Topo

Em Brasil polarizado, judaísmo e bandeira de Israel provocam disputas

Homem levanta bandeira de Israel durante posse de Bolsonaro em Brasília; presidente prometeu, durante campanha, transferência de embaixada para Jerusalém - Reuters
Homem levanta bandeira de Israel durante posse de Bolsonaro em Brasília; presidente prometeu, durante campanha, transferência de embaixada para Jerusalém Imagem: Reuters

Edison Veiga

Colaboração para o TAB, de Bled (Eslovênia)

10/05/2020 04h00

Ser judeu no Brasil de hoje consiste em se equilibrar em um ambiente de polarização. De um lado há uma ascendente movimentação neonazista, de extrema-direita, que gera medo e apreensão. De outro, a crítica que tende a ler nos afagos do presidente Jair Bolsonaro ao primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, também de direita, um alinhamento de Bolsonaro à comunidade judaica, numa bizarra conexão entre evangelismo e judaísmo. Além das frequentes bandeiras de Israel nas manifestações dos últimos domingos, em Brasília.

Adriana Dias, antropóloga e pesquisadora na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), identificou 334 células neonazistas em atividade no país. "São poucos os judeus que apoiam Bolsonaro, apesar de ele estar defendendo a extrema-direita de Israel. Mas o que avalio é que o antissemitismo está mais forte no país, com o crescimento do neonazismo, graças a discursos contra os direitos humanos", explica a especialista ao TAB.

"Atualmente, existe uma tendência mundial em adotar regimes de direita ou extrema-direita. Porém, costumo dizer que o antissemitismo não diferencia governos de direita ou governos de esquerda", pontua o historiador Reuven Faingold, PhD em história do povo judeu pela Universidade Hebraica de Jerusalém e diretor educacional do Memorial da Imigração Judaica e do Holocausto, em São Paulo. Faingold cita a história de Israel que, "em 72 anos, alternou partidos políticos de esquerda e direita, coalizões de governo de centro-esquerda e centro-direita".

Brasileiro bonzinho?

Oito décadas depois do Holocausto, cicatrizes antissemitas seguem sendo expostas -- inclusive no Brasil. Em dezembro de 2019, um pecuarista do interior de Minas Gerais foi a um bar ostentando braçadeira com a suástica nazista. Em fevereiro de 2020, um episódio de violência ocorreu em Jaguariúna, no interior paulista: um homem, identificado como judeu e vestindo o quipá sobre a cabeça, foi agredido por três pessoas.

-- Hitler deveria ter matado mais judeus! O único erro de Hitler foi não ter matado mais gente! -- teria ouvido a vítima, enquanto era chutado e espancado pelos agressores.

Entre esses dois fatos houve ainda, em janeiro, um discurso que culminaria na demissão do então secretário de Cultura do governo federal, Roberto Alvim. Com Richard Wagner (1813-1883) ao fundo -- o compositor predileto de Adolf Hitler (1889-1945) --, ele fez um discurso parafraseando o ministro da Propaganda da Alemanha nazista, Joseph Goebbels (1897-1945).

Enquanto saltam aos olhos casos assim, vem a constatação de que o atual cenário de polarização social abriu uma certa caixa de Pandora do brasileiro. Parece que não, não somos uma "democracia racial", como acreditava o sociólogo Gilberto Freyre (1900-1987).

De que maneira a polarização política do mundo -- e do Brasil -- tem a ver com confusões, desrespeito e violência? "De minha parte não tenho dúvidas de que a ascensão da extrema-direita carrega em seu seio o antissemitismo e o racismo. Isto me preocupa demasiadamente", afirma ao TAB o físico, filósofo e historiador José Luiz Goldfarb, diretor de cultura judaica do clube A Hebraica, em São Paulo. "Uma nova investida nazista infelizmente não é fantasia. A cada dia, temos mais dificuldade de entender o nosso mundo. Nuvens de obscurantismo avançam por toda parte. Temos um terreno propício para um líder 'semideus salvador', como foi Hitler, que manipulou a Europa e outras partes do mundo na ponta de metralhadoras e outras armas de destruição."

