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'Me senti excluída': ex-moradores se dizem esquecidos na Vila Itororó

Vila Itororó, no bairro da Bela Vista, em São Paulo, reabriu ao público em 10 de setembro - Adriano Vizoni/Folhapress
Vila Itororó, no bairro da Bela Vista, em São Paulo, reabriu ao público em 10 de setembro
Imagem: Adriano Vizoni/Folhapress

Mateus Araújo

Do TAB, em São Paulo

09/10/2021 04h00

Sentada em frente à casa onde morou durante 16 anos, Daiane Dias do Nascimento, 26, parecia desconectada do tempo. Por alguns minutos, ela se isolou das pessoas ao seu redor. Não queria papo com ninguém, só observar o que havia acontecido ali. No lugar da árvore que fazia sombra para suas brincadeiras de infância, há agora um jardim com flores coloridas. Onde havia um corredor para interligar os vizinhos, foram instalados portões marrons, e, apesar da curiosidade da jovem, não dá mais para saber o que ficou lá dentro. "Me senti excluída da história", conta, chorando, dias depois, em conversa com o TAB.

Daiane é ex-moradora da Vila Itororó, local que foi moradia de dezenas de imigrantes e operários da década de 1940 a 2011, na Bela Vista, região central de São Paulo. A área foi inaugurada pelo comerciante português Francisco de Castro, em 1922. Em torno do palacete onde morava, ele construiu casas para serem alugadas. Alguns anos depois, a área terminou sendo hipotecada por causa de dívidas. Em 1932, com a morte de Castro, a Vila foi doada à Santa Casa de Indaiatuba, que usava o valor arrecadado com os aluguéis para manter as ações filantrópicas.

Nos anos 1980, com as casas já antigas e cheias de problemas estruturais, o governo do estado declarou a Vila Itororó como área de interesse público e, desde então, a Santa Casa deixou de cobrar os aluguéis e de fazer manutenção na Vila. Os moradores assumiram a partir daí os imóveis. A Vila foi tombada como patrimônio municipal, em 2002, e estadual, em 2005. Em 2006, o governo iniciou o processo de desapropriação das 100 famílias nos sobrados, para usá-lo como espaço cultural.

A Vila foi entregue pelo governo de São Paulo para ser administrada pela Secretaria Municipal de Cultura, em 2012. Naquele mesmo ano, 18 famílias que ainda estavam no local — incluindo Daiane, seus pais e um irmão —, foram obrigadas pela Justiça a sair, com ação que envolveu a polícia militar.

A estudante de psicologia Daiane Dias do Nascimento, que nasceu e cresceu na Vila Itororó - Acervo pessoal - Acervo pessoal
A estudante de psicologia Daiane Dias do Nascimento, que nasceu e cresceu na Vila Itororó
Imagem: Acervo pessoal

"Cresci ali. Era um lugar de muito [migrante] nordestino. Minha mãe é baiana, meu pai era paraibano. Casaram jovens, e não tinham condições de pagar aluguel. Por isso foram morar lá", lembra a estudante de psicologia, filha de um casal de auxiliares de limpeza.

"Minha casa estava bem precária. Em algumas casas, quando chovia, tinha infiltração, outras estavam desgastadas, mas era processo do tempo", conta. "Mas acredito que quando disseram que precisávamos sair para reformar, que era insalubre, foi uma desculpa para tirar a gente de lá. Podiam ter arrumado e colocado a gente de volta."

O projeto público, no entanto, não previa a reforma das casas (a maioria em ruína) para reinstalação dos antigos moradores.

Conjunto de prédio restaurado na Vila Itororó, com iluminação especial  -  Adriano Vizoni/Folhapress -  Adriano Vizoni/Folhapress
Conjunto de prédio restaurado na Vila Itororó, com iluminação especial
Imagem: Adriano Vizoni/Folhapress

Saudosa Maloca

Foram nove anos de obras desenvolvidas a partir de uma parceria entre a prefeitura e o Instituto Pedra. Em 10 de setembro, a Vila Itororó reabriu ao público, e agora oferece programação variada de cultura e formação artística. A primeira etapa de obras custou cerca de R$ 15 milhões, com incentivo da Lei Rouanet. O espaço está aberto à visitação gratuita de terça a domingo, sem necessidade de agendamento.

Logo na entrada, há um conjunto de 11 casas restauradas. Nelas funcionam salas administrativas do centro, espaços de atividades educativas e uma chamada "casa exposição", onde se assiste a um documentário sobre as obras na Vila e os imbróglios da desapropriação. Nesse ambiente, também foram preservadas as paredes internas com marcas de infiltração, o tanque de lavar roupa, uma privada e as poucas janelas para ventilação, confirmando a informação do filme sobre a condição insalubre em que os moradores viviam. A visita é feita ao som do samba "Saudosa Maloca", na voz de Elis Regina.

Higor Advenssude, diretor do Centro Cultural Vila Itororó - Adriano Vizoni/Folhapress - Adriano Vizoni/Folhapress
Higor Advenssude, diretor do Centro Cultural Vila Itororó
Imagem: Adriano Vizoni/Folhapress

A maior parte das construções continua em ruína, mas deve ser restaurada para fins culturais numa próxima etapa do projeto, em fase de captação de financiamento, de acordo com o diretor do Centro Cultural Vila Itororó, Higor Advenssude. No pátio externo — que à noite recebe uma iluminação cênica — estão outras casas, o palacete de Francisco de Castro, um restaurante e a primeira piscina de São Paulo, adaptada com cenografia para receber apresentações musicais. Há, ainda, uma réplica da fonte do Itororó, mas que em 6 de outubro, quando o TAB visitou o espaço, estava interditada para manutenção.

