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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Você não teme que o Brasil se transforme em uma nova Alemanha dos anos 30?

O ex-presidente Fernando Collor faz campanha usando camisa número 22 da seleção. Parece algo? - Divulgação
O ex-presidente Fernando Collor faz campanha usando camisa número 22 da seleção. Parece algo? Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

20/10/2022 04h00

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No famoso encontro em que recebeu apoio de cantores sertanejos, Jair Bolsonaro (PL) fez questão de dizer, em seu discurso de agradecimento, que o Brasil está cercado. Fazemos fronteiras, afinal, com países "socialistas" como Argentina, Chile e Venezuela — nações que não surgem por acaso no discurso e ocupam, mais do que uma obsessão psíquica, um argumento político central da campanha do presidente.

Diante da fala, como quando alguém me pergunta se não tenho medo de o Brasil virar um país comunista (nessas horas, não basta dizer que, em pouco mais de 13 anos de governos petistas, não passamos nem perto disso), corri para conferir uma lista formulada há anos anos por Umberto Eco para identificar os passos de um país em direção ao fascismo — este sim, um medo histórico que deveria estar em pauta.

Um dos traços citados pelo autor italiano é a obsessão pela conspiração, estratégia adotada por líderes extremistas com o intuito de fazer seus seguidores se sentirem sitiados e em risco. O discurso é quase sempre calibrado com uma dose extra de xenofobia.

Pela fala de Bolsonaro e seus seguidores, o Brasil se tornou uma ilha cercada de gente malvada que fala espanhol por todos os lados. No debate do UOL, ele nem corou ao dizer que os venezuelanos que fogem de seu país chegam ao Brasil sem cães e gatos. "Sabe por quê?", ele perguntou. "Porque os animais foram comidos na Venezuela. Pobreza, miséria. O único que vive muito bem lá, um dos raros, é o próprio Maduro."

O tal sumiço dos animais venezuelanos é uma das muitas fanfics usadas por Bolsonaro para animalizar adversários e espalhar terror e confusão sem prova ou compromisso com a realidade.

Não faz muito, o presidente retratou como prostitutas um grupo de jovens venezuelanas por quem disse ter pintado "um clima" ao ver que elas andavam bonitas e bem vestidas num sábado à tarde. O tiro, como se sabe, saiu pela culatra, mas não se pode perder de vista onde ele queria chegar: Bolsonaro pretendia mostrar, novamente sem qualquer base na realidade, que, em um regime de esquerda, a prostituição não é só um recurso para se fugir da pobreza, mas uma ameaça às famílias dos países que as acolhem.

Pela estratégia, as jovens venezuelanas, descritas com as tintas do mais bruto machismo (outro item para ticar no fascismo à brasileira), são mais um dos muitos riscos à família tradicional brasileira.

Pintar o estrangeiro como uma aberração moral, assim como o nacionalismo exacerbado, é uma fórmula batida da extrema direita. Aqui ela é usada para convencer papai e mamãe de que o maior perigo às juras de fidelidade de seu casamento é, na verdade, mulheres imigrantes que fogem de um país governado por um esquerdista. Bolsonaro fez isso usando corpos adolescentes, e isso deveria causar mais choque do que um falso complô para a democratizar banheiros unissex e exterminar nosso modo de vida baseado em Deus, pátria e família.

Ah, sim: o culto à tradição é também um sinal de que o fascismo já habita entre nós. Ele se revela quando os planos para o futuro se confundem com o medo das diferenças (outra característica do fascismo, aliás) e com o apelo ao retorno a um passado glorioso. Saudosos da ditadura entenderão.

Desprezo por intelectuais e universidades (também conhecido como culto à ação pela ação, que opõem os verdadeiros trabalhadores brasileiros aos hipócritas engomadinhos que só estudam e supostamente não conhecem a realidade do país), a ojeriza ao pacifismo (armai-vos uns aos outros), a crença de que o líder é a voz do povo (ou do DataPovo, como prefere dizer), o apelo à frustração social de quem perdeu dinheiro, prestígio ou capital político nas últimas crises econômicas (ou sanitárias), o desprezo pelos fracos ("os maricas vão ficar de mimimi pelos mortos da covid até quando?") também são, segundo Umberto Eco, características comuns do fascismo recauchutado.

Temas como família, religião e aversão ao socialismo foram evocados pelos sertanejos, no começo da semana, para referendar o endosso à pauta bolsonarista, como se em algum momento nossas famílias, nossa liberdade religiosa e nossas propriedades estivessem a perigo.

O Brasil, caso dê a Bolsonaro uma bota no dia 30, não corre o menor risco de colocar em risco nossas famílias e religiões, nem de se converter em um regime socialista. Nada disso aconteceu entre 2003 e 2016. Não viramos uma nova Nicarágua nem outra Venezuela.

Mas, em caso de vitória, com um Congresso ainda mais conservador e a possibilidade de o futuro governo obter maioria no Supremo Tribunal Federal, as chances de o Brasil sob Bolsonaro acelerar uma guinada em direção ao resgate de outra experiência histórica, com os camisas negras, cegos pelo líder, agora vestidos de verde e amarelo, são consideráveis.

Como definiu em uma coluna recente o jornalista Rodrigo Casarin, do UOL, o Brasil atual praticamente gabarita os traços do fascismo apontados por Umberto Eco em "O Fascismo Eterno".

Quando dois candidatos disputam a Presidência e só um já empossou secretário de Cultura neonazista ou anda com quem recebe neta de nazista no gabinete, é saudado por líder de seita supremacista e é tratado como herói em páginas administradas por células extremistas, dessas que defendem a morte e a violência contra gays, mulheres e nordestinos, o que resta, como mostrou Gregorio Duvivier, também em uma coluna recente, é chamar as coisas pelo nome e peneirar os medos fabricados dos medos reais. O meu é que o Brasil se torne não uma nova Venezuela a partir de outubro, mas uma nova Alemanha. A Alemanha dos anos 1930.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL