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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Atos golpistas nas estradas bloqueiam os caminhos do Brasil até a sanidade

Cássia Kis participa de manifestação no Rio de Janeiro - Reprodução/Twitter
Cássia Kis participa de manifestação no Rio de Janeiro Imagem: Reprodução/Twitter

Colunista do UOL

04/11/2022 04h01

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O prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, anunciou em sua página no Instagram que sua gestão acaba de fechar o Instituto Juliano Moreira, último manicômio da antiga capital.

A decisão, segundo uma nota da prefeitura, representava a conclusão do processo de desinstitucionalização de pacientes psiquiátricos, um marco da luta antimanicomial no país.

A postagem chamava a atenção pela legenda, na qual o prefeito ironizava: "E pensar que tem só uma semana que fiz isso... Se eu soubesse... Do jeito que vai, precisamos é abrir mais... Eu hein! Em tempo: entendedores entenderão!".

Paes se referia claramente ao estado de alienação e amência que parece tomar conta do país desde que grupos bolsonaristas, em fúria, decidiram fechar ruas e estradas até que um golpe de Estado com ajuda dos militares seja instituído.

O momento e o respeito à luta antimanicomial exigem cuidado com as palavras.

Chamar a catarse coletiva de loucura é desprezar as muitas camadas de sofrimento real enfrentadas por quem de fato possui algum tipo de distúrbio, alteração mental e afastamento prolongado da capacidade de pensar, sentir e agir.

Não tem patriotas rasgando dinheiro na manifestação e isso de alguma forma mostra que ninguém ali perdeu a razão de todo.

Chamá-los pelo nome exige percorrer outras rotas de interpretação do fenômeno que atravessam estados incontidos de perversidade, violência, desinformação, instrumentalização política e até do assédio religioso.

Mas a coisa chegou a um ponto que, se não alcançou, espreita o estágio e os limites do delírio.

Não tem como olhar para pessoas como a atriz Cássia Kis sem pensar que elas não estão bem. Com uma carreira consolidada, a atriz decidiu interpretar sua versão da dona Perpétua, na novela Tieta, e não dá sinais de que sairá tão cedo da personagem.

Não sei vocês, mas se estou andando na rua e me deparo com a atriz ajoelhada, com aqueles óculos redondos, o rosto sem expressão e um modo hesitante de segurar o rosário como quem encomenda o Armagedon, eu atravesso a via e só volto para casa em 2023.

O mesmo aconteceria se topasse por aí com o líder do movimento que viralizou ao demonstrar sua incapacidade de dizer a um repórter o que o levou à manifestação. "Queremos um Brasil melhor", "do jeito que está não dá" eram as únicas frases que ele conseguia dizer, sem talvez se dar conta de que o novo governo nem sequer começou.

E o que dizer do estado de alienação de manifestantes em festa diante de uma fake news sobre uma inexistente prisão do ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes?

E do rapaz que se ajoelhou e cantou o hino nacional para um pneu?

E do rapaz que ganhou uma carona na lataria da frente do caminhão de onde se agarrou para manter o bloqueio na estrada e também virou meme?

Então era para isso que tanta gente distribuiu por aí teorias relacionadas a Ratanabá e Terra Plana nesses anos todos?

Para testar a aderência de todo tipo de absurdo e botar numa grande rede os peixes mais ingênuos para dar a cara a tapa quando precisassem tomar as ruas?

Se existe um estágio divisório entre a euforia e a completa irracionalidade, é ali que parte do país se encontra. E dali não está conseguindo sair.

Não, essas pessoas não estão bem.

No início do século passado, uma das consequências da revolução industrial foi arrancar dos sujeitos que precisavam se adaptar ao ritmo das máquinas um antigo modo de estar no mundo.

O trem não atravessava apenas a paisagem e mudava a velocidade do deslocamento dos corpos. Atravessava os corpos de quem, como definiu Hilda Hilst, se movia e não se movia de si.

A noção de sujeito entrou em colapso diante da nova noção de tempo, de espaço e de divisão de trabalho. Passamos a ver, produzir e nos entender num mundo em expansão apenas como partes de uma composição que não conseguíamos apreender como um todo. O processo de decomposição desse sujeito teve como efeito rebote a perda de referenciais históricos, inclusive de autoridades, e levou muita gente ao colapso, físico e mental.

