Topo

'Perdemos': a crise militar que impôs o Artigo 142 à Constituição de 88

O então deputado constituinte José Genoino (à esq.), ao lado do deputado federal Ulysses Guimarães, presidente da Constituinte, em Brasília, em 1987 - Reprodução
O então deputado constituinte José Genoino (à esq.), ao lado do deputado federal Ulysses Guimarães, presidente da Constituinte, em Brasília, em 1987 Imagem: Reprodução

Ivan Marsiglia

Do TAB, em São Paulo

15/11/2022 04h00

Era 17 de fevereiro de 1988 e a Assembleia Nacional Constituinte esbarrava em um tema sensível. A negociação que definiria as atribuições das Forças Armadas no regime democrático havia empacado. A redação do famigerado Artigo 142 — evocado tanto por Jair Bolsonaro quanto por manifestantes que pedem "intervenção militar" contra o resultado das urnas — era alvo de violenta pressão por parte de setores identificados com o regime autoritário que governou o Brasil por 21 anos.

Na ocasião, representantes das Forças Armadas cerraram fileiras com a direita no Congresso para barrar aquela que já era a segunda proposta sobre o tema, elaborada justamente para tentar acomodar seus interesses.

A proposta original, de autoria do deputado José Genoino (PT), reservava aos militares um papel limitado à defesa externa do país e à proteção de suas fronteiras, mas fora sumariamente descartada. "Fernando Henrique Cardoso [à época no PMDB] propôs então, na chamada 'emenda FHC', que as Forças Armadas cuidassem da defesa nacional e dos poderes constitucionais", explica Genoino, em entrevista ao TAB.

A redação não foi suficiente para os setores identificados com a caserna, que insistiam na incorporação ao texto do conceito vago de "defesa da lei e da ordem", além de um suposto papel "moderador" dos militares sobre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.

A 'junta dos Três Patetas'

As pressões se intensificaram a ponto de o presidente da Assembleia Constituinte, Ulysses Guimarães (PMDB), ser questionado naquela tarde se não temia a intervenção de uma Junta Militar no país — como a que outorgou a Constituição autoritária de 1969, composta pelos ministros do Exército, Aurélio de Lyra Tavares, da Marinha, Augusto Rademaker, e da Aeronáutica, Márcio Souza e Mello. A resposta de Guimarães, chamando de "Três Patetas" a trinca de comandantes de 1969, elevou ainda mais a temperatura.

As declarações do presidente da Constituinte foram chamadas de "infelizes e injustas" pelo então ministro do Exército, general Leônidas Pires Gonçalves (1921-2015). Em depoimento para o relatório "A Constituinte recuperada: Vozes da Transição, memória da redemocratização, 1983-1988", amplo levantamento feito pelo Cedec (Centro de Estudos de Cultura Contemporânea) da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), o general Leônidas deixou claro que era mesmo a voz fardada na Constituinte civil: "Antes de mais nada, chamei meus comandados no Exército e avisei que somente eu é que falaria pela instituição. Eu e mais ninguém".

15.07.1987 | O deputado federal Ulysses Guimarães, o presidente à época José Sarney e o ministro do Exército Leonidas Pires Gonçalves, durante encontro em Brasília - Izabel Cristina/Folhapress - Izabel Cristina/Folhapress
15.07.1987 | O deputado federal Ulysses Guimarães, o presidente à época José Sarney e o ministro do Exército Leônidas Pires Gonçalves - voz fardada na Constituinte civil -, durante encontro em Brasília
Imagem: Izabel Cristina/Folhapress

'Recalque de 1964'

O relato do general para o Cedec evidencia as exigências dos militares na nova carta. "[Deputados constituintes] Queriam tirar 'a lei e a ordem' [do texto] pelo recalque que tinham de 1964. Eu disse isso mais de uma vez para os encarregados da Constituinte: 'Vocês estão fazendo uma Constituição olhando para o passado, e não olhando para frente'."

