'Podemos seguir o diabo agora?' A polêmica entre os escoteiros brasileiros
"Hoje decidimos se Deus fica ou não fica no movimento escoteiro. A que ponto chegamos, senhores, onde Deus é capaz de incomodar alguns...", disse a jovem Karina Baéz, durante a Assembleia Nacional dos Escoteiros do Brasil, em meados de setembro.
Algumas horas antes, a imagem da bandeira do Brasil ocupou a tela inteira da transmissão ao vivo, pelo YouTube. Todos os presentes, uniformizados, fizeram a saudação a ela.
O gesto da mão direita — polegar sobre o mindinho e os três outros dedos estendidos — vem do clássico sinal escoteiro. Os três dedos esticados representam as três partes da promessa escoteira: deveres para com a pátria, deveres para com o próximo e deveres para com Deus. É justamente o debate em relação ao divino que tem agitado a comunidade.
Estava em pauta a votação de uma proposta para alterar os princípios do movimento escoteiro — espécie de guia ético que orienta a conduta do grupo. Até então, um desses princípios era intitulado como "relação com Deus", e pregava que os jovens deveriam "ir além do mundo material", "seguir caminhando em busca de Deus" e abrir-se "ao interesse, à compreensão e ao diálogo com todas as opções religiosas" para reconhecer, viver e compartilhar "o sentido transcendente de sua vida, sem posicionamento sectário e sem fanatismo".
A proposta substituiria a palavra "Deus" por "vida espiritual", além de outras mudanças. "Temos escoteiros de outras religiões, como teístas [que creem em um deus, ou mais de um deus] ou budistas, que não se sentiam confortáveis com a palavra 'Deus'", conta Matheus Valois Serra, 22, católico e representante da região Nordeste no Conselho de Administração Nacional. "Propusemos trocar essa palavra por espiritualidade, já que 'deus' está dentro do leque da espiritualidade."
A ideia não foi muito bem recebida por cristãos e conservadores. Ela deveria ter sido votada em maio, mas os delegados regionais — que têm poder de voto na assembleia — pediram mais tempo para analisar a proposta. A polêmica com "deus" ficou para a reunião de setembro.
'Deus é mais'
De maio a setembro, alguns delegados aproveitaram para visitar grupos escoteiros dos seus estados e conversar com chefes e jovens.
Na regional do Paraná, optaram por abrir uma votação para que cada grupo escoteiro se posicionasse. Resultado: 59% reprovavam a mudança, 21% a aprovavam e 19% queriam continuar o debate. Quem lê os comentários de uma postagem do Facebook pode até achar que se tratava de uma página religiosa. "Deus é mais", escreveu uma chefe escoteira de Curitiba. "Que assim seja pela glória do nosso SENHOR DEUS", publicou outro.
O escotismo é um movimento feito por jovens e para os jovens, com o auxílio dos adultos. Foi criado pelo militar inglês Robert Baden-Powell, em 1907. Originalmente, os princípios de Powell mencionavam deveres para com Deus — os primeiros escritos falam em "prática da Cristandade" — e o Rei. Com a expansão do movimento escoteiro para outros países, adaptações locais transformaram "Rei" em "Pátria". Agora, chegou a vez de repensar a fé.
Dos seis aos dez anos, os participantes são chamados de "lobinhos" e participam de brincadeiras para desenvolver o trabalho em equipe. Dos 10 aos 15, viram "escoteiros". Dos 15 aos 17, os jovens entram no ramo "sênior" e realizam atividades movidas a desafios. Dos 18 aos 21, os jovens viram "pioneiros" e passam a realizar atividades para ajudar ao próximo e exercitar a cidadania. Depois dessa idade, pode-se participar dos grupos como chefe escoteiro voluntário.
"Foi em um dos fóruns nacionais do ramo sênior, sem a interferência de adultos, que os jovens trouxeram essa demanda da espiritualidade. E não houve uma única manifestação contrária", explica Valois.
Em 2017, a Conferência Mundial Escoteira, realizada no Azerbaijão, aprovou alterações e recomendou que as direções criassem promessas alternativas. Foi a partir dessa recomendação que o conselho pautou as mudanças nos princípios. Mesmo assim, não foi pautada uma mudança na promessa escoteira ('Prometo, pela minha honra, fazer o melhor possível para: cumprir meus deveres para com Deus e minha Pátria; ajudar o próximo em toda e qualquer ocasião; e obedecer à Lei Escoteira'). A mudança era somente nos princípios do projeto educativo. Mas nem todos compreenderam.
"Querem tirar Deus da promessa, uma ideia simples...Criem um movimento e caso encerrado", disse um chefe escoteiro de Londrina (PR) nas redes sociais.
"A proposta era de inclusão. E a promessa nunca esteve ameaçada", explica Valois. Há, portanto, uma "onda de desinformação" entre os escoteiros.
Um dos membros do comitê nacional de espiritualidade dos Escoteiros do Brasil, que é judeu, sofreu ataques antissemitas nas redes sociais por ser favorável à mudança. Outras pessoas resgataram fotografias de um membro na Parada LGBTQIA+, de 2015, e usaram-nas para dizer que ele promovia uma agenda homossexual e contra Deus no movimento escoteiro.
Os Escoteiros do Brasil se posicionaram. No mesmo dia, publicaram nota em seu site oficial, afirmando que "qualquer tipo de discurso preconceituoso e intolerante são incompatíveis e divergem com os valores e fundamentos desta instituição e do Movimento Escoteiro, no mundo todo".
"A sociedade se reflete dentro do movimento porque estamos inseridos nela", explica o católico Lukas Palermo, 21, escoteiro de São Paulo favorável à mudança.
'Que Deus tenha misericórdia'
A Assembleia Nacional começou às 9h e durou seis horas e quinze minutos. Depois da saudação à bandeira brasileira, os participantes votaram pela composição da mesa diretora da reunião e deliberaram sobre a aprovação da ata da última assembleia — só esse preâmbulo durou duas horas. A partir daí, as discussões se centraram no principal: a alteração no princípio que falava de Deus. Todos que pediram a palavra puderam falar por dois minutos.
Os ânimos se exaltaram diversas vezes. Para apaziguar, a regional de São Paulo propôs um texto alternativo. Em vez de trocar "deus" por "espiritualidade", haveria uma mistura das duas, com o título "o compromisso com o aprimoramento da sua espiritualidade, seja ela inspirada em Deus ou em outras convicções".
Mas o grupo contrário à mudança não ficou satisfeito.
A mesa diretora colocou em votação proposta original. A maioria (57%) rejeitou a mudança. "O voto secreto foi muito falho, deveria ter sido aberto", reclama Flaviane Ramalho, 41, diretora regional em Mato Grosso. Quando a proposta original foi rejeitada, as pessoas que se manifestavam pelo chat do YouTube passaram a publicar sem parar. "Deus seja louvado", "Deus é fiel", "Amém, ninguém maior que Deus" foram alguns dos comentários.
Depois de mais três horas debatendo, a mesa diretora procedeu para a votação da proposta de São Paulo. Nesse momento, muitos acusaram a assembleia de estar "promovendo um golpe". "Condução déspota", afirmou um chefe. "Respeitem a decisão da maioria", disse outro. Típico clima de Congresso Nacional.
A proposta mais inclusiva foi aprovada com 61% dos votos, contra 29% que disseram não e 10% que se abstiveram. Dos que estavam participando da assembleia com câmera e microfone, ninguém questionou o resultado abertamente. Mas, nos comentários do chat, pipocaram acusações.
"Malditos progressistas", "Que Deus tenha misericórdia de todos" e "Podemos seguir o diabo agora?" foram alguns dos comentários que apareceram, além de outras acusando fraude e falando em voto impresso.
Karina Báez, que participou da assembleia, não gostou da mudança. "Penso em sair do movimento, infelizmente. Mas também penso que se os bons saírem, só os ruins vão ficar."
"É um grupo pequeno, mas que faz muito barulho. As mesmas cinco pessoas comentaram várias vezes. O volume do barulho não se consolida em tamanho", disse Valois.
Nas redes sociais, alguns aproveitaram para desabafar. Flaviane, que é evangélica, publicou no Facebook que estava renunciando ao cargo de membro do corpo jurídico da instituição — ela é advogada e lidera uma equipe que pede revisão das mudanças.
Para ela, existem duas saídas possíveis: a judicialização da questão ou o desligamento dela e de outros grupos da união dos Escoteiros do Brasil.
Procurada, a direção nacional dos Escoteiros do Brasil afirmou que, até o momento, duas unidades escoteiras — das mais de 1.500 — pediram desfiliação. "Toda unidade que sai é uma perda, não é uma coisa legal. Mas o objetivo da mudança é incluir mais pessoas", explica Marjorie Friedrich, responsável pela comunicação da associação.
Com o avanço da vacinação, resta saber como a insatisfação dos contrários vai se manifestar fora das redes sociais.
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