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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Pesquisa mostra como adesão a teorias conspiratórias ameaça democracia

A Terra é plana? Para 20% da população, sim - Divulgação/Netflix
A Terra é plana? Para 20% da população, sim Imagem: Divulgação/Netflix

Colunista do UOL

06/07/2022 04h01

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Chinelo virado de costas pode matar a mãe.

Tomar café no sol entorta a boca. Fazer a barba depois do almoço também.

Quem aponta para estrela acorda com verruga no dedo.

À noite é bom não assobiar. As cobras podem aparecer.

Se a criança estiver deitada, nunca pule por cima dela. Fizeram isso com Joãozinho e ele nunca mais cresceu.

Lendas assim eram espalhadas aos montes pelos antigos. Em nossa cidade, meu avô era um dos grandes difusores de correntes do tipo. Havia outras.

John Lennon, para os adultos, era o anticristo. Paul McCartney estava morto e foi substituído por um ator canhoto. O original era destro.

Em Brasília, os políticos se reuniam para metralhar imagens de santo em cultos macabros.

Ah, sim: meu vô morreu sem nunca admitir que Neil Armstrong tenha de fato ido até a Lua (um antigo vizinho jurava que o primo do amigo do irmão estava nos EUA em 1969 e confirmou a farsa).

Outros tempos aqueles em que a gente ouvia (e acreditava em) conversas do tipo, e evitava beber leite para não encurtar nossa passagem pela terra plana. Nas gerações seguintes, gostamos de pensar que o maior acesso à informação e à universidade reduziram a aderência a crendices populares. Foi mesmo?

Uma pesquisa divulgada no fim de semana pelo jornal O Globo chamou a atenção pela quantidade de pessoas adeptas ainda hoje a teorias da conspiração e outras lendas.

Segundo o levantamento "A cara da democracia", quase três em cada dez brasileiros afirmam em pleno 2022 que o homem jamais pisou na Lua.

Índice parecido diz acreditar que existe uma conspiração global da esquerda para tomar o poder.

Mais: de cada dez pessoas com quem você conversar, duas dirão que a Terra é plana.

E metade (metade!) da população está convicta de que o coronavírus foi criado pelo governo chinês.

Até então, jurava que o fenômeno estava restrito a meu círculo pessoal. Lembro do susto que tomei ao saber que alguns vizinhos realmente acreditavam que a pandemia era uma grande farsa inventada pelo gigante asiático só para vender vacinas. A descrença nos imunizantes era proporcional à fé na cloroquina. E, concomitantemente, na ideia de que havia outra conspiração em curso para que você desacreditasse nas propriedades milagrosas dos medicamentos sem eficácia comprovada.

A paranoia era porta de entrada para outras crenças. Uma delas dizia que o imunizante era só metade do caminho para implantação de chips em nossos corpos aprisionados dali em diante.

A adesão a conversas do tipo não é só "coisa de ignorante", como pode imaginar o senso comum.

Fosse assim, não seríamos o país onde sujeitos conhecidos como "Sheik" ou "Faraó do Bitcoin" fazem uma multidão de vítimas entre alguns endinheirados e graduados. Estamos, afinal, no país onde um coach messiânico convence uma galera a pagar para subir numa montanha e aprender a transformar experiência de quase morte em fortuna — e depois se candidata a presidente.

O encontro entre a embromação e o desejo de ser enganado não é privilégio de classe.

O terraplanismo, por exemplo, até tem maior adesão entre pessoas que só completaram os anos iniciais do ensino fundamental (27%), segundo a pesquisa. Mas o índice na população geral, de 20%, não é desprezível.

A tese da conspiração global de esquerda é mais popular entre os mais escolarizados (37%) do que entre quem ficou nos anos iniciais da escola (28%).

Já a crença na conspiração chinesa para a pandemia é mais democrática: atinge a todos independentemente do grau de instrução.

Meus vizinhos, que não faltaram à escola nem foram privados do direito à informação de qualidade (que rejeitam), certamente estariam nessa. Eles fazem parte de um grupo que jura deter uma espécie de verdade VIP que os donos do poder não querem que você saiba.

Os segredos são vazados em grupos de WhatsApp em que referendam todo tipo de crença, paranoia e mania de perseguição.

Mal sabem que estão na ponta da linha de uma imensa fábrica de desinformação com propósitos políticos — justamente o que dizem temer.

Não é à toa que o bolsonarismo fez dessa fábrica uma plataforma de conversão em votos. Dias atrás, um dos seguidores mais fiéis da seita saiu espalhando por aí uma mentira deslavada sobre uma suposta cidade fundada no coração da Amazônia antes mesmo da era dos dinossauros. Era só ligar lé com cré para desmentir uma história que gerou mais gargalhada do que comoção, inclusive por parte deste autor.

Mas, como bem lembrou minha colega Madeleine Lacsko, aqui no UOL, conversas estranhas do tipo não estão para brincadeira. São uma forma muito eficiente de testar a aderência dos seguidores. Afinal, "se eles não contestam prontamente absurdos como Ratanabá, significa que estão prontos a relaxar os limites cognitivos sobre uma infinidade de outros temas".

De fato. Se alguém acredita em terra plana, por que não acreditaria no mito de que um ex-militar indisciplinado e abrigado na política para não ser expulso do Exército seria um bom presidente?

A pesquisa sobre a adesão dos brasileiros às teorias mais estapafúrdias é um material e tanto para entender o estrago a que chegamos.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL