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A psiquê humana é universal? Por que estudos da área podem induzir a erro

WOC In Tech Chat/Unsplash
Imagem: WOC In Tech Chat/Unsplash

Luiza Pollo

Colaboração para o TAB

19/04/2020 04h00

Há pelo menos dez anos se sabe que os estudos na área da psicologia são WEIRD. A palavra, além de significar "esquisito" em inglês, é na verdade um acrônimo, também em inglês, para definir sociedades ocidentais com alto nível de educação, industrializadas, ricas e democráticas (western, educated, industrialized, rich, and democratic) — ou seja, quase sempre brancas.

Na verdade, essas cinco letrinhas acabam afetando as mais diversas áreas do conhecimento, principalmente na medicina, e levantam o questionamento: será que os estudos feitos com apenas uma parte da população como "cobaia" podem servir de base para tratamentos universais?

Há áreas em que se defende que sim. Procurar diferenças entre as pessoas com base em etnia, cor da pele, gênero e outras características pode até ser preocupante se levado ao extremo, ganhando tons de eugenia.

Por exemplo: o genoma de um brasileiro é praticamente igual ao de um norueguês, senegalês ou australiano — 99% dos nossos genes são iguais entre todos os humanos. Mas a mente, não. Nesse caso, as experiências de vida de cada indivíduo mudam muito de acordo com características como o país onde ele nasceu, seu gênero e a cor da pele. Portanto, há um movimento crescente que pede maior diversidade nas pesquisas da área.

"É complicado definir qualquer coisa como universal", afirma a psicóloga clínica escolar Roberta Federico, autora da tese de mestrado "Psicologia, raça e racismo: uma reflexão sobre a produção acadêmica brasileira" na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). "Muitas das teorias da psicologia foram elaboradas por homens brancos, europeus e norte-americanos num determinado período histórico e não levam em consideração povos africanos, indígenas e outros."

Uma pesquisa de 2010 trouxe à tona esse problema, que antes era observado por um ou outro estudo na área. Publicado na revista científica Behavioral and Brain Sciences, o estudo de três autores canadenses mostra que os cidadãos WEIRD são, na verdade, uma das populações menos representativas para se basear generalizações sobre a psicologia humana.

Psicologia WEIRD - Austin Distel / Unsplash - Austin Distel / Unsplash
Imagem: Austin Distel / Unsplash

Um dos exemplos mais usados para provar esse fato é que certas ilusões de ótica que costumam enganar pessoas de países industrializados não têm o mesmo efeito sobre quem cresceu em áreas rurais (muitos deles têm a ver com linhas retas, e os cientistas observam que em grandes cidades estamos mais acostumados com elas: prédios, cruzamentos?).

Outro teste relevante constatou que crianças do povo Tsimane, da Bolívia, tiveram um comportamento muito diferente das norte-americanas em um estudo sobre como elas compartilham bens. Enquanto os americanos consideravam justo dividir as recompensas de acordo com o trabalho realizado por cada membro de uma equipe, os tsimane preferiam dividir igualmente, independentemente do "mérito".

"Se a base de dados da ciência comportamental consistisse inteiramente de sujeitos tsimane, os pesquisadores provavelmente ficariam bastante preocupados com a possibilidade de generalização", escreveram os autores do estudo de 2010. Por que, então, não há a mesma preocupação quando as "cobaias" são apenas norte-americanas ou europeias? Uma reportagem da revista The Atlantic chama atenção para esse cenário e constatou que, dez anos depois do estudo que despertou esses questionamentos, pouco mudou na área.

E no Brasil?

"Hoje eu posso nomear, mas na época em que eu me formei em psicologia, em 2004, não entendia que havia tido uma formação heteronormativa e branca", afirma Eloiza Santos Rodrigues, psicóloga clínica, especialista em educação e relações étnicos-raciais. "Fui conhecer pesquisadores, autores, psicólogos e psiquiatras como Frantz Fanon e Neusa Santos, muitos anos após a minha formação, e foram grandes pesquisadores que contribuíram e ainda contribuem para a saúde mental", relata.

