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Genocida: termo que ganhou cunho político é recente e cercado de polêmicas

Getty Images
Imagem: Getty Images

Luiza Pollo

Colaboração para o TAB

25/04/2020 04h00

Em 25 de março, o Google registrou um crescimento de quase 100%, de um dia para o outro, nas buscas pelo termo "genocida" no Brasil. Aliás, em dez anos, nunca teve tanta gente procurando o significado dessa palavra por aqui.

O termo ganhou contornos políticos na boca de muita gente que condena a postura do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) em relação à pandemia do novo coronavírus. No Twitter, o PSOL e Ciro Gomes fizeram uso da palavra, que chegou a ser citada até mesmo durante a sessão do STF (Supremo Tribunal Federal) em que o poder de decisão sobre as medidas de isolamento foi concedido aos estados e municípios.

Cunhado em 1943, o termo foi inspirado nas ações do nazismo contra os judeus e no genocídio do povo armênio pelo governo otomano (que completou 105 anos nesta sexta-feira, 24), mas se aplica a diversos outros contextos. Ao mesmo tempo, juridicamente, não dá conta de todos os significados políticos que carrega. TAB conversou com Michael Mohallem, professor de direitos humanos da FGV Direito Rio, e Adriana Carvalho Novaes, pós-doutoranda do Departamento de Filosofia da USP, para entender as peculiaridades desse conceito.

Primeiro, uma aula de etimologia. A palavra, cunhada no início da década de 1940 pelo advogado judeu polonês Raphael Lemkin, é uma junção de génos (do grego: família, tribo ou raça) e caedere (do latim: matar). "Me interessei por genocídio porque aconteceu tantas vezes. Aconteceu com os armênios e, depois dos armênios, Hitler agiu", diz Lemkin em uma entrevista (veja no vídeo abaixo). Em dezembro de 1948, na 3ª Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas em Paris, firmou-se a convenção para a prevenção e a repressão do crime de genocídio, da qual o Brasil é signatário. "Entende-se por genocídio qualquer dos seguintes atos, cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, tal como: assassinato de membros do grupo; dano grave à integridade física ou mental de membros do grupo; submissão intencional do grupo a condições de existência que lhe ocasionem a destruição física total ou parcial; medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo; transferência forçada de menores do grupo para outro", define a convenção.

Intencionalidade. Para configurar genocídio, é preciso haver intenção de destruir um grupo ou parte dele. A própria omissão de um governo em um caso de dizimação de um grupo religioso por outro, por exemplo, não se enquadra na definição de genocídio, apesar de alguns especialistas argumentarem que a falta de ação de um governo para proteger parte da população também seria um ato criminoso.

Segmentação. Outro gargalo no enquadramento do genocídio é que o extermínio precisa ser contra um grupo bem definido — nacional, étnico, racial ou religioso. Grupos políticos ou sociais não estão incluídos. Na década de 1970, a filósofa política alemã Hannah Arendt, que estudou a perseguição dos judeus na Alemanha, já alertava para a necessidade de tipificar outro tipo de crime, que teria alvo mais pulverizado que o genocídio. "Em um mundo pós-Segunda Guerra, ela percebia esse problema de um Estado que meramente se preocupa com a administração, um Estado, digamos, burocrático, despersonalizado, que lida com as pessoas sem reconhecer especificidades culturais", afirma Novaes. Um Estado assim poderia ser uma ameaça à dignidade humana.

O caminho do processo. Apesar de um número alto de países ter assinado a convenção — são 149 — há poucas denúncias de genocídio. Um dos casos mais recentes foi concluído em 2017, com a condenação de Ratko Mladic, comandante militar dos sérvios da Bósnia, à prisão perpétua por genocídio e crimes contra a humanidade. Os crimes ocorreram entre 1992 e 1995, mas o julgamento costuma ser longo. Atualmente, a acusação costuma ser feita por um procurador no âmbito do Tribunal Penal Internacional — corte estabelecida em Haia, na Holanda, em 2002. Quando é o caso, há determinação de prisão a ser cumprida em Haia.

Julgamento nacional ou internacional? Mesmo com a criação de um Tribunal Internacional e referências para leis e penalizações, sempre haverá um Estado ou grupo de Estados que vão se impor. Ainda assim, o cenário é melhor que antes de ele existir. Uma das vulnerabilidades da convenção era que as denúncias partiam dos países-pares que faziam parte do tratado e quem assumia o compromisso de tomar as medidas era o próprio país acusado, seguindo a sua Constituição.

E no caso de Bolsonaro? O discurso do presidente contra o isolamento social não se enquadra tecnicamente no crime de genocídio, em parte por não haver intencionalidade e por não ser uma política dirigida a um grupo específico da população. Mas o uso político da palavra é comum. "Usar essa palavra traz uma força política muito grande. E, na política democrática, é normal que se faça o uso não técnico do termo", explica o professor.