"A Vila já está integrada com a cidade", afirma Advenssude. Durante os finais de semana, quando há maior fluxo de público, o local chega a receber cerca de 4 mil pessoas. Em breve, o centro cultural deve ampliar suas atividades. Além de residências artísticas que já acontecem por lá e outras apresentações, ainda este mês a escola de samba Vai-Vai passará a fazer ensaios abertos no pátio.

No passeio pela Vila Itororó também é possível ouvir áudios narrados por atores e atrizes sobre as histórias do local, organizados como roteiro teatral. Cenas que reorganizam a memória em torno de um símbolo da capital paulista, mas que fizeram algumas pessoas se sentirem excluídas de uma narrativa da qual são personagens.

Em frente à casa onde Daiane morou, foi criado um jardim - Mateus Araújo/UOL - Mateus Araújo/UOL
Em frente à casa onde Daiane morou, foi criado um jardim
Imagem: Mateus Araújo/UOL
A piscina da Vila Itororó, onde acontecem apresentações musicais - Mateus Araújo/UOL - Mateus Araújo/UOL
A piscina da Vila Itororó, onde acontecem apresentações musicais
Imagem: Mateus Araújo/UOL
A 'casa exposição' manteve a estrutura antiga, com marcas de infiltração e uma privada - Mateus Araújo/UOL - Mateus Araújo/UOL
A 'casa exposição' manteve a estrutura antiga, com marcas de infiltração e uma privada
Imagem: Mateus Araújo/UOL

'Não há quem nos ouça'

Para contar suas próprias histórias, Daiane e outros ex-moradores voltaram à Vila Itororó em 19 de setembro, em uma manifestação. Desde a desapropriação, o grupo reivindica o direito de posse das casas. Hoje, todos vivem em conjuntos habitacionais, pagando um financiamento de moradia popular à CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano) com duração entre 20 a 30 anos.

O grupo caminhou pelo espaço, e em frente aos prédios parou para contar um pouco das histórias de quem viveu ali. Lembraram também dos eventos culturais que realizavam no pátio, como festa junina e roda de samba. "A vida e a alegria ali eram os moradores", lembra Daiane.

A funcionária pública Antônia Cândido, 59, era representante da Associação de Amigos e Moradores da Vila Itororó na época da desapropriação. Até hoje, diz sofrer com a saída dali. "Foi tudo tão violento que não gosto nem de falar sobre isso", diz. Ao voltar ao lugar onde viveu durante 32 anos, se emocionou novamente. "Falavam que iam restaurar, porque havia perigo, e não fizeram nada no palacete. Eles precisavam pelo menos nos dar essa explicação", reclama. Ela se refere ao principal prédio, que continua sem restauro. "Ninguém nunca falou com a gente nem chamou para discutir sobre a Vila. Mais fácil deixar tijolo do que contar as histórias reais, os vídeos com as histórias de quem viveu aqui. Virou um espetáculo."

Antonia Candido, ex-moradora da Vila Itororó. 2 jun. 2012 - Ze Carlos Barretta/Folhapress - Ze Carlos Barretta/Folhapress
Antonia Candido, ex-moradora da Vila Itororó. 2 jun. 2012
Imagem: Ze Carlos Barretta/Folhapress

"São pessoas e pessoas", pondera o diretor Higor Advenssude, sobre as reclamações. Ele explica que mantém contato com alguns ex-moradores, incluindo uma família que morou na Vila de 1958 a 1998 e visitou recentemente o centro cultural. "Sete, oito mulheres negras, de várias gerações de uma mesma família, vieram me abordar. Falaram que moraram aqui, e abri a casa para elas. Ficaram emocionadas. Disseram que queriam entregar a máquina de costura da avó delas e o álbum de foto da família", conta. "Vamos fazer um projeto expográfico para receber esses objetos."

Segundo Advenssude, a possível falta de diálogo de que se queixam os ex-moradores foi "muito por conta da pandemia", que impediu a aproximação. Entretanto, reconhece que a "casa exposição" precisa incluir referências diretas às pessoas que viveram no local e ao próprio processo de desapropriação. "Não estamos fugindo desse assunto de jeito nenhum. Pelo contrário. Quando pudermos e conseguirmos, esse assunto é pauta importante."

Não é isso que esperam os ex-moradores. "Não é isso que o governo quer discutir, não há quem nos ouça", afirma Antônia. Com histórias esquecidas e alguns capítulos dolorosos, a ideia do grupo, agora, é registrar tudo em um livro. "Pode até ser um cordel. Precisamos dar vida a isso tudo, espalhar isso aos quatro ventos. Porque fica uma coisa muito doméstica, íntima, nossa. As pessoas precisam nos ouvir, saber de tudo que aconteceu e que nós existimos, vivemos aqui."

Eles já começam a fazer reuniões para desenvolver o projeto, que deve reunir depoimentos, perfis e relatos de situações que enfrentaram. Uma biografia da Vila. "A gente não quer levar para dentro da vila o mote cultural. Não queremos ser mais um espetáculo. Queremos levar para a Vila Itororó a cultura da reivindicação: brigar pelos nossos espaços que estão sendo tomados — seja por especulação imobiliária ou lavagem de dinheiro", afirma. "Isso tem que começar a mudar. É utopia? Pode ser. Mas de alguma coisa pode adiantar."