Na clínica, ela considera essencial conhecer mais a fundo as questões que podem afetar as minorias para poder atender com qualidade. "Cabe também a nós, como profissionais, buscar o que precisamos oferecer em termos de atendimento clínico considerando a diversidade. Uma pessoa pode deprimir em consequência de uma série de situações de racismo", exemplifica. Rodrigues reconhece que essa preocupação vem se mostrando mais presente na sociedade e mesmo na formação de psicólogos, mas que o caminho ainda é longo.

Federico cita também a disciplina da psicologia preta, que não encontra muito espaço no Brasil. Um dos maiores nomes da área por aqui é Lucas Motta Veiga, que pesquisou o tema na Universidade Federal Fluminense e organiza cursos. Para ela, a palavra-chave a ser considerada é política, intrínseca à psicologia. "Um exemplo é a questão da dificuldade de aprendizagem da pessoa negra. Precisamos entender a que ponto afetividade de aprendizado estão interligados, como a autoconfiança e a autoimagem podem afetar nesse sentido", afirma.

Se um estudo sobre o aproveitamento escolar das crianças não levar isso em conta e se propuser como universal, parte da população sai perdendo. E raramente é a parte WEIRD. No Brasil, um país com 56% de negros, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua do IBGE, isso se torna ainda mais relevante. "A gente precisa ter uma escuta sensível e preparada quando um paciente traz uma queixa para entender o quanto aquilo é consequência de um ambiente racista, do quanto isso condicionou comportamentos e reações, formando um sujeito que tem uma impressão distorcida de si, e que causa sofrimento", avalia Federico.

Além da formação dos profissionais, o acesso à saúde mental também é desigual no Brasil. Um levantamento feito pelo jornal digital Nexo com base nos dados do Datasus mostra que as regiões Sul e Sudeste concentram o maior número de psicólogos e psiquiatras proporcionalmente à população de cada estado.

Nota de rodapé

Há tentativas de mudar o cenário, como o Psychological Science Accelerator, uma rede global que reúne mais de 500 laboratórios em mais de 70 países que está refazendo grandes estudos com diferentes populações. A ideia é testar um problemão da área: a falta de reprodutibilidade dos estudos.

"Não que não seja interessante ou útil estudar a população norte-americana de classe média. Mas eles (os pesquisadores em geral) não querem afirmar que estamos apenas estudando essa população", disse Cristine Legare, psicóloga da Universidade do Texas em Austin, à The Atlantic. "Eles querem afirmar que os seres humanos são parecidos o suficiente para não fazer diferença qual população você estuda." E muitos estudos nem mencionam o recorte pesquisado.

"Esses padrões empíricos sugerem que precisamos ser menos descuidados ao lidar com questões de natureza humana com base em dados colhidos desse setor da humanidade particularmente pequeno e incomum", observaram os autores do estudo de 2010 que trouxe luz a essa discussão.

Outro passo, observam Rodrigues e Federico, seria a divulgação mais clara, nos estudos, de aspectos específicos da população pesquisada. "Isso é fundamental. Mas há uma questão socio-histórica do que vale a pena pesquisar, o que convém", diz Rodrigues. "Há dificuldade de financiamento para determinadas pesquisas por interesse em deixar que determinados temas não avancem. A diversidade ainda é uma afronta", afirma.

Federico reconhece que houve avanços na área nos últimos anos, principalmente no acesso da população negra à universidade. Com mais diversidade entre os psicólogos, mais opção de atendimento às minorias. Mas ainda há muito a mudar: "A teoria freudiana é baseada na mitologia grega, e temos por exemplo vários mitos africanos que também poderiam ser base para produção de conhecimento. A gente tem que tomar esse caminho de compartilhar o que sabe para multiplicar e desenvolver", avalia.