'Só restava recorrer ao bispo': os 50 anos da Comissão Justiça e Paz
Se para muitos a igreja é apenas lugar de se rezar, há outros que pensam a religião como um agente político, no sentido pleno da palavra. O termo política, afinal, vem do grego antigo e significa tudo aquilo que diz respeito à organização da comunidade e da coletividade. Foi o filósofo clássico Aristóteles (384 a.C. - 322 a.C.) quem cunhou a frase: "O ser humano é, naturalmente, um animal político".
Se o ato de ir à missa é, em si, um gesto político, também é um posicionamento político olhar pelos mais pobres, denunciar as mazelas sociais e apontar o dedo para as feridas estruturais da nação. No Brasil, país com a maior população católica do mundo, personagens e instituições ligadas à Igreja Católica tiveram papel de destaque no processo histórico.
Como disse, certa vez, o arcebispo dom Hélder Câmara (1909-1999), atualmente em processo de beatificação: "Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo; quando pergunto por que eles são pobres, chamam-me de comunista". Câmara foi um dos idealizadores, em 1952, da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), entidade da qual foi o primeiro secretário-geral e que completa 70 anos.
Também "fazia política", além de falar em religião, o arcebispo Paulo Evaristo Arns (1921-2016) ao dizer que "o Deus da justiça é o mesmo Deus do amor" ou que, "no Brasil, é necessário lutar pelos direitos de todos e pelo fim da exclusão social". Indignado com as atrocidades da ditadura militar, Arns mobilizou a igreja paulista ao longo de 1972 e, no último mês daquele ano, fundou a CJP-SP (Comissão Justiça e Paz de São Paulo), que completa meio século.
Uma novidade na Igreja
As duas instituições, por seus posicionamentos e atuações, tornaram-se indissociáveis da história recente do país. "A CNBB foi, ao longo do tempo, ganhando respeito e acumulando capital eclesiástico e político", comenta o historiador, filósofo e teólogo Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie. "Ela foi importantíssima no processo de redemocratização do Brasil e na construção da Constituição de 1988."
Para Moraes, esse papel deu à CNBB a credibilidade de que desfruta hoje. "Ela age como uma voz profética. Quando há uma crise no Brasil, a gente logo fica esperando o posicionamento da CNBB, sempre feito de forma prudente, com bom senso e a favor de causas que lhe são muito caras, como os pobres, os necessitados, os injustiçados."
Quando foi criada, em 1952, era uma novidade na Igreja. Havia pouquíssimas pelo mundo — passaram a ser incentivadas oficialmente pela Santa Sé somente uma década mais tarde, após o Concílio Vaticano II. "A CNBB é fruto da caminhada do episcopado brasileiro que, na metade do século passado, sentiu a necessidade de um organismo eclesial onde pudesse partilhar e, colegiadamente, encontrar soluções para situações locais, regionais e nacionais", diz o arcebispo de Belo Horizonte e atual presidente da organização, dom Walmor Oliveira de Azevedo.
Pela Lei da Ficha Limpa
Para Dom Walmor, a conferência "vem contribuindo, significativamente, para que a sociedade brasileira seja cada vez mais fraterna e justa". Como exemplo, ele cita a Campanha da Fraternidade, "que a cada ano inspira a vivência autêntica da fé, com gestos concretos de solidariedade. A primeira edição, em 1962, foi realizada na Arquidiocese de Natal. No ano seguinte, a experiência foi ampliada para outras dioceses do Nordeste. Já em 1964, com apenas dois anos de criação da CNBB, a campanha foi vivida em todo o território nacional".
O religioso destaca também a contribuição da entidade na criação da Lei da Ficha Limpa, que impactou decisivamente a política do país. "A lei foi fruto de iniciativa popular que contou com expressiva participação das nossas comunidades de fé. Mais recentemente, podemos citar também a criação da Lei Junho Verde, que vai inspirar ações educativas e sociais de preservação e cuidado com o meio ambiente. Um trabalho fundamentado na Carta Encíclica Laudato Si, do Papa Francisco", acrescenta. "Importante dizer que a CNBB é signatária do Pacto pela vida e pelo Brasil, que reúne instituições de credibilidade da sociedade brasileira, dedicadas à promoção da democracia, a partir de adequado exercício da cidadania."
Da ditadura à democracia fragilizada
Frei Marcelo Toyansk Guimarães, membro da Comissão Justiça, Paz e Integridade da Criação dos Frades Capuchinhos e assessor da Comissão Justiça e Paz da CNBB em São Paulo, ressalta "os posicionamentos pela vida, pela democracia e pelos direitos humanos" ao longa da ditadura militar. "A CNBB uniu inúmeros bispos que expressavam o sentimento de grande parte do episcopado brasileiro diante do momento de grande repressão", lembra.
Uma postura que se manteve após a redemocratização e particularmente nos tempos atuais, em que a CNBB se engajou nas denúncias ambientais e sociais durante o governo Jair Bolsonaro. "Há uma grande participação da Igreja pela vida e pela democracia, e isso foi intenso nos últimos anos em que a democracia se mostra fragilizada", comenta.
"Em 1972 [quando a CJP foi criada], vivíamos o pior momento da ditadura", conta o advogado Antônio Funari Filho, atual presidente da comissão. "A maior parte das torturas, mortes e desaparecimentos de opositores ocorreu nesta época, entre 1969 a 1974. Na ausência de um Estado de Direito, só restava às pessoas desesperadas recorrer ao bispo", resume ele.
Por uma vida digna
Em carta aberta divulgada no início do mês, Funari Filho lista 53 episódios nos quais a CJP-SP teve papel de liderança ou emprestou sua voz para endossar a luta. A lista parte de momentos históricos da resistência contra a ditadura, como o famoso ato ecumênico em memória ao assassinato, nos porões do regime, do jornalista Vladimir Herzog (1937-1975); a célebre leitura da Carta aos Brasileiros, do professor Goffredo Telles Jr, em repúdio à ditadura, em 1977; o movimento Diretas Já, pela redemocratização; a criação das ouvidorias de Polícia e da Defensoria Pública; lutas contra o trabalho infantil e a pena de morte; atos em defesa de quilombolas, sem-teto, povos indígenas e pessoas LGBT; e, mais recentemente, durante a pandemia, campanhas pelo engajamento na vacinação e pela instauração da CPI da covid-19.
Para Funari Filho, o principal papel político da instituição é a defesa dos direitos humanos, para que eles se concretizem "de modo a assegurar a cada uma das pessoas vida digna". Daí a incompatibilidade vista nos últimos anos da gestão Bolsonaro. "Ele, que se recusa a aceitar a derrota, sempre expressou ódio contra os defensores dos direitos humanos que enfrentaram a ditadura militar e seus carrascos e torturadores", diz.
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