Devemos investir e resistir contra a ofensiva nazista. Sabemos o que ela pode nos trazer. Infelizmente, conhecemos bem demais essa história. Lutamos para que nunca mais se repita.
José Luiz Goldfarb, diretor de cultura judaica do clube A Hebraica

Coordenadora do Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação da USP (Universidade de São Paulo), a historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro acredita que grande parte do problema resida no desconhecimento geral sobre aspectos importantes da história da humanidade, como o fato de o nazismo ter sido um movimento de extrema-direita. "Isso favorece a construção de 'demônios' e o apelo às conspirações mundiais. Entendo que a diferença está no alvo e na construção da narrativa: no caso do antissemitismo, essa narrativa se faz distinta ao ser direcionada aos judeus e ao Estado de Israel, sem procurar entender que uma 'política de Estado' não deve ser estendida para todo o povo judeu. Tais considerações, talvez, nos ajudem a entender a aproximação de Bolsonaro com Israel que, em alguns momentos, serviu para aumentar a antipatia de alguns setores da sociedade em relação ao povo judeu."

"Demonização" dos judeus

O antissemitismo é algo que remonta às próprias origens do povo judeu — e aparece, em maior ou menor escala, ao longo da história da humanidade. Atenta à questão, a historiadora Tucci Carneiro escreveu o livro "Dez Mitos Sobre os Judeus". Já há uma versão em espanhol e, ainda em 2020, estão para sair as edições britânica, francesa e italiana.

Ao longo da obra, ela esmiúça algumas ideias do imaginário comum que, ao longo do tempo, acabaram criando a hostilidade ao povo judeu. São crenças de que "não existem judeus pobres", de que eles "dominam a economia mundial", "manipulam os Estados Unidos" e "são racistas", por exemplo.

A historiadora começou a pesquisar o assunto ainda nos anos 1970, quando estudou os arquivos da inquisição em Portugal para concluir seu mestrado. Com o passar do tempo, concluiu que os mitos discriminatórios aos judeus não só persistiam, mas se atualizavam. "Por meio da intensa pesquisa no Brasil e no exterior, procurei fazer a desconstrução das múltiplas narrativas e, assim, entender a proliferação dos mitos sobre os judeus e suas consequências -- que culminaram com milhões de mortes durante o Holocausto", afirma ela.

Para Tucci Carneiro, a recorrência dos mitos, até agora, desafia os esforços de minimizar discursos de ódio contra as minorias étnicas e religiosas. "A persistência do discurso antissemita, modelado pela reciclagem dos mitos, demonstra que os judeus continuam vulneráveis aos ataques de grupos nacionalistas — dentre os quais os neonazistas e xenofóbicos", explica. "Enfim, nos dias atuais, os discursos de ódio se apropriam de certos mitos para manter em circulação o antissemitismo que sobrevive sob múltiplas facetas."

Orgulho judeu nas redes

Dentro desse caldo cultural, um movimento pela exaltação do orgulho judaico ganhou força na internet. Com a hashtag #JewishAndProud (#JudeuEOrgulhoso, em tradução livre), no último 6 de janeiro — data chamada de Orgulho Judaico —, judeus passaram a postar depoimentos destacando seus valores culturais e históricos. "[O movimento] surgiu como uma rápida resposta das comunidades judaicas do mundo ao forte antissemitismo que começa a crescer e configurar-se, tanto na Europa como nos Estados Unidos", explica Faingold. "Aqui, na América Latina, e especificamente em pequenas comunidades do sul do Brasil, tivemos casos de pichações em cemitérios e desenhos de cruzes suásticas em muros de instituições", conta.

A ideia do movimento, segundo o pesquisador, é postar nas redes sociais alguma frase contra o preconceito e a intolerância. "Um texto curto, um desenho que demonstre a amizade entre os povos e as religiões", explica Faingold.

Twitteiro inveterado, Goldfarb é um entusiasta da proposta. "Vivemos em um mundo muito agitado pelas redes sociais, pelo mundo digital", diz. "Tudo parece se diluir em um oceano de informações e não é fácil manter princípios ou tradições. Os esforços das entidades judaicas mundo afora buscam, sim, reafirmar nossa condição de judeus, apesar da dificuldade histórica de fazer essa definição."

E qual é a condição de ser judeu? Para Goldfarb, em meio a tanta diversidade, é possível elencar elementos de unidade. "Podemos começar pela solidariedade", afirma. "Uma comunidade que se identifica e se apoia mutuamente, que reconhece uma longa história comum que se perde no tempo. Um povo que privilegia a educação, o culto à leitura e ao conhecimento. Minha vida no Brasil foi e ainda é uma busca pela disseminação do hábito da leitura por prazer -- e creio que isso tem tudo a ver com a minha condição de judeu."