendo um dos destaques no rap indígena, ela defende que o futurismo também age na desmistificação do que é ser indígena.

A rapper, conhecida no hip hop como Brisa Flow, conta que ouviu pessoas criticando o festival porque achavam que seriam apresentadas apenas músicas tradicionais indígenas. "Isso porque a branquitude ainda está esperando ver o indígena estereotipado como nos museus humanos. Quando o indígena usa celular ou toca rap, para eles ele deixa de ser indígena".

Brisa mistura sua levada latina com rap, eletrônico e soul - o flow não é por acaso. A musicalidade que une instrumentos analógicos e eletrônicos flui com suas composições que retratam a vivência das mulheres e a desigualdade social presente na América Latina.

É impossível ouvir a música Fique Viva e não ficar com refrão na cabeça: "Baby, é só mais uma armadilha/Cuidado na trilha!/Baby, fique viva!/ Fique viva!". O clipe do som lançado em dezembro de 2018 foi gravado na aldeia Tekoa Yvy Porã, em São Paulo.

Brisa criticou a falta de diversidade nos festivais de música, principalmente no cenário do rap. "Espero que o Yby possa ter plantado uma sementinha. Tem que chamar pessoas pretas, indígenas. Quando a gente chegar numa equidade, os festivais não precisarão mais se chamar 'festivais indígenas de música contemporânea', porque a gente estará tocando em todo lugar", aponta.