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Sigilo de 100 anos: as informações do governo Bolsonaro que Lula pode abrir

O presidente Jair Bolsonaro (PL): sigilo na cartão de vacinação, na agenda e no acesso ao Palácio do Planalto - Marcos Corrêa/PR/Flickr
O presidente Jair Bolsonaro (PL): sigilo na cartão de vacinação, na agenda e no acesso ao Palácio do Planalto Imagem: Marcos Corrêa/PR/Flickr

Edison Veiga

Colaboração para o TAB, de Bled (Eslovênia)

31/12/2022 04h01

Foram várias as ocasiões, no calor da campanha eleitoral, em que o então candidato Luiz Inácio Lula da Silva (PT) prometeu "acabar com o sigilo de cem anos" imposto pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) em determinados documentos oficiais.

Prerrogativa prevista pela LAI (Lei de Acesso à Informação), em vigor desde 2001, a classificação restrita de informações públicas, em tese, deve ser aplicada sob argumentos técnicos e com comedimento. As previsões em lei são para casos que possam expor informações pessoais de cidadãos privados ou comprometer a segurança — e o prazo máximo de cem anos deveria ser encarado como exceção das exceções.

Dois artigos da LAI versam sobre a questão. O número 24 prevê que "a informação em poder dos órgãos e entidades públicas, observando o seu teor e em razão de sua imprescindibilidade à segurança da sociedade ou do Estado, poderá ser classificada como ultrassecreta, secreta ou reservada".

No primeiro caso, cuja classificação só pode ser determinada pelo presidente, pelo vice, por ministros de Estado, comandantes das forças militares ou embaixadores, o prazo máximo é de 25 anos. O mesmo artigo prevê que eventuais informações "que puderem colocar em risco a segurança do presidente e vice-presidente da República e seus respectivos cônjuges e filhos serão classificadas como reservadas e ficarão sob sigilo até o término do mandato em exercício".

O artigo 31 da lei, contudo, permite uma classificação de "até cem anos" para informações pessoais que versem sobre "intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas".

Ao longo da gestão Bolsonaro foram muitos episódios em que a classificação de cem anos foi arbitrada para deixar em sigilo informações ligadas ao governo. O mais midiático foi a restrição aplicada ao cartão de vacinação do presidente, que diversas vezes questionou a gravidade da covid-19 — Bolsonaro foi um dos poucos chefes de Estado que não só não defendeu a vacinação como, oficialmente, negou-se a ser imunizado. Contudo, os pedidos baseados na LAI para conferir informações sobre suas vacinas foram negados.

Outro caso emblemático foi o processo disciplinar contra o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, general da ativa do Exército, por participar de um ato político ao lado do presidente Bolsonaro.

Também há o sigilo imposto sobre as informações de acesso ao Palácio do Planalto e a participantes de reuniões com Bolsonaro — informações que, no espaço público da presidência e dentro do exercício do cargo, especialistas entendem como fundamentalmente necessárias a serem transparentes.

Vida privada x interesse público

Membro da agência de dados Fiquem Sabendo, o advogado Bruno Schimitt Morassutti diz que governos anteriores já se baseavam no artigo 31 da LAI para negar acesso a informações públicas, mas que nunca isso foi feito de maneira tão pragmática quanto na gestão Bolsonaro.

"A lei é clara: [essa restrição] só é aplicável para informações pessoais sensíveis de pessoas privadas", explica. "Agenda de um agente público, nome de pessoas que participaram de determinada reunião de órgãos públicos, exames de saúde de altas autoridades, currículo profissional de agentes públicos… Todas essas informações precisam ser transparentes se dizem respeito a um agente público no exercício da função, são importantes para que a gente possa exercer o controle externo na administração pública. Não tem nada de vida privada."

Para a diretora de programas da organização Transparência Brasil, Marina Atoji, a maneira como o governo Bolsonaro tratou a questão "foi abusiva", especialmente "nos casos que foram mais amplamente noticiados". Por dois motivos: primeiro, porque eram informações de interesse público; segundo, porque várias vezes a restrição cobriu documentos inteiros (e não trechos específicos, que poderiam ter sido tarjados).

"Não bastasse isso, há indícios que se aplicou indevidamente a restrição para evitar a divulgação de informações potencialmente prejudiciais à imagem do governo federal", comenta.

Professor de direito constitucional na Universidade Presbiteriana Mackenzie, o jurista Flávio de Leão endossa a crítica. "Importante ressaltar que o 'sigilo' sobre informações relativas às decisões do Poder Público é medida excepcional, por não se coadunar com a forma de governo republicana, menos ainda com os princípios da publicidade, da transparência, da moralidade, da legalidade e da eficiência, que condicionam as condutas da administração pública", define.

Com o diploma em mãos, o presidente eleito Lula (PT) e seu vice Geraldo Alckmin (PSB) poderão tomar posse no dia 1º de janeiro de 2023. Foto: Roque de Sá/Agência Senado - Roque de Sá/Agência Senado - Roque de Sá/Agência Senado
O presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT), na sua diplomação, em Brasília
Imagem: Roque de Sá/Agência Senado

Lula pode liberar os dados?

Passados os quatro anos de Bolsonaro, a volta da transparência é possível também de forma retroativa? Segundo os especialistas, sim: uma vez no comando do Executivo, Lula pode tornar públicas as informações classificadas como sigilosas por seu antecessor.

"Essas decisões podem ser revistas, inclusive de ofício, isto é, sem provocação externa", esclarece o jurista Carlos Ari Sundfeld, professor da FGV-Direito. "O tema está regulado no artigo 29 da lei, bem como nos artigos 35 a 38 do decreto 7.724, de 2012. Em suma, basta que se faça uma reavaliação quanto à real existência ou permanência das razões para sigilo. Essa reavaliação tem de ser feita caso a caso, não bastando um decreto genérico."

"Como a restrição foi imposta por meio de negativas a pedidos de informações, o mais cabível é reavaliar cada uma das decisões e anular as comprovadamente inadequadas, o que abriria caminho à divulgação, de preferência, por iniciativa do próprio governo, sem que ele espere por um novo pedido pela informação inicialmente negada", acrescenta Atoji. "Um decreto presidencial só não daria conta disso… Só se fosse um decreto justamente determinando essa revisão e estabelecendo um prazo para ela acontecer."

Morassutti pondera que a administração pública sempre pode revisar seus atos e essa ideia, por si só, já garante a efetividade de um revogaço nos sigilos impostos pelo governo Bolsonaro.

"O governo pode revisar decisões tomadas anteriormente sem problema algum, e há várias formas de fazer isso. A primeira e mais simples é com a designação de autoridades públicas em cargos chaves. O novo chefe do órgão acaba dando, assim, a direção que as decisões que serão seguidas", exemplifica. "Um novo ministro, por exemplo, se tiver uma posição mais favorável à transparência pública, certamente vai decidir e orientar seus servidores a decidir de forma transparente."