Leônidas chegou a afirmar que não ficou 100% satisfeito com o texto. "Consegui dar uma melhorada, mas o resultado final foi olhando para o passado", afirma, para logo adiante contradizer-se: "O Exército conseguiu tudo o que queria na Constituição".

Coube a FHC, mais uma vez, reacomodar os interesses, segundo Genoino. "Não tinha acordo e ele botou no texto o rabicho que fala em 'garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem'. Perdemos."

O advogado Flavio Flores da Cunha Bierrenbach, ministro do STM (Superior Tribunal Militar), durante a Assembleia Nacional Constituinte - Divulgação - Divulgação
O advogado Flavio Flores da Cunha Bierrenbach, ministro do STM (Superior Tribunal Militar), durante a Constituinte: '[O 142] não foi uma condição dos militares, mas uma concessão à extrema direita do Congresso'
Imagem: Divulgação

Pouca moderação

Para o professor de ciência política da Unifesp Antônio Sérgio Rocha, coordenador da pesquisa do Cedec — que deverá ser publicada em 8 volumes em 2023 —, "essa visão dos militares como guardiães da ordem interna é uma cultura antiga no país, que já aparece na Constituição de 1891. Sem essa tradição, eles não conseguiriam fazer tanta pressão para a manutenção dessa ideia no texto de 1988."

Para Rocha, o estudo das diversas intervenções militares na história brasileira revela tudo, menos moderação. "Talvez a ideia do Poder Moderador fosse uma maneira de [o Exército] desculpar as [próprias] intervenções: como os militares 'não queriam' o poder para si, então eles podiam 'intervir' na política", diz.

"O artigo 142, como de resto toda a Constituição de 1988, é contraditório, prolixo, confuso", considera o advogado e magistrado Flavio Flores da Cunha Bierrenbach, ex-ministro do STM (Superior Tribunal Militar) e outro observador próximo da Constituinte de 1988.

Bierrenbach considera "esdrúxula" a atribuição de um suposto Poder Moderador às Forças Armadas. Para ele, a redação do 142 começa bem ao definir as Forças Armadas como "instituições nacionais permanentes", mas resvala no autoritarismo ao insistir na garantia da lei e da ordem.

O magistrado discorda apenas sobre quem teve a iniciativa dessa redação. "Não foi uma condição dos militares, mas uma concessão à extrema direita do Congresso", afirma. "No fundo, cada um botou lá o seu artigo, da toga à tanga."

29.7.1987 | Mário Covas, então no PMDB, comanda reunião do 'grupo do consenso' durante os trabalhos de elaboração da Constituição de 1988, em Brasília - Lula Marques/Folhapress - Lula Marques/Folhapress
29.7.1987 | Mário Covas, então no PMDB, comanda reunião do 'grupo do consenso' durante os trabalhos de elaboração da Constituição de 1988: comissão do 142 era a única que tinha presidente e relator de direita
Imagem: Lula Marques/Folhapress

O rolo compressor da direita

De fato, a correlação de forças na composição da "Comissão de Organização Eleitoral, Partidária e Garantia das Instituições" — na qual seria elaborado o Artigo 142 — foi distinta em comparação com as demais comissões.

Logo no início dos trabalhos da Constituinte, Mário Covas, líder do PMDB, e José Lourenço, líder do PFL, fizeram um acordo segundo o qual cada um nomearia, respectivamente, relatores e presidentes para cada comissão. O acordo, que buscava garantir equilíbrio entre a direita e a esquerda nas discussões, não valeu para a comissão que definiu as atribuições das Forças Armadas.

A pressão da direita foi tamanha que conseguiu emplacar como presidente o senador Jarbas Passarinho (PDS), coronel reformado e quadro ideológico oriundo da Arena (Aliança Renovadora Nacional), e na relatoria o deputado Prisco Viana, ex-Arena e da direita do PMDB, muito ligado ao ministro das Comunicações, Antonio Carlos Magalhães.