O operário maquinal de Charles Chaplin em "Tempos Modernos" é ainda nossa melhor expressão.

Não é possível entender as duas grandes guerras sem levar em conta o impacto da tecnologia (e das mudanças nas formas de produção de riquezas e saberes promovidos por ela) nos corpos desses sujeitos criados e orientados a partir de então a sobreviver às muitas máquinas de moer gente surgidas naquele período. A guerra era uma delas.

No século seguinte, a crise social, econômica e estética de 2022 surge como razão ou consequência de uma crise existencial profunda: sujeitos impactados por uma nova tecnologia, agora digital, e novas formas de estar no mundo parecem clamar desesperados por um lugar que estava aqui e deixou de existir.

Um mundo em que uma fileira de ofícios e saberes não corriam risco de extinção devido à emergência de novas formas de produção de riqueza e conhecimento. O fato de que a maioria ali não sabe o que é notícia e o que é fake news diz muito sobre essa vertigem em curso.

Bota na conta as crises pessoais de quem se depara com a longevidade sem aprender a envelhecer num mundo que já não reconhece. De quem passou a vida ouvindo promessas sobre a composição de super-sujeitos, desses que vencem na vida e enriquecem com o próprio suor, e de repente se veem finitos, brocháveis, incapazes de assimilar a velocidade das mudanças e das novas forças da grana que ergue e destrói coisas belas e que pareciam consolidadas na paisagem.

Esse modo de estar no mundo e se bastar produziu sujeitos solitários, rancorosos, incapazes de lidar com a finitude humana e as derrotas de cada dia. E que aprendeu com a tecnologia, numa transição mal feita e mal assimilada, que tudo é pra ontem, que no fim somos todos manada, e não há centímetro a ceder para quem vem.

Há um pouco de tudo nas manifestações golpistas que se espalharam pelo Brasil dede domingo (30), inclusive gente violenta e maus perdedores.

Mas tem sobretudo gente iludida e amedrontada que vivia sozinha até ontem e encontrou uma multidão igualmente amedrontada e formou a própria turma, num exercício flagrante de senso de pertencimento que não encontrariam na fila da bocha, no bingo e na quermesse onde poderiam envelhecer em paz sem a pretensão de se tornarem revolucionários depois da missa. É nessa esquina que a Regina Duarte encontra a Cássia Kis e descobre que não está só.

O medo estremece as bases da razão.

E quem nos quer enlouquecer não tem nada a apresentar ao país se não violência, polarização, saudade de um falso passado de glórias e desinformação para estimular o medo do outro: da esquerda, dos estrangeiros, das minorias e de tudo o mais que agudiza a sensação de estarmos cercados, em perigo e risco constante.

Quando o medo nos tira do território da razão, ele leva uma multidão às ruas, como numa certa Alemanha dos anos 30, para gritar e lutar em defesa não de um país, mas das obsessões de um líder igualmente inseguro, apavorado e com medo da derrota, da decadência e da finitude. Do outro, enfim, que não se reconhece se não entre seus iguais. Todos ali, líderes e liderados, precisam de um imigo para produzir coesão.

Não tem como dar certo.

Quer maior sinal de alienação da realidade do que usar crianças como escudo humano em protesto em defesa da... família?

O Brasil que saiu das urnas, após dois anos de pandemia e confinamento, é um Brasil com a saúde mental dinamitada. Todos nós sentimos o baque.

Desconfio, e já não temo em dizer, que não precisamos apenas das autoridades e das torcidas organizadas para desmantelar um bloqueio que é sobretudo psíquico. Precisamos também de um consenso básico sobre o que aflige essa multidão e por quê.

Ninguém a essa altura estaria sofrendo para sair de casa e chegar ao trabalho se lá atrás um militar perturbado que hoje não aceita a derrota tivesse aceitado se deitar num divã e começado a falar sobre sua relação com os pais, os filhos, as mulheres de sua vida, seus fantasmas internos alimentados por nióbio etc.

O perigo de elaborar a frustração pessoal com armas é a guerra. É por isso que tentamos rir das notícias do absurdo enviadas do front e não conseguimos. Ou não aprendemos nada com o século 20?

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL