'Quem entrava não saía': última colônia psiquiátrica do país fecha no Rio

Às 9h da manhã de sexta-feira (14), Maurílio Bellot, 69, está agitado, sentado à porta da casa do núcleo Franco da Rocha, em Jacarepaguá, no Rio. Em uma hora, um dos últimos pacientes do Instituto Municipal de Assistência à Saúde Juliano Moreira — ex-Colônia Juliano Moreira, um dos maiores manicômios do país e o único ainda em funcionamento — vai se mudar para uma residência terapêutica.
Diversos pacientes como ele, com histórico de internação de longa duração, foram transferidos para moradias fora do hospital psiquiátrico e ganharam direito à Bolsa Rio, no valor de dois salários mínimos, para facilitar sua reintegração social.
Diagnosticado com esquizofrenia leve, Bellot não tem família que cuide dele e esteve internado por mais de duas décadas em manicômios como o Juliano Moreira e o Instituto Doutor Francisco Spinola. Ele já pode andar sozinho, embora o uso prolongado de medicação durante as internações tenha prejudicado sua capacidade de se comunicar.
Naquela manhã, um motorista e dois funcionários da ex-colônia o acompanharam no trajeto de 30 minutos até a nova residência, em Bonsucesso. Ao chegar, foi cumprimentado pelos colegas de casa, pela equipe de funcionários e se sentou para ver TV.
A partir de agora, Bellot tem autonomia para fazer escolhas simples como o que quer assistir ou o que comer. "Vai precisar só negociar o canal com outro morador que também ama TV", brinca a musicoterapeuta Andréa Farnettane, 53, diretora do Caps (Centro de Atenção Psicossocial) João Ferreira da Silva Filho.
'Desviantes sociais'
Idealizada no início do século 20 com o intuito de abrigar pessoas classificadas à época como doentes mentais, alcoólatras e "desviantes sociais", a colônia Juliano Moreira fica numa área de 7.000 km².
Em 1924, foram transferidos para lá cerca de 300 internos das colônias São Bento e Conde de Mesquita — ambas extintas —, na Ilha do Governador. Dez anos depois, o número de internos dobrou. E, em 1936, o primeiro pavilhão feminino foi construído.
No final da década de 1930, a capacidade da colônia era de 2 mil pessoas. Em 1967, ela se tornou o terceiro complexo hospitalar mais populoso do país. Em 1971, eram 5.300 os internos.
"[Localizado] em terras distantes, este é um lugar destinado à exclusão. Quem entrava, não saía", conta o enfermeiro carioca Alexander Ramalho, 49, diretor do Instituto, que há quatro anos trabalha no processo de encerramento do manicômio.
O complexo abrigava 79 hospitais e pavilhões. Ramalho enumera: "Aqui já teve manicômio judiciário, setor de internação de crianças e adolescentes, pavilhão de trabalho agrícola". Dentro dos casarões, galpões gigantes abrigavam os internos.
Quem foi Juliano Moreira
Originalmente chamada Colônia de Psicopatas Homens, o manicômio foi renomeado Colônia Juliano Moreira em homenagem a um de seus idealizadores. Primeiro médico negro no país, o baiano filho de lavadeira entrou na Faculdade de Medicina da Bahia em 1886, com apenas 13 anos, e defendeu tese sobre a sífilis.
Moreira participou de congressos internacionais e foi o responsável por trazer a técnica da "laborterapia" — o uso do trabalho na agricultura como forma de tratamento terapêutico — ao Brasil.
Em 1903, assumiu a direção do Hospício Nacional de Alienados e "participou da negociação da desintegração do terreno da Colônia e da transferência dos internos da Ilha do Governador", conta Hugo Fagundes, superintendente de saúde sental da secretaria municipal do Rio.
Crítico da laborterapia, Fagundes explica que o objetivo do médico baiano era que o trabalho na agricultura auxiliasse na melhora dos pacientes. No entanto, ao ser implementada, a terapia "degringolou": os internos trabalhavam obrigados e sem remuneração, além de serem tratados com violência.
Os médicos da colônia executavam também a lobotomia — intervenção cirúrgica no cérebro com efeitos colaterais, como déficit intelectual e dependência para viver, intervenção que foi extinta na década de 1960.
Luta antimanicomial
Até a década de 1980, a imprensa nunca havia entrado na instituição. Uma reportagem do repórter Samuel Wainer Filho para o programa "Fantástico" divulgou os maus-tratos, os pavilhões superlotados e exibiu o "bolo" — celas sem camas nas quais internos se amontoavam para não sentir frio.
O programa também revelou que, além da lobotomia, eletrochoques e celas solitárias eram usados como métodos punitivos. No pavilhão 10, onde ficavam internos que não tinham o direito de sair ao ar livre, "existiam grades e as pessoas faziam suas necessidades expostas a todo mundo em banheiros sem divisórias", conta Ramalho.
Foi no final de 1970, com a luta antimanicomial, que funcionários, familiares e pacientes se mobilizaram por mudanças. As discussões pela reforma psiquiátrica no Rio se deram, sobretudo, no auditório da própria Colônia Juliano Moreira, no prédio administrativo que atualmente abriga o Museu Bispo do Rosário — que foi interno do terrível pavilhão 10 — e exibe obras de ex-moradores e ferramentas utilizadas para punição dos pacientes.
Nos anos seguintes, foi implementada a Bolsa Etapa, programa de remuneração aos internos que realizassem atividades laborais. Foram extintos os métodos violentos e novos profissionais foram contratados para humanizar o atendimento. Simultaneamente, a colônia passou a não aceitar novos internos caminhando para a sua desativação.
40 anos de desocupação
"O que ocorre hoje é o resultado das lutas de 1970", resume o diretor Ramalho, para quem a reforma psiquiátrica é, sobretudo, "dar direito à cidadania aos usuários da rede de saúde mental do Rio''.
Por isso, antes das transferências foi preciso criar uma rede que recebesse os pacientes na cidade. Além disso, "a pessoa deve estar clinicamente estável, ter documento e ser amparada economicamente".
Ainda em 1996, foi realizado um censo dentro dos hospitais psiquiátricos do Rio, onde foram encontradas 4.000 pessoas. No bairro com maior concentração de usuários, o Irajá, foi construído o primeiro Caps.
Em complementação aos CAPS, em 2000 foram criadas as residências terapêuticas públicas. Atualmente, são 97 residências com 546 moradores na capital carioca — sempre com a preocupação de transferir os usuários aos bairros em que viviam antes da internação. A preparação para a saída até o dia de despedida da instituição psiquiátrica leva de um a dois meses.
Vida nova
Na manhã daquela sexta-feira, Maurílio Bellot foi presenteado pelos funcionários do Franco da Rocha com um enxoval. Na nova residência, que tem agora seis moradores, ele divide o quarto com outro interno.
São três pavimentos: o térreo com cozinha, dois banheiros, sala, área externa e um cômodo extra. O segundo andar com três quartos e dois banheiros e o terraço, destinado à lavanderia.
Sentado na varanda em frente a uma mesa farta de café da manhã, Maurílio ri e tira fotos com todos. Os profissionais não escondem o entusiasmo com a chegada do novo morador.
Ainda sem projeto definido, o núcleo Franco da Rocha aguarda por uma nova função. Enquanto isso, os núcleos foram sendo substituídos por conjuntos habitacionais, Caps, instituições de atendimento à criança e adolescente, hospitais de atendimento à população em geral e um núcleo de memória.
"Ainda temos hospitais psiquiátricos como o [Instituto Philippe] Pinel na cidade, mas que não são destinados a internação de longa duração", explica Alexander Ramalho. "Fechar o núcleo é encerrar um ciclo de manicômios do Rio."
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