Em setembro de 1988, o ex-militar e militante do PCB Luiz Carlos Prestes já denunciava no jornal Tribuna da Imprensa que o Artigo 142 contrariava "conhecido preceito da tradição constitucional de nosso país, que sempre afirmou serem os três poderes do Estado autônomos, mas harmônicos entre si, não podendo, portanto, nenhum deles tomar qualquer iniciativa isoladamente".

No texto, Prestes concluía com desalento que, na "nova Constituição, prosseguirá, assim, o predomínio das Forças Armadas na direção política da Nação, podendo, constitucionalmente, tanto depor o presidente da República quanto os três poderes do Estado".

O 142 transformava-se, assim, no espectro autoritário que ronda a Constituição cidadã.

3.2.1988 | No plenário da Constituinte, entre outros deputados, Mário Covas (à esq.) e Fernando Henrique Cardoso (à dir.) - Luiz Novaes/Folhapress - Luiz Novaes/Folhapress
3.2.1988 | No plenário da Constituinte, entre outros deputados, Mário Covas (à esq.) e Fernando Henrique Cardoso (à dir.)
Imagem: Luiz Novaes/Folhapress

Ambiguidade perigosa

A polêmica sobre o Artigo 142 permaneceu nas sombras, debatido apenas entre especialistas do direito constitucional e militares, até que, em maio de 2020, um artigo do advogado monarquista Ives Gandra Martins sugeriu que o texto concederia de fato às Forças Armadas o papel de "Poder Moderador" em caso de desequilíbrio entre os Três Poderes. O texto de Gandra Martins foi citado pelo próprio presidente Jair Bolsonaro em uma rede social.

A insinuação do presidente levou o PDT a impetrar, em junho do mesmo ano, uma ação direta de inconstitucionalidade no STF (Supremo Tribunal Federal), para que a Corte delimitasse o artigo 142. Em resposta, o ministro Luiz Fux negou aquela interpretação. "Confiar essa missão às Forças Armadas", afirmou Fux na decisão, "violaria a cláusula pétrea da separação de poderes, atribuindo-lhes, em último grau e na prática, inclusive, o poder de resolver até mesmo conflitos interpretativos sobre normas da Constituição".

Naquele mesmo mês, a Secretaria-Geral da Mesa Diretora da Câmara dos Deputados respaldou a decisão do Supremo, ressaltando que a Constituição Federal não autoriza qualquer intervenção militar a pretexto de "restaurar a ordem". "Não existe país democrático do mundo em que o direito tenha deixado às Forças Armadas a função de mediar conflitos entre os Poderes constitucionais ou de dar a última palavra sobre o significado do texto constitucional", aponta o documento do Congresso.

'Apropriação subversiva'

Para o professor Antônio Sérgio Rocha, está claro, no conjunto da obra da Constituição de 1988, que ela não autoriza que o presidente convoque as Forças Armadas para intervir em outros poderes. "É um recurso pensado apenas para casos de invasão externa, guerra ou cataclismo. Com um objetivo circunscrito e determinado."

Na opinião do professor de Direito Constitucional da FGV (Fundação Getulio Vargas) de São Paulo Rubens Glezer, as atuais menções ao Artigo 142 são mero pretexto aos interesses político-ideológicos de determinados grupos.

"Esse uso deturpado e abusivo do artigo é uma forma de se apropriar dos elementos do discurso democrático e constitucional para legitimar ações ilegais e antidemocráticas", diz Glezer. "Procura-se, dessa forma, fingir que há um verniz de legitimidade nisso. Trata-se de uma apropriação subversiva do texto, com uma finalidade claramente golpista."

O ex-deputado constituinte José Genoino ressalta que o Artigo 142 foi um dos cinco pontos elencados pelos 16 parlamentares do PT ao votarem contra o texto final da Constituição de 1988 — embora todos a tenham assinado.

"Concordo com os juristas que dizem que essa autorização não está expressa na Carta", diz Genoino, "mas em matéria de armas a gente não deve ter redações ambíguas. A redação ambígua facilitará a interpretação